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2.15.2019

respostas a perguntas inexistentes (380)

Sempre tive este prazer com o café. Antes de o beber abraço a caneca fumegante com as duas mãos e aqueço-as. Pensando bem, talvez seja por isso que me habituei a gostar de países frios, pelo prazer de me aquecer.
Ela está a espreitar pela janela da cozinha na mesma posição de sempre. Tem os olhos grandes e abertos, que praticamente não piscam. Seja lá o que for que está ver não cabe em olhos semicerrados. Tenho até a sensação que olha sempre para o mesmo ponto lá fora, provavelmente a árvore do jardim.
Dou o primeiro gole e aqueço mais as mãos.

- É o nosso jardim. Está sempre igual. - digo-lhe.

Ela não desvia o olhar nem o pensamento.

- Não, não está. A árvore já foi verde, já foi vermelha e agora não tem folhas. Tudo mudou.

É então que me apercebo que ela não está a olhar para o espaço, mas sim para o tempo. É claro que não podia caber em olhos semicerrados. O tempo só entra em olhos bem abertos ou bem fechados.

- Queres que te faça um café? - Pergunto.

Alguns pássaros pousam na relva. Vêm comer o resto da comida que quase todos os dias damos a alguns gatos vadios que nos costumam visitar pela manhã. Ela não desvia  o olhar.

- Não, já sabes que não gosto do teu café instantâneo mas, por favor, nunca pares de me perguntar. - Sorri.

Dou outro gole. Fecho os olhos para procurar nesse tempo a improbabilidade que nos permitiu partilhar esta manhã. Não a encontro, mas sei que está lá e é tão esguia como a nossa história. Talvez tudo deva ser apenas exactamente assim: um mero acaso.

Ela sai e afasta-se. Eu termino o café. As minhas mãos estão quentes. É por isso que gosto de países frios.

12.01.2017

respostas a perguntas inexistentes (379)

Eu e o Vento

A noite embrulhou-me em silêncio. Saí do trabalho e continuei a caminhar sem destino, como um barco à deriva num mar sem vida. Era assim que estava a cidade, quase morta. Mas tive sorte, encontrei um pequeno sinal de vida no vento que, tanto quanto percebi, também estava sozinho.
Ainda bem. É sempre bom ter alguém com quem falar e nada como ele, que nunca põe em dúvida o que dizemos, para dar dois dedos de conversa. 
Sempre acreditei que somos incapazes de mentir aos outros, mas mentimos muito facilmente a nós mesmos. Só o vento é que tem essa noção e, talvez por isso, seja um dos meus melhores amigos.
Esta noite, por exemplo, falámos de Amor. E ele concorda comigo no essencial. A palavra é de desconfiar. Fala-se de Amor como se fosse uma coisa qualquer. E não é. Eu já vou em quase cinco décadas de vida e, tanto quanto me lembro, disse essa palavra a três mulheres. Bêbado, claro, que é o conta. Em estado sóbrio terei dito mais vezes, mas todos sabemos que a sinceridade é filha da bebedeira.
Quando se diz a palavra Amor a muitas pessoas, então nunca se Amou ninguém. Foi ele que mo explicou, o vento, que também me pareceu estar um tanto ou quanto embriagado. E eu acreditei.
Dividimos a dor e o prazer de não sermos nada nem coisa nenhuma. Isso e uma garrafa de vinho barato, claro. Afinal de contas andamos os dois sempre a contar os trocos como se fossem cada um dos momentos do tempo que passa.
Nada disto interessa muito, claro. Foi apenas mais um conversa entre dois amigos de longa data que partilham o facto de nunca terem pedido a nenhuma mulher que os continuasse a Amar para além do Amor. E é por isso que de vez em quando nos cruzamos os dois num ponto qualquer do planeta, nos sentamos no primeiro local aprazível e discutimos o mundo como se fosse possível entendê-lo.
Sou eu e o vento.

10.21.2017

respostas a perguntas inexistentes (378)

A Minha Mãe E Um Saco De Tempo

Perdi a conta às más notícias que dei à minha mãe durante a minha vida. Dei algumas boas também, mas por qualquer motivo sinto que dei mais más do que boas. Uma delas foi que tinha perdido o emprego e estava sem dinheiro. Dessa vez, como em todas as outras, a primeira resposta da minha mãe foi sorrir e dizer que tudo tem solução.

A minha mãe não sabe, mas nesses momentos ensinou-me sempre que um sorriso pode salvar uma vida. É que uma vida inteira pode ter milhões e milhões de segundos, mas tem que se salvar em cada um que passa.

Foi também assim que aprendi a parar no tempo, esse monstro invisível que me estava a matar. Foi o tempo de estudar, o tempo de casar, o tempo de constituir família, o tempo de ter um emprego tão bom quanto o dos outros, o tempo de ter um carro e o tempo de ter uma casa. Foram vários tempos com tempo para tudo menos para viver.

E então parei e meti esse tempo todo num saco.

