A minha filha não me deixa contar-lhe histórias sérias para adormecer. Desde que se habituou a que eu estupidifique clássicos, não adormece enquanto não faço isso. Acabei de a adormecer assim:
Era uma vez uma princesa muito boazinha que, por ter caído num enorme frasco de ketchup quando era pequenina, tinha a alcunha de Vermelha de Tomate. A Vermelha de Tomate vivia num castelo enorme com a madrasta, que era uma rainha muito má, muito má, muito má.
A madrasta não gostava nada da Vermelha de Tomate mas coexistiam sem grandes problemas porque o castelo era tão grande que raramente se cruzavam. O único problema que tinham é que, apesar de grande, o castelo só tinha uma casa de banho, e como a rainha era muito vaidosa passava os dias a pentear-se no espelho dessa casa de banho. A Vermelha de Tomate andava sempre aflita dos intestinos e sofria muito com isso. Estava sempre a bater à porta e a pedir "deixa-me ir fazer xixi, por favor", ao que a rainha má respondia inevitavelmente "cala-te oh sua chata!".
Um dia, enquanto se penteava, a rainha má lembrou-se de perguntar ao espelho: "oh espelho mágico, há neste castelo alguém mais chato do que eu?", e o espelho respondeu: "a Vermelha de Tomate é chata como a potassa, mas tu consegues ser mais chata ainda". A rainha ficou furiosa, chamou o tratador de cavalos e mandou-o levar a Vermelha de Tomate para a floresta, matá-la e trazer o coração dela num saco de plástico dos supermercados Pingo Doce.
Já na floresta, o tratador de cavalos perdeu a coragem, até porque era um hippie pacífico dos anos sessenta, e mandou a Vermelha de Tomate fugir. Depois matou um periquito e levou o coração dele. Quando mostrou o coração do periquito à rainha ela ainda desconfiou mas, como não tinha passado da segunda classe, lá acabou por acreditar que a miúda estava mesmo morta.
A Vermelha de Tomate andou toda a noite pela floresta até que encontrou uma casa enorme onde viviam sete comunistas. Quando ela disse que se chamava Vermelha, eles deixaram-na logo entrar e ficar ali a viver, desde que ela fizesse as camas todos os dias e limpasse o retrato do Mao na parede.
Tudo correu bem até o espelho dar com a língua nos dentes e dizer à rainha má que a Vermelha de Tomate ainda estava viva. Imediatamente, a rainha transformou-se numa Testemunha de Jeová, enfeitiçou uma revista Despertai e foi anunciar a palavra de Deus à casa dos sete comunistas. Por azar eles não estavam lá porque tinham ido pró café discutir a queda do muro de Berlim. A Vermelha de Tomate, na sua inocência, folheou a revista e caiu desmaiada no chão. O feitiço da testemunha de Jeová só poderia ser quebrado com um beijo dum cantor de hip hop.
Quando os sete comunistas regressaram a casa e encontraram o corpo da Vermelha de Tomate desmaiado, ficaram muito tristes e puseram-no lá fora, no jardim, enquanto foram tratar da papelada toda na Junta de Freguesia para realizar o funeral. O Boss Ac passou por ali a cantar o "Baza baza, vai p'ra casa, casa. Abre a pestana tana" e achou que a Vermelha era muita gira. Deu-lhe um beijinho, ela acordou e bazou mesmo com ele.
Quando os sete comunistas estavam na Junta de Freguesia, repararam numa Testemunha de Jeová que andava a distribuir revistas por tudo quanto era gente. Convidaram-na para uma conversa no café sobre religião e materialismo dialéctico e foi aí que descobriram que, de facto, a Testemunha de Jeová era a rainha má que se tinha esquecido do feitiço para voltar a ser rainha. Ficou testemunha de Jeová para sempre...