tentou roubar-me e acusou-me de violação
Sei que é Domingo quando acordo. Normalmente tenho que pensar que dia é, quando acordo, mas hoje não. Sei que é Domingo. Quer dizer que ontem o meu corpo adormeceu ao mesmo tempo que a alma, e ambos descansaram bem. O corpo adormece normalmente antes, e depois acorda sempre com a alma a resmungar, a mendigar mais alguns minutos de sono e de sonho.
Como duas bananas, uma laranja e uma gelatina de morango. Não tomo banho porque decido ir à praia. Tomo, por isso, quando voltar. Visto a tanga, visto os calções, uma t-shirt e umas sandálias. No carro tenho, desde o ano passado, o pára-vento. Vou à gaveta do armário do quarto da minha filha e tiro uma toalha de praia. Numa carteira ponho o leitor mp3, o protector solar e uma nota de 5 euros. A ponte da Barra está em obras e a fila de trânsito é enorme. Ouço uma rádio local e abro os vidros para refrescar o interior do veículo. Naquele passo de caracol, e numa carrinha que segue ao meu lado direito, um casal discute duma forma exagerada qualquer coisa que se passou há uns dias, não percebo bem o quê. Ela diz que nem sei quem é uma ordinária e ele pede calma. Estou contente por ir à praia sozinho, sem discussões.
Bandeira amarela na Costa Nova e muito vento. Deito-me na toalha, abrigado pelo pára-vento às riscas brancas e amarelas, e ouço tinariwen de olhos fechados. Duas ou três músicas depois uma mulher toca-me no peito. Abro os olhos e tiro os auscultadores. Ela é muito bonita. Tem a pele mais branca do que eu e o cabelo encaracolado preto. Os olhos fogem-lhe para um azul marítimo e os lábios são tímidos. Pergunta-me se se pode abrigar ao meu lado, já que estou sozinho e está muito vento. Que sim, respondo. Sacudo a minha toalha, que estava paralela ao pára-vento e volto a colocá-la perpendicularmente ao mesmo. Ela deita-se ao meu lado depois de tirar as calças de ganga.
Deito-me de barriga para baixo e volto a colocar os auscultadores. Fecho os olhos. A voz dela continua por trás da música dos tinariwen mas eu não percebo o que diz. Merda, penso. Queria mesmo paz. Tiro os auscultadores e enrolo-os no leitor. Guardo tudo na carteira. Ela pergunta-me se seu sou dali. Não me apetece dizer-lhe a verdade e por isso digo que não, mas a conversa continua e a mentira aumenta. Acabo como um funcionário público da Câmara Municipal de Beja que está ali de férias, e sou casado com uma africana que está neste momento em Boston. A mentira é tão estúpida que me parece que ela acredita. Ao mesmo tempo dá para justificar porque é que estou sozinho e para lhe dizer que não ando no engate. Até tenho uma mulher em Boston e tudo.
Ela não se cala e eu não consigo descansar. Aproveito e passo-lhe os olhos pelo corpo, um pouco mais atentamente que no princípio. Sim, é mesmo bonita. É pena falar demais. Diz-me que é de Viseu mas, não sei porquê, não acredito. Diz-me que gosta muito de Aveiro e quer viver na cidade. Pergunta-me se sei de algum emprego. Não, não sei. Provavelmente, afinal, não acreditou que sou de Beja. Porreiro, penso, estou a ter uma conversa com uma mulher que não conheço de lado nenhum e estamos os dois a mentir um ao outro. Porreiro.
Tenho a pele quente. Interrompo-a quando me fala do irmão e digo que vou à água. Ela não vai, que o mar está muito agitado. Merda, penso, agora dá-me uma erecção espontânea. Viro-me de novo de barriga para baixo e começo a mexer na carteira, só para ganhar tempo. Tiro o telemóvel, tiro os óculos, tiro a nota de cinco euros, tiro o protector e tiro o leitor de mp3. Depois arrumo tudo de novo. Não sei se ela reparou que eu tive a erecção mas que se foda. Não a conheço de lado nenhum.
Já estou melhor. Já dá para me levantar e ir à água. Mesmo assim faço-o sem me virar de frente para ela. A água fria vai-me ajudar nesta questão. Aproximo-me do mar e dou um mergulho logo na primeira onda.
A água está mesmo fria e o mar um cadito perigoso. Torno a mergulhar mas não estou muito tempo no banho. Não dá. Volto para a toalha. Como sou míope tento guiar-me pelas riscas do pára-vento. Aproximo-me. Já não está lá a mulher. Nem ela nem a minha toalha, nem a minha carteira, nem a minha t-shirt nem sequer as minhas sandálias. Foda-se, para que é uma miúda com um metro e sessenta quer umas sandálias número 44? Foda-se, levou-me os óculos e o telemóvel. Foda-se, até a chave do carro estava na carteira. Olho em várias direcções atarantado mas não consigo distinguir quase nada à distância. Um homem pergunta-me se procuro a minha mulher. Que sim, digo-lhe sem me apetecer explicar o quer que seja. Acho que ele desconfiou de qualquer coisa e seguiu-a com o olhar. Deve ter sido um feeling. Distingo o vulto e começo a correr nessa direcção.
Corro, corro, corro. Correr na areia é difícil e eu não sabia que ainda era capaz de correr tanto. Já distingo melhor o vulto. É mesmo ela e leva as minhas coisas nas mãos. Ela começa a correr também, mas rapidamente percebo que a vou apanhar. Ela é lenta. Estou-me a aproximar e ela larga tudo, como um balão de hélio que quer subir rapidamente, mas eu estou zangado e nem ligo ao que ela largou. Apanho-a pelo braço já nas dunas.
Ela vira-se para mim e tenta dar-me uma chapada. Nem me deixa falar. Começa aos gritos que a estão a violar. Foda-se. É Domingo, passa levemente da uma tarde, e eu estou numa duna duma praia com uma desconhecida que me tentou roubar e ainda por cima grita que a estou a violar. Só a mim. Foda-se! É que só a mim. Dois gajos vêm na minha direcção a correr também. Ela aumenta os gritos e aponta na minha direcção. É ele! É ele! Eu não digo nada. Sei lá o que é que hei-de dizer. Foda-se! Está um pau na areia. Pelo sim pelo não pego nele. Eles chegam e param. Estão cansado e nem conseguem falar. Óptimo, falo eu então. Explico a história toda e justifico apontando para as minha merdas espalhadas na areia, que entretanto vou apanhar.
O Sol está aquecer e a minha pele branca a pedir repouso e sombra. Largo o pau e digo à gaja para se ir embora. Afasto-me devagarinho, para não parecer que estou em fuga. Ela fica a falar com eles. Eu vou é arrumar tudo e voltar pra casa. Só a mim, só a mim. Enrolo o pára-vento e agradeço ao tipo que me indicou a direcção dela. Explico-lhe tudo melhor e despeço-me.
Estou no carro. A fila para voltar é menor. Ainda bem. Ligo o rádio e a Rádio Clube de Aveiro está a entrevistar um gajo qualquer sobre como escrever textos cómicos. Não chego a saber quem é mas fico a ouvir. Vou parando e andando, parando e andando. Alguém me bate no vidro. É ela. Foda-se, outra vez ela. Abro o vidro e pergunto-lhe o que quer. Boleia para Aveiro, responde. E eu dou. Deixo-a no Alboi e vou para casa.
Tentou-me roubar, acusou-me de a tentar violar, mas era uma mulher e era bonita. Dei-lhe boleia e agradeço-lhe a existência. Mas, só em pensamento: Foda-se!