Andei por aí. Do que me lembro é de ter lido um livro no topo duma montanha, de ter ouvido uma música numa praia e de me ter apaixonado num jardim. Às vezes com dinheiro, outras vezes sem, mas sempre com o tempo todo só para mim. Ainda hoje vivo assim, com os outros a viverem mais depressa do que eu, e lembro-me sempre da minha mãe a sorrir e a dizer que tudo tem solução.

Talvez não haja outro truque nesta vida do que viver sem pressas, mas a pressa de viver não nos deixa percebê-lo. Digo-o eu agora, que quando espreito o saco do meu tempo passado reparo naquilo que não reparei quando o vivi.

Foi a minha mãe que mo ensinou.

9.30.2017

respostas a perguntas inexistentes (377)

Dedos

Estava a falar com a M. ao telefone. Já estivemos apaixonados um pelo outro, mas nunca ao mesmo tempo. Por isso mesmo, aquilo que existe entre nós é uma amizade profunda e, quando olhamos para o nosso passado, é também um desencontro.
Falámos sobre esse desencontro uma vez no sofá da minha casa, depois de vários copos de vinho e um enorme chocolate com passas que fomos comendo devagar. Não sei porquê, mas lembro-me muito bem desse chocolate. Quase que lhe posso sentir o sabor, apesar dos anos que já se passaram. Ela começou a comê-lo por uma das extremidades e eu pela outra, quadradinho a quadradinho. Quando chegámos aos dois últimos pedaços os nossos dedos tocaram-se e, por impulso, acariciaram-se. Lembro-me tão bem do intenso sabor desse toque indelével.
E então hoje liguei-lhe. Ela ficou surpreendida, claro. Há muitos anos que não ouvia a minha voz. Nem eu a dela. Fiquei aliviado por não me perguntar porque é que eu lhe estava a ligar. Sempre que me perguntam isso, a vontade que tenho é desligar o telefone imediatamente. Gosto de amigos a quem posso ligar só porque sim, sem precisar de um motivo técnico qualquer.
Ainda assim, se ela me tivesse perguntado, eu tinha a resposta na ponta da língua. Hoje caminhava em Stoke junto ao Trent & Mersey, um dos dois canais que atravessam a cidade, numa zona onde o cais é tão estreito que é muito difícil duas pessoas passarem uma pela outra sem se tocarem. Foi isso que aconteceu. Por acidente, os meus dedos tocaram nos dedos duma mulher que caminhava no sentido oposto. Pedi-lhe desculpa e ela respondeu "no problem", mas ainda antes de ela ter acabado de dizer a palavra "problem", já esse doce e adormecido toque nos dedos da M. tinha despertado em mim como um urso que termina a hibernação.
Lembrei-me dos dedos dela e do sabor desse chocolate que dividimos há mais de uma década. Essa carícia ficou-me gravada na memória como uma pequena tatuagem no corpo de um gigante, talvez porque tenha sido a forma de eu perceber por uma pequena fracção do tempo, como seria se nos tivéssemos apaixonado em simultâneo.
Sorri à mulher e continuei a caminhar. Ao chegar a casa telefonei à M, para lhe perguntar isso mesmo: se por acaso ela se lembrava desse nosso entrelaçar dos dedos, mas a conversa perdeu-se no nosso passado da mesma forma que eu me perco a caminhar sem destino nesta cidade.
Não perguntei.

3.07.2017

respostas a perguntas inexistentes (376)

A cidade

Vivo nos subúrbios de Sófia, onde os velhos edifícios me lembram as torres de caixotes de papelão que eu fazia quando era criança. Parece que se vão desmoronar a qualquer momento, mas uma força qualquer sobrenatural faz com que se mantenham em pé desde o período em que o país era comunista. O tempo que passou por eles passou também por mim, e revejo as cidades que eu construía na casa dos meus pais nessa infância que teima em não me dizer adeus.
Hoje de manhã, quando saía para o trabalho, cruzei-me com uma vizinha que me sorriu timidamente e me cumprimentou em português. Ensinei-a a dizer "Bom Dia" há alguns meses, mas depois disso nunca mais a vi. Até hoje, claro. Ainda se lembrava da nossa pequena conversa de apresentação e permitiu-me ouvir a minha língua materna logo pela manhã. Respondi-lhe em búlgaro, agradecido.
É claro que podemos ver a cidade como uma série de caixotes amontoados, em esforço para se manterem em pé. Podemos ver-lhe as igrejas, os jardins e o intenso trânsito de automóveis normalmente velhos e ruidosos, mas nunca a conhecemos mesmo enquanto não nos cruzarmos com um vizinho de manhã na escada do nosso prédio. Era essa a maior curiosidade da minha infância: como seriam as pessoas das cidades improvisadas por mim.
O tempo trouxe-me também o Amor de uma mulher. Depois de outra e mais outra. Aprendi, felizmente, pouco sobre essa matéria, mas o suficiente para saber que ele é como uma cidade. O que nunca percebi é se devemos procurá-lo a ele ou se é melhor que ele nos encontre a nós, por acaso, numa esquina e numa hora ao acaso. Falo ainda do Amor, claro.
Às vezes, muitas vezes, sou só eu e a cidade. É com ela que falo sobre isso enquanto caminho só. Os eléctricos mastigam o alcatrão da estrada velha, as pessoas caminham como se fossem formigas assustadas e os automóveis roncam como animais enfurecidos. A minha vizinha afasta-se e diz-me adeus com a mão esquerda, enquanto com a outra segura um saco térmico com o que suponho ser o almoço. Nunca senti falta desta cidade antes de a conhecer. E no Amor?

