Tive a sorte de fazer nove anos em 1980. Não é que a década de oitenta tenha sido melhor que outra qualquer, mas foi com toda a certeza uma década de ilusão, ou de ilusões, e portanto a altura ideal para ser criança.
Em Portugal a ditadura e a guerra tinham acabado, o PREC também. No mundo vivia-se a expectativa do princípio do capitalismo especulativo e os jogos sem fronteiras, apresentados pelo Eládio Clímaco, eram um cheirinho infantil do que viria a ser a entrada na CEE em 1986. Lembro-me de ver com emoção a equipa de Aveiro vencer um desses jogos e andar orgulhoso com o feito durante um ano lectivo inteiro. O país unira-se em torno de tal conquista e Aveiro entrara no mapa. Portanto, a rua onde eu me divertia a pendurar fitas de Carnaval nas antenas dos poucos automóveis que iam passando também entrara. Eu estava a crescer e o mundo era cada vez mais pequeno. Parecia-me bem.
Em 1981 senti pela primeira vez que o mundo podia ser terrivelmente injusto, quando o Carlos Paião ficou em penúltimo lugar no festival da Eurovisão com a música PlayBack, mas nem por isso perdi a fé naquilo que para mim parecia ser o princípio da globalização: Jogos Sem Fronteiras, Festival da Eurovisão e a minha avó ir a Espanha comprar ananás enlatado em grandes quantidades.
Mas se em 1980 fiz nove anos, em 1985 fiz 14, e com essa idade vieram também as primeiras paixões a sério e as primeiras noites com a cabeça na almofada sem perceber muito bem o que me estava a acontecer, e a esta desordem emocional juntava-se a desordem racional. Percebi então que as mulheres de quem um homem gostava podiam, pura e simplesmente, não lhe ligar nada, e a união que eu sentira no país em relação aos Jogos Sem Fronteiras era falsa. Pelo menos uma fractura havia: aquela entre a maior parte dos retornados que diziam que Portugal precisava dum Salazar outra vez, e os comunas de que a cidade onde eu vivia dizia normalmente mal. Ao mesmo tempo que me apaixonei por uma morena do liceu que nunca me ligou nada optei por gostar desses comunas, um pouco contra tudo e contra todos. Afinal, do pouco que eu sabia, tinham sido sempre eles a protestar com a guerra.
Convém também lembrar que Portugal era um país racista nessa década, embora com dois tipos de racismo. Havia portugueses que simplesmente detestavam pretos, haviam outros portugueses que não os detestavam mas tinham pena deles por serem uns coitadinhos (se calhar este é o pior dos racismos) e, finalmente, outros que não os detestavam e não tinham pena deles. Incrível, achavam que eram pessoas como as outras todas. E eu também passei a achar.
Depois, como tudo, a década de 80 chegou ao fim. Em 1989, a morena por quem eu me apaixonara, desapareceu simplesmente do meu circuito e vim a apaixonar-me por outra mulher que acabou por ser a mãe da minha filha. A clarificação da minha vida emocional trouxe também alguma clarificação política: nem os retornados eram todos parvos à espera dum novo Salazar, nem os comunas eram todos uns reais ideólogos socialistas. Optei por esquecer definitivamente a morena e por adiar as minhas opções políticas para quando percebesse mais alguma coisa do assunto.
Estava a pensar nisto porque este fim de semana vou para uma festa dos anos 80 no Alentejo, que é também o aniversário dum amigo da Raquel, a minha companheira de vida actualmente. A Raquel é essa morena que, depois de se evadir da minha vida nos anos oitenta tornei a encontrar há cerca de dois anos, já divorciado e com uma filha grandota. Actualmente sou também aderente do Bloco de Esquerda em Aveiro. Estava a pensar no labirinto que a minha vida foi durante estes anos todos. A minha vida, como outra qualquer.