Dias Cinzentos
Esta semana uma mulher sentou-se à minha frente no comboio (sentido Porto - Aveiro) e começou a falar comigo com a maior das naturalidades, apesar de eu nunca a ter visto até então na minha vida. Disse ela que adora estes dias cinzentos e que a cidade do Porto fica ainda mais bonita em dias de Inverno. Pelo sotaque e pelas características somáticas percebi que era estrangeira, provavelmente alemã ou polaca, e respondi-lhe que para alguém que gosta de dias cinzentos tem uma forma de comunicar bastante colorida e espontânea. Explicou-me então que gosta mais de dias cinzentos em Portugal do que na Polónia (era polaca) porque lhe lembram a cidade e a rua onde cresceu.
Lembrei-me também duma rua cinzenta, e de um dia qualquer da minha minha vida em que percebi que as ruas são uma concepção do Homem e não um elemento natural como, por exemplo, uma árvore ou um rio. Nessa rua algumas mulheres costumavam ficar tardes inteiras à janela aceitando como um presente as cócegas que o tempo lhes ia fazendo, como se ainda assim a morte nunca ali tivesse passado. Uma dessas mulheres era a avó da Helena, talvez a primeira rapariga do mundo por quem abdiquei de jogar futebol com os amigos para usufruir da sua companhia, que me conhecia e normalmente me fazia um copo de leite e uma torrada se me visse por ali à hora do lanche.
Foi assim durante três ou quatro anos, não me lembro bem, e só hoje percebo que esses lanches vinham duma senhora que me conhecia melhor do que eu mesmo, e que entre mim e a Helena havia uma primeira experiência de Amor, ainda que limitada à capacidade que uma criança tem de amar outra mais do que a ela mesma e que, convenhamos, não é muita. Talvez por isso só tenha percebido a sua importância quando ela morreu e a Helena foi viver para outra cidade, creio que Lisboa, e eu nunca mais a vi.
Eu, por mim, continuei a passar nessa rua quase diariamente, assumindo com alguma frustração que ela era indiferente à ausência da Helena e da sua avó, assim como ao meu consequente sofrimento. Alguns terrenos baldios foram-se transformando em casas, e algumas casas em pequenos edifícios com apartamentos onde regularmente iam surgindo caras novas. O tempo começava a fazer cócegas a mim mesmo. A única coisa que se mantinha era a cor do céu, normalmente um cinzento pálido pintado por aguarelas um pouco mais escuras e difusas.
"A mim também me lembra uma rua da minha infância", disse eu à polaca antes de ela se despedir de mim numa estação qualquer. Tenho a certeza absoluta que ela também tem uma história qualquer numa dessas ruas de que este tempo a faz lembrar. Disse-lhe adeus pela janela quando o comboio partiu e ela, do cais, olhou para trás na minha direcção.