3.02.2017

respostas a perguntas inexistentes (375)

deserto

Tomo um café logo pela manhã numa bomba de gasolina. É estranho, este prazer de sentir os primeiros aromas da Primavera misturados com o cheiro a alcatrão e a petróleo. Uma mulher bonita acabou de passar por mim, depois de pagar o seu abastecimento, e partiu num velho desportivo vermelho deixando atrás de si uma pequena nuvem de poluição. Ia em passo apressado, como se toda a vida dependesse da sua capacidade de chegar a tempo ao seu destino. Se eu pudesse dizer-lhe alguma coisa, era que a vida continuou depois dela partir. Mas não posso.
O que aconteceu então foi que um funcionário deixou cair um tabuleiro com copos e canecas de café que se desfizeram em cacos num barulho ensurcedor. Por um momento todos os presentes olharam por breves segundos para o local da explosão e logo voltaram aos seus pensamentos e pequenas acções. Eu também. A minha pequena acção foi terminar de comer uma fatia de banitsa com abóbora e agora o meu pensamento navega pelos desertos do meu passado.
De certa forma, todos encontramos desertos nas nossas vidas, sejam eles de trabalho, de alegria, de afeto ou de outra coisa qualquer. Quase todos os meus desertos foram de Amor e deram em longas viagens pelas áridas dunas de areia que se formam em nós quando a nossa palma da mão também se sente deserta. Penso numa dessas viagens e nas fotografias que fiz. De certa forma, vim dar aqui, a este país e a esta estação de serviço.
Todos os Amores têm sabor. Podem ser doces ou amargos, verdes ou maduros, insossos ou apurados. Só lhes sentimos o sabor se soubermos fazer cada um desses desertos a que a vida nos obriga ou, pelo menos, é nisso que acredito.
A banitsa soube-me bem. Tinha abóbora, queijo branco e, claro, massa folhada.


8.31.2016

respostas a perguntas inexistentes (374)

Tempestade

No meio do nada há um edifício. É onde trabalho. Tem um ar futurista por fora e ainda mais por dentro. Um jardim interior e portas que se abrem com cartões de identificação. Sempre que o vejo, ainda ao longe, lembro-me das noites que passei sozinho numa das suas salas de vidro, no último andar, no meio duma tempestade de Verão. Souberam-me bem, essas noites. Eu estava em paz e o céu estava zangado, o que me dava uma ainda maior sensação de conforto.
Lá dentro encontra-se o mundo. Pessoas de diferentes partes do planeta que falam línguas também diferentes. Algumas sorriem-me, outras não. São como eu. Às vezes sorrio, outras não. E no meio dessas tempestades lembrava-me duma mulher que nunca sorri.
É uma pequena criminosa e eu apanhei-a em flagrante delito numa manhã qualquer. Uma fila generosa de pessoas dessas que vêm de diferentes parte do globo esperavam vez na entrada principal do meu andar. Cada uma delas passava o seu cartão de identificação, que respondia com um pequeno e agudo sinal sonoro, bip, para depois dar um pequeno empurrão à porta. Sem ninguém perceber, é um gesto bonito, esse empurrão. Permite que a porta não se feche totalmente e evita que o próximo faça o esforço todo para a abrir de novo. Ela não o fez. Sem sorrir, aproveitou o empurrão anterior para passar e a porta fechou-se atrás de si com um estrondo.
Felizmente, atrás dela vinha um homem que sorri. Passou o seu cartão, bip, e a fila de formigas voltou à rotina de sempre. Eu também voltei à minha rotina de sempre, mas com aquele pequeno crime guardado na minha mala de memórias recentes.
Quando voltei a esta memória já ela estava noutra mala, naquela que guarda experiências mais antigas. Era fim de tarde e alguém pintara no céu uma imensa aguarela negra. O meu corpo chorava algumas lágrimas de suor por causa do calor intenso e eu dirigira-me a um bar perto do edifício para beber qualquer coisa. Antes de entrar, pela vidraça fumada reparei nela. Ia a sair exactamente naquele momento e eu abri a porta e dei-lhe passagem. Ela olhou para mim durante três ou quatro segundos e agradeceu-me em italiano. Não sorriu.
Nessa noite trabalhei no meio da tempestade.

