o Chico das Bicicletas
Quando eu era criança só existiam duas oficinas de bicicletas em Aveiro. Uma era a do Zé Gordo das Bicicletas, outra era a do Chico das Bicicletas. Eu ia sempre à do Chico das Bicicletas, por ser mais perto da minha casa, e aquilo nunca me pareceu um verdadeiro negócio. Ele alinhava-me a direcção, enchia os pneus e afinava os travões sempre de graça. Para mim, na minha ingenuidade de criança, era normal ele fazer isso sem cobrar, até porque com sete ou oito anos eu nunca tinha dinheiro no bolso.
O Chico das Bicicletas já tinha morrido quando em adulto pensei nele como uma pessoa boa, uma pessoa daquelas que arranja bicicletas a uma criança e recebe em pagamento apenas o seu sorriso. Tenho pena de nunca lhe ter agradecido ter-me proporcionado uma infância um bocadinho melhor, e se ele hoje fosse vivo era o que eu fazia. Dava-lhe um abraço do tamanho do mundo e dizia-lhe obrigado.
Nessa altura andava de bicicleta por motivo nenhum, e esse é o melhor dos motivos para andar de bicicleta. Agora faço-o para manter o peso e alguma resistência, mas quando era pequeno dizia à minha mãe que ia lá para fora andar de bicicleta e pronto, ia sem motivo aparente. Lembro-me que às vezes, muitas vezes mesmo, fingia que era uma mota e fazia vrruuuummmm vrruuuuuummmmm com a boca enquanto pedalava. Acreditar nas nossas próprias mentiras é uma capacidade que só temos enquanto somos crianças. Depois, quando crescemos, perdemo-la, principalmente com os primeiros desgostos de Amor. Aliás, acho que foi por isso que muito cedo a minha bicicleta passou a ser apenas isso mesmo, uma bicicleta.
Os desgostos de Amor têm a mania de transformar o mundo nele mesmo, tal como ele é, ou seja, de o transformar totalmente. São um serial killer dos nossos sonhos. Lembro-me, por exemplo, de em fases deficitárias de paixão deixar de atravessar as passadeiras como se fossem um jogo, colocando os pés apenas nos riscos brancos para não perder. Atravessar a estrada passava a ser apenas isso mesmo: atravessar a estrada. É o que faz a falta de paixão, mostra-nos o mundo como ele é, e eu não gosto de simplesmente atravessar a estrada.
O sinal vermelho deve ter demorado cerca de um minuto a passar para vermelho. Foi esse o tempo que eu estive a olhar para outra mulher à minha frente, que depois atravessou a rua no sentido oposto ao meu. Aconteceu-me hoje e ela sorriu-me quase por impulso, tal como eu. Depois não olhei para trás e ela quase de certeza que também não. Era apenas alguém que sabe transformar as coisas que são naquilo que devem ser. Há pessoas assim, o Chico das Bicicletas era uma delas.
Quase ninguém sabe porque é que Ama alguém, mas eu acho que é essencialmente por isso. Porque esse alguém nos permite viver noutro mundo que não este. Constantemente. É por isso que eu Amo a Raquel, e é por isso também que esta é a minha homenagem a esse homem que fez parte da minha infância.