Maria da Conceição de Melo Rita, mais conhecida por Micas, residiu na residência do Toninho (Salazar para uns, senhor doutor para ela) desde os seis anos de idade até casar. Mesmo depois do casamento continuou a privar com ele até à sua morte. Foi por isso, muito provavelmente, a melhor testemunha do que foi a vida do Presidente do Conselho durante praticamente toda a segunda República de Portugal.
A Micas é por isso uma mulher com um papel na História, e o livro que escreveu sobre as suas memórias com o Toninho, Os Meus 35 anos com Salazar, é revelador daquilo em que Portugal se tornou durante o Estado Novo: um estado velho e caduco.
Acredito que a Micas tenha tanto de boa pessoa como de ingenuidade, acredito até que durante a sua infância e adolescência não tenha havido disponibilidade para perceber que, aquele a que chama o seu pai adoptivo, era responsável por um campo de concentração em Cabo Verde (o tarrafal) onde morreram lentamente muitos inocentes, por uma polícia política que torturava e matava todos os que discordavam de si, e por uma guerra em África injusta para com todos (os povos africanos que legitimamente ansiavam pela independência e os militares que eram obrigados a ir para uma guerra que, na sua maioria, não percebiam nem aceitavam).
A verdade é que Portugal ainda não saiu da pequenez em que mergulhou durante o Estado novo e, mesmo hoje, a noção que tem de progresso extingue-se num país em que o mais importante é fazer chegar a uma aldeiazita qualquer, um número indeterminado de auto-estradas, com saídas do tipo Merdaleja Oeste, Merdaleja Norte e Merdaleja Sul, que ao fim e ao cabo vão dar ao mesmo sítio, e em que a logística para a educação e para a saúde não interessam mesmo nada se houver um estádio de futebol que dê para levar trinta ou quarenta mil pessoas.
A Micas fala da pequenez do Toninho para mostrar como ele era bom, sem se aperceber que, por trás dessa bondade do senhor doutor, está todo o obscurantismo que permite ainda hoje termos no governo pseudoengenheiros que assinam projectos de obras que não são seus, e que o país ache isso normal.
Para a Micas, o senhor doutor era bom porque deixava a governanta criar galinhas nas traseiras do Palácio de São Bento; porque lhe permitia um rancho melhorado num colégio onde todas as alunas passavam fome, mesmo que não pudesse partilhar com ninguém; ou porque ia metendo cunhas para todos os seus amigos e familiares arranjarem empregos melhores. Aliás, gosto especialmente da passagem: em questões de emprego, o chefe do governo não deixava cair os seus próximos. O meu irmão José abandonaria o cargo de porteiro no Palácio de São Bento para ser gradualmente promovido, até chegar a administrador do hospital Miguel Bombarda. Pois é...