6.17.2016

respostas a perguntas inexistentes (373)



café

Coloco duas colheres de café numa cafeteira de vidro antiga, fervo um pouco de água e misturo. Tenho que esperar cerca de um minuto para que o filtro humedeça e possa descer pelo vidro suavemente, caso contrário fará um movimento abrupto e desperdiçarei café.
São cerca de dois a três minutos para preparar a bebida e, sempre que o faço, lembro-me da minha máquina de pastilhas em Portugal. Não com saudade, mas porque essa é mais uma memória que me ajuda a entender-me a mim mesmo. É o tempo, pá. Do que me lembro é de estar impaciente durante os vinte segundos que demorava a tirar um café nessa máquina e então reparo como estou a ganhá-lo. Ao tempo, repito.
Sento-me a ver a mistura a fazer-se e contemplo-a ao mesmo ritmo da vida. É sempre assim. Ainda ontem me sentei num bar no centro da cidade e pedi uma Kamenitza de meio litro. Não sei quanto tempo estive a ver o desfile de transeuntes lá fora, através duma janela empoeirada, como se o tempo estivesse a contar apenas para eles. Depois duas mulheres pararam a conversar e uma delas olhou para mim duas vezes. Trocámos um sorriso e o barulho do antigo relógio de cuco do bar tornou a fazer-se ouvir.
Pensamos que a solidão se dá quando estamos sós, mas não é verdade. A solidão dá-se quando não sabemos estar connosco, mesmo que estejamos rodeados de pessoas. É uma cobra, essa gaja. Até no Amor mais intenso pode aparecer a deslizar, se não aprendemos a fazer um café de três minutos aproveitando a vida.

3.21.2016

respostas a perguntas inexistentes (372)

São duas e dezasseis da manhã. Não tenho relógio nem telemóvel comigo, mas acabei de passar por uma janela aberta e lá de dentro veio um grito que picou o silêncio como uma agulha: "São duas e dezasseis da manhã! Deita-te!". É por isso que sei as horas. A noite é de seda escura.
Era uma voz de mulher, talvez a mandar o filho para a cama. A rua onde caminho atingiu o seu ponto mais alto e posso ver a cidade que se estende até ao mar. Algumas luzes pairam acesas no céu e confundem-se com o céu estrelado. Talvez nelas haja mais mães a mandar um filho para a cama. Talvez um casal ainda discuta o péssimo domingo que teve ou um pai fume um cigarro cansado. Em cada luz acesa podem estar duas pessoas que se encontraram por acaso na vida, se apaixonaram e agora estão ali num gesto comum qualquer às duas e dezasseis da manhã. Talvez haja sexo por aí.
Uma vez percorri esta mesma rua de mão dada, também durante a noite. Estava apaixonado e não reparei em nenhum ponto brilhante na sombra de um edifício. Queria chegar a casa o mais depressa possível para curar o corpo da minha bebedeira de Amor. Talvez alguém, como eu, tenha reparado nesse dia na luz acesa da minha casa e pensado exactamente o mesmo que eu.
Quando duas pessoas se apaixonam, depois do Amor e do corpo, querem o conforto que um gesto comum pode dar às duas e dezasseis da manhã. Se o tiverem, estão bem.

3.18.2016

respostas a perguntas inexistentes (371)

fazer tempo

Às vezes falamos ao telefone. Ela conta-me tudo o que não se passa com ela e eu conto-lhe tudo o que não se passa comigo. É sempre assim, quando duas pessoas mantêm uma distância táctica entre si. Contam tudo uma à outra, menos aquilo que são e que vão sendo.
É o estado da não paixão. Não se apaixonaram, mas têm pena. Se o tivessem feito, talvez fosse bom. É uma tristeza não controlarmos as nossas paixões.
Hoje foi um desses dias. Falámos ao telefone e ela disse-me que estava a fazer tempo antes ir trabalhar. Imaginei-a em casa, encostada a uma máquina parecida com qualquer uma da Revolução Industrial. Ela rodava uma manivela e do outro lado saíam relógios cujos ponteiros rodavam em sentido contrário. Fazia tempo, portanto. Se um desses relógios rodasse duas horas, era duas horas que tinha feito.

- Ninguém faz tempo, Marta. O tempo está feito e vai passando por nós.

Ela riu-se. Depois gastámos um quarto de hora do nosso tempo a contar o que não se passa connosco. É de livre vontade e sabe bem. O tempo é o preço que pagamos para estarmos com quem nos faz sentir bem.
Combinámos mais um café, este fim de semana no sítio do costume. Não fazemos tempo, mas temos que saber o como gastamos. O tempo é a nossa única fortuna incalculável.
E ela tornou a sorrir.

