Uma marroquina que nunca se achou bonita abriu-me a porta de casa. Escondia o seu corpo dentro da roupa larga, de um lenço no cabelo, do nó cego dos seus braços e por trás de palavras que a mascaravam de sorrisos ténues. A sua arma são os olhos, grandes e negros, que se movem para qualquer lugar onde surja ruído com a astúcia felina que até hoje só conheci em mulheres. Quando não há ruído, as íris atravessam-nos de um lado ao outro do corpo, despindo-nos a alma e revelando o que pensamos. E foi assim que ela me adivinhou, fechando ainda mais os braços de forma a esconder os seios. Para mim, por trás de uns braços em nó cego há sempre uma amargura qualquer.
A Raquel sorriu-lhe, como se um sorriso pudesse ser uma primeira ponte entre duas pessoas. E pode mesmo, pelo menos às vezes. A casa é uma mistura de aguarelas negras e das suas cores cativas, e eu dei um passo atrás escondendo-me numa mancha de negritude da mesma forma que um camaleão se esconde mudando a cor da pele. Mantive-me assim enquanto elas falavam sem eu entender o que diziam e até ela desfazer o seu nó. Quando o fez, o seu primeiro gesto com a mão direita foi pedir-me para me aproximar. E foi assim que conheci Fedoua, uma mulher que não se acha bonita.
Foi ela quem me disse, num tom de voz que eu entendi como se fosse um aviso, que uma grande parte da população de Marrocos olharia para mim e para a Raquel como se fossemos uma nascente de dinheiro. E avisou bem. Esse é, aliás, o lado mais feio do país, porque a busca do dinheiro dos turistas se disfarça duma simpatia e afabilidade hipócritas. Nas medinas de Fès e de Marraquexe, o que não falta são pessoas que acham que tudo tem um preço, até a simples indicação de um lugar. Entre muitos exemplos, um rapaz ofereceu-se para nos levar ao palácio Al Badi e fez com que nos perdêssemos naquele formigueiro excitado que é a cidade. Depois pediu-nos dinheiro para nos tirar dali. No nosso caso teve azar, que o mandei em bom português ir à mãe dele e saí dali sozinho, mas é nitidamente alguém habituado a ter sucesso a enganar estrangeiros. Exemplos deste sucedem-se minuto a minuto, e quem lá for tem que ir preparado para isso. Mas é injusto dizer que Marrocos é só isso, principalmente para os que não são isso.
Visitei Fès e Marraquexe (com passagens por Tanger, Rabat e Casablanca). Fès é sem dúvida a cidade mais interessante, tanto por ter poucos turistas como por ter a maior medina do norte de África (6000 quilómetros num labirinto medieval incrível), mas dentro dessa magia medieval está o choque cultural. Eu não acho que tudo deva ser aceite por questões culturais, e não gosto de ver cidades onde milhares de pessoas são anuladas perante a sociedade apenas por uma questão de género. Resumindo, não gosto de ver mulheres tapadas com temperaturas acima dos quarenta graus nem gosto do véu islâmico. Fedoua também não gosta, mas abana os ombros quando discutimos o assunto como se não encontrasse de facto uma explicação para o assunto.
A explicação encontrei-a em Imran, um amigo muçulmano que me recebeu com muito boa vontade em Casablanca. Concorda que as mulheres andem tapadas para que a sua beleza pertença apenas ao marido, acha que eu sou um homem muito bom porque aceitei namorar uma mulher divorciada (o facto de eu ser um homem divorciado já não lhe faz confusão nenhuma), segundo ele com pouco valor mesmo por isso, e que ainda por cima trabalha e quer ser financeiramente independente. Imran interrompeu uma tarde de praia para nos ir buscar à estação Casa Voyageurs, mostrou-nos quase toda a cidade no pouco tempo que tínhamos para a visitar, deu-nos dormida e comida nas suas modestas instalações e ainda nos pediu desculpa por não ter melhor. É das melhores pessoas que já conheci na vida, mas... e há sempre um "mas".
Visitei Fès, Rabat, Casablanca e Marraquexe. Marrocos é provavelmente uma das viagens mais fascinantes que já fiz e mesmo assim um país onde eu não queria viver.