3.16.2016

respostas a perguntas inexistentes (370)

fixe

É madrugada de um dia qualquer. Pela primeira vez em muitos dias tive uma noite de sono como as pessoas normais, aquelas que se deitam à noite e levantam de manhã para ir trabalhar, que se apaixonaram várias vezes quando tinham vinte anos, apenas uma quando tinham trinta e nenhuma depois disso ou, se o fizeram, foi num segredo tão grande que nem elas perceberam.
O Sol de Inverno percebe-me, no entanto. Talvez por isso me tenha vindo cumprimentar enquanto bebia o café da manhã na janela da cozinha. Tenho quase quarenta e cinco anos e a minha vida tropeçou enquanto subia a montanha, seja lá isso o que for. Andei aos trambolhões até parar junto a uma queda de vários metros. Foi-se o emprego, foi-se a conta bancária, foi-se o Amor também. Veio uma mão levantar-me e aqui estou eu, a tomar café na janela da cozinha.
Lá fora, numa rua pouco movimentada, um puto joga sozinho à bola chutando-a repetidamente contra a parede de um prédio. Tem piada, é mais ou menos o que eu tenho feito nos últimos anos da minha vida. Se ele olhasse agora para cima, acho que lhe fazia um sinal qualquer com a mão. Fechava-a e esticava apenas o polegar, por exemplo. Fixe.
Pondo a mão no vidro, sinto algum calor da nossa estrela. Sei que o seu tamanho é trezentas e trinta e três mil vezes o da Terra. Ainda assim, tão delicado que me vem aqui aquecer sem me incendiar ou queimar. Toca-me como se fosse um imenso monstro bom. É como o Amor. Quando acontece, claro. 
É também como o sorriso da mulher que me disse precisamente isto e por quem me apaixonei durante uns minutos. Cruzámo-nos no café e ela reconheceu-me de um tempo distante. Bebemos uma cerveja e conversámos sobre as nossas montanhas e as nossas quedas. Uns minutos, talvez vinte. Uma eternidade para quem se sentia estéril até então.
Vem aí uma vida inteira, diferente do que foi até aqui. Um resto de café já secou no fundo da chávena que tenho na mão esquerda e, com a direita, faço o sinal de fixe ao miúdo que está na rua. Ele responde. Algumas pessoas normais caminham sob o mesmo Sol que eu. O que nos distingue talvez seja apenas isso: ainda me apaixono por aí. Fixe.

3.01.2016

respostas a perguntas inexistentes (369)

A saudade de um Amor nunca morre. Adormece, mas nunca morre. 
É por isso que, com o tempo, torna-se mais difícil apaixonar-me por alguém. Um Amor tem que ser forte e intenso, mas não pode acordar os anteriores. Esta verdade não é má. Aliás, é essencialmente boa. Torna o Amor mais raro, mas também melhor. Mais acolhedor.
A saudade de um Amor acorda com as coisas mais simples e essenciais da vida. Uma fotografia, uma canção, um copo de vinho ou um cheiro. Qualquer momento que me transporte para um momento passado de intensa felicidade e ela, a saudade, desperta como se fosse uma princesa adormecida numa história da Disney.
Amar depois dos quarenta é mais assim, sempre com um passado. Às vezes acho que a maior parte das pessoas pensa que dois quarentões Amantes devem esquecer os seus Amores passados. Eu discordo. Devem sempre lembrar-se, mesmo que durante o sono. É a única forma de cada vez se Amar melhor e haver uma hipótese de não sair desiludido da coisa.
Só quem se lembra dos seus Amores passados pode apaixonar-se a sério outra vez, sem ter que fazer um reset à vida para esquecer tudo aquilo que viveu. A esse propósito, quem é que quer ao seu lado na cama quem não se lembra de viver nada? Eu não, certamente.
Marcámos um encontro num bar mal iluminado. Meia hora depois, o copo de vinho dela estava cheio e o meu vazio. Tinha sido assim toda a noite, com ela cheia de tudo e eu vazio de nada, a ouvi-la falar dos Amores passados que eu, por manifesta incapacidade de a Amar, tinha despertado.
Depois acordou. Perguntou-me se estava falar demais da sua vida. Respondi-lhe que a saudade de um Amor nunca morre. Adormece, mas nunca morre. 

2.25.2016

pensamentos catatónicos (345)

o voo dum albatroz

Acho que é a recordação mais antiga que tenho de suspirar de Amor por uma mulher. A Joana usava tranças e tinha um vestido azul, eu tinha uma fisga de madeira feita pelo meu avô e um estojo com vinte e quatro canetas Molin de cor em cima da carteira da escola. A professora mandara-nos ilustrar um texto e ela virou-se para trás, na minha direcção, e perguntou-me se podia usar o meu amarelo. Corei, talvez demais, e emprestei-lhe todos os seis amarelos que tinha no estojo, do mais claro ao mais escuro e um muito específico a que chamávamos amarelo torrado.
O meu desenho era composto por várias casas, uma cobra, uma girafa, alguns automóveis e crianças a jogar à bola. Usei todas as cores para o pintar menos esses amarelos, apenas pela falta de coragem de lhos pedir de volta. Acho, por isso, que é também a recordação mais antiga que tenho de uma mulher me achar parvo.
No fim do dia, às seis e um quarto da tarde, a campainha tocou e ela devolveu-me as seis canetas. Agradeceu-me e deu-me um beijo na bochecha. Saí a correr pela sala e só parei quando cheguei a casa ainda eufórico. Não sei explicar porquê, mas creio que foi por causa do sonho. Todas as noites antes dessa eu sonhara com a Joana. Continuei a fazê-lo nas noites que se seguiram. Infelizmente, os pais dela compraram-lhe um estojo com trinta e seis canetas e ela nunca mais precisou de mim.
Mais tarde, já adulto e com mais paixões sofridas, em que entretanto o sexo também se metera como um intruso embriagado, percebi-me nessa infância. O Amor que sentimos não é aquele com que nos deitamos, mas sim aquele com que acordamos. Depois do sonho, quero eu dizer.
Os dias bons e os dias maus são sempre um estímulo para nos sentirmos apaixonados, nem que seja de forma tão efémera como o voo duma borboleta tonta. Ou porque queremos aproveitar os bons ou porque precisamos desesperadamente de atenuar os maus. Já o Amor que sentimos ao acordar, depois de ter tido a oportunidade de sonhar, é aquele que pode transformar um voo de borboleta num voo de albatroz. Mais longo, mais decidido, mais forte.
Foi na primeira manhã em que acordei com a Márcia que me assaltou esta realidade. Depois duma noite de uísque, cerveja, beijos e sexo passáramos directamente para o sonho, até às primeiras lâminas da luz do Sol nos cortarem essa paz. 

- Ainda aqui estás? - Perguntou.
- Não é suposto estar?
- Não. Devias ter saído durante a noite...

Vesti a roupa que se espalhara pelo quarto como um explosivo fogo de artifício e saí como um foguete queimado. Já na rua, estava a contar as moedas para perceber se podia beber um galão e comer uma torrada na pastelaria mais próxima quando ela veio à janela. 

- Desculpa.

Não respondi.
Porque a vida não espera, o Amor também não. A Irina queria escrever qualquer coisa e pediu-me uma caneta emprestada, já a minha torrada se transformara em migalhas. Fiquei a vê-la, na mesa ao lado, a transcrever apontamentos entre guardanapos e um caderno pequeno. Quis-me ir embora, mas não tive coragem de lhe pedir a caneta de volta, por isso esperei pacientemente que ela terminasse a escrita.
Só ma devolveu uma hora depois, agradecendo-me o gesto. Lembrei-me do beijo que a Joana me dera na bochecha muitos anos antes e que ali parecia faltar, por isso ganhei coragem e convidei-a para jantar. Quando dormimos juntos pela primeira vez, uns dias depois, ela resistiu aos meus avanços nocturnos até o sono me derrotar. De manhã, depois do sono e do sonho, ela ainda lá estava. 
O nosso Amor foi o voo dum albatroz.

2.19.2016

respostas a perguntas inexistentes (368)

Depois de um Amor qualquer, é preciso aprendermos a não Amar durante algum tempo

Depois de um Amor qualquer, é preciso aprendermos a não Amar durante algum tempo. É a única forma de conseguirmos Amar outra vez.
Há pessoas que nunca param de Amar. Amam sempre e insistentemente como se o Amor fosse apenas o verbo e não a pessoa que se Ama. Nessas alturas e nessa situação, qualquer um que se atravesse na sua mira passa a ser Amado. Mas mal, claro.
Ser mal Amado é isso mesmo. Alguém nos Ama apenas porque precisa de Amar alguém, seja lá quem for, e fomos nós que nos atravessámos à frente. Podíamos ter sido atropelados por um automóvel na estrada ou ser atingidos por um raio, mas acabámos por ser Amados por um vazio maior do que o próprio vazio.
O Amor dá trabalho, porra! É preciso saber isso. Se ele estivesse ao virar de cada esquina, não era sequer Amor. Era um mero passatempo de fim de semana. Também pode ser, se tivermos noção que não é a mesma coisa.

Subi os degraus dos três andares para ir a casa dela. Quando lá cheguei, a porta já estava aberta. Limitei-me a limpar os sapatos num tapete que dizia "welcome" e fechar a porta atrás de mim. Olhei para o cinzeiro cansado para olhar também para ela, cujas palavras tinham morrido, pareceu-me a mim que sufocadas por meia dúzia de cigarros ansiosos.
Ela estava sentada no sofá azul onde uns dias antes me tinha dito que ia parar e não Amar durante algum tempo. Mas não conseguiu. Nunca consegue. Está sempre a Amar como se o Amor fosse a munição duma arma automática. Quem se atravessar à frente pode dar o corpo às balas.
Há um homem qualquer que dá isso mesmo: o corpo. Depois vai-se embora por tempo indeterminado e ela fica a fumar cigarros na sala. Nervosa. Eu apareço, quase sempre com uma garrafa de vinho, e digo-lhe que depois de um Amor qualquer é preciso aprendermos a não Amar durante algum tempo. É a única forma de conseguirmos Amar outra vez.
Os homens são lixados. As mulheres também.

2.15.2016

respostas a perguntas inexistentes (367)

Não sei como é que começa um Amor. Sempre que vivi o princípio de um Amor só me dei conta dele quando já tinha começado. O teu não foi diferente. Dei-me conta dele numa sexta-feira de manhã em que a temperatura estava anormalmente baixa. Três graus, creio. Só não me lembro do mês nem do ano. Estávamos a tomar o pequeno-almoço numa pastelaria de esquina e ainda não sabíamos que nessa noite íamos dormir juntos.
Do lado de fora passou uma mulher que levava uma criança pela mão. Por sua vez, a criança levava um balão verde que parecia uma pássaro aprisionado pelos pés. Queria voar, mas um cordel não o deixava. Rimo-nos, eu e tu, da ideia de um balão poder ser prisioneiro. Quando nos calámos perdi-me nos teus olhos. Verdes também. Fez-se silêncio.
Passei a chamar verde ao meu Amor por ti.
Também não sei como é que acaba um Amor. Sempre que vivi o fim de um Amor só me dei conta dele quando já tinha acabado. O teu não foi diferente. Dei-me conta dele numa segunda-feira de Verão. Só não me lembro do mês nem do ano. As árvores da rua estavam em flor e eu só reparei nisso quando desliguei o telefone. Foi preciso dizeres-me que o nosso Amor tinha morrido para eu voltar a olhar para o mundo. Até então, acho que o mundo eras tu.
O chão estava pintado de pétalas brancas e cor de rosa que cheiravam à minha memória do teu corpo. Um miúdo de skate caiu a tentar fazer uma acrobacia qualquer no passeio e uma mulher, creio que a mãe, foi ajudá-lo a secar as lágrimas. Reparei que era bonita, coisa que eu já não estava habituado a fazer.
Não sei quanto tempo durou o nosso Amor. Sei que era verde e cheirava bem.

2.12.2016

respostas a perguntas inexistentes (366)

Um lugar comum

Um destes dias aproveitei um interregno da chuva para caminhar na praia. Desde a minha adolescência que falo do mar aos meus amigos como uma necessidade constante na minha vida e, mesmo que não o veja. preciso de saber que ele está ali. O Atlântico, digo.
Na verdade, para além do Atlântico, sinto o mesmo com alguns amigos e familiares. Posso não os ver durante algum tempo, mas preciso de saber que estão ali. Da mesma forma que os visito ou marco um café com eles de vez em quando para matar saudades, vou caminhar junto ao mar outras vezes pelo mesmo motivo.
O Inverno é a minha estação preferida para o fazer, talvez por as praias estarem desertas quando o tempo piora. Gosto do desconforto da areia molhada a entrar-me nos sapatos e de sentir a ameaça do mar a morrer devagar aos meus pés como se fosse um gigante que se aninha docemente quando me vê. Às vezes paro e olho para trás para ver as pegadas que deixo na areia a desaparecer com o vento e com a água. É um lugar comum, eu sei, mas lembra-me sempre as memórias da minha vida a diluírem-se no tempo que passou. E é então que elas vêm novamente à superfície.
Nesse dia, em que caminhava sozinho com o segredo do vento, reparei que alguém fazia o mesmo no sentido contrário ao meu. Era apenas um ponto escuro na areia a deslocar-se na minha direcção e agradou-me a ideia de que pudesse ser alguém com pensamentos similares aos meus. À medida que nos fomos aproximando, apercebi-me que era uma mulher. Os seus cabelos dançavam energicamente com o capucho de um casaco grosso e de vez em quando ela parava para olhar para trás. Tal como eu, talvez estivesse também a ver as sua próprias pegadas a desaparecer.
Quando finalmente nos cruzámos dissemos olá um outro e continuámos.
E se nos tivéssemos cruzado numa avenida qualquer da cidade? É claro que não nos cumprimentávamos e, muito provavelmente, nem reparávamos um no outro. Continuei com esta lucidez de que a aproximação a alguém só é possível com alguma intimidade e partilha. Neste caso concreto, a nossa partilha era o mar. A intimidade também.
Olhei para trás mais uma vez, já a alguns vinte metros de distância dela, e os nossos olhares cruzaram-se. Dissemos adeus um ao outro e continuámos cada um no seu percurso solitário.

2.10.2016

respostas a perguntas inexistentes (365)

Ninguém é feito para o outro, mesmo que o Amor faça parecer que sim.
Dizia-me um amigo meu, este fim de semana, que todos os Amantes têm diferenças estruturais entre si que os separarão um dia mais tarde. Concordo com ele, embora acredite que esse "mais tarde" se possa eventualmente adiar para além da morte.
Quando nos apaixonamos recusamos essa análise, claro. Nenhum recém-apaixonado é capaz de dizer a si mesmo que se apaixonou por alguém incompatível consigo. Aliás, seria uma análise serôdia e inconsequente. De qualquer forma, o tempo tratará desse assunto.
E então? Vale a pena apaixonarmo-nos quando temos a consciência de que o Amor tem por definição um fim? Claro que sim. Aliás, uma vida com várias histórias de Amor pode até ser melhor do que uma vida com apenas uma. Eu até diria que o é quase sempre. O problema são os fins, sempre tristes e longos, mas a verdade é que é deles que depende um início, sempre feliz e curto.
É que uma história de Amor é sempre importante, tenha sete semanas ou sete anos. Aliás, é entre o fim de uma e o princípio de outra que percebemos o quão difícil é apaixonarmo-nos. A não ser quando por acaso acontece, claro.

2.05.2016

respostas a perguntas inexistentes (364)

No Amor, o resultado total é sempre maior do que a soma das partes. Começamos do nada mais nada para chegar à vontade de entrelaçarmos os braços um no outro, porque Amamos sempre alguém que já nos foi estranho e não nos dizia nada.
Se calhar não damos conta da quantidade de Amores possíveis que passam por nós todos os dias e nem reparam que existimos. A mulher que hoje de manhã deixou cair a chave do carro, por exemplo. Levava tantas coisas nos braços que não podia baixar-se para apanhá-la. Deixe estar, disse eu. Ela esticou o dedo indicador da mão direita onde eu a pendurei pela argola. Obrigada, disse ela.
Depois afastámo-nos. Ela entrou num edifício de cinco andares e eu caminhei mais uns dois quilómetros até casa.
E se nos tivéssemos conhecido em férias numa praia qualquer? Ou num workshop de fotografia? Ou numa sessão de cinema? 
Conhecermo-nos num contexto que permita apaixonarmo-nos é tão pouco provável como termos nascido e sermos quem somos num Cosmos em que, como disse Sagan, há mais estrelas do que grãos de areia nas praias da Terra.
Ainda assim nós nascemos.

2.03.2016

respostas a perguntas inexistentes (363)

Eu estava a lavar a louça e parti um copo

Lembro-me de três coisas. Quando eu lavava a louça ela pedia-me sempre para não partir os copos de vinho, na cozinha havia um relógio mecânico que se ouvia no quarto quando havia silêncio e de manhã havia sempre um intenso cheiro a café.
Entre o vinho, sempre tinto e bebido à noite em doses mais ou menos generosas, e o café matinal fazíamos Amor. Passávamos o resto do tempo a tentar não quebrar o que havia entre nós, o que implicava um esforço tão grande como aquele que eu fazia para não partir o pé alto dos copos de cristal que ela guardava como relíquias numa armário da sala.
Era uma estranha sensação de conforto não nos apercebermos que o nosso Amor já tinha acabado. Talvez por isso repetíssemos sempre as mesmas rotinas na cama e fora dela, enquanto o relógio marcava o tempo a passar como se cada segundo fosse uma pequena e indelével ferida.
Além disso, pouco mais. Às vezes o vento batia nas janelas e abria-as. Vinha ver se ainda estávamos entretidos um com o outro, esquecendo-o a ele e àquilo que ele varria quando o Outono pintava a rua de amarelo e de vermelho escuro. Uma vez ela suspirou e fechou a janela com mais força do que o habitual. Parecia zangada. Depois encostou a cabeça ao vidro e esperou doze segundos até falar.

- É estranho a morte das folhas das árvores ter cores tão vivas.

Eu estava a lavar a louça e parti um copo.

1.29.2016

respostas a perguntas inexistentes (362)

Pára com isso!

Tenho um dedo torto. Quase ninguém sabe porque não se nota. É preciso mexer-me nas mãos para perceber esta pequena deficiência no meu mindinho esquerdo. Às vezes quando estou sozinho, mesmo sabendo que isso é impossível, tento endireitá-lo com a mão direita, forçando-o a esticar-se. Ele estala, mas nunca me dói. Depois paro.
Acabei de o fazer agora mesmo, sentado na areia húmida desta praia que as ondas do mar estão a beijar como se beija repetidamente a face duma mulher que se Ama. São beijos pequenos e repetidos. Lembro-me da Ana, que às vezes me segurava as mãos, mas mandava-me sempre parar quando me via a esticar o dedo.

 - Pára com isso! - Dizia.

Depois dava uma estalada no ar, como se estivesse a enxotar moscas das minhas mãos. Eu parava. Enquanto caminhávamos os meus lábios iam dar à pele das bochechas dela em pequenas e inofensivas ondas de mar, até ela me informar que já estava cansada.

- Pára com isso! - Dizia.

Repetia o gesto da estalada no ar, mas enxotando as moscas da minha cara.
A Ana não sabe, mas às vezes parece-me que vou ouvir o "pára com isso" dela. Aconteceu-me neste exacto momento em que tentei esticar o meu dedo torto. Não ouvi, claro. Ela não está comigo.
Aquilo que ela me ensinou, no entanto, ainda está comigo. É a passagem do tempo e de como algumas coisas nos ficam para sempre. Outras não.