10.30.2013

conversa 2043

(ao telefone)

Ela - Preciso de ter dois dedos de conversa contigo urgentemente. Quando estiveres em Aveiro liga-me.
Eu - Porquê?
Ela - Agora não me estou a lembrar.
Eu - Então não é assim tão urgente.
Ela - É, é. Que é urgente, eu lembro-me.

10.29.2013

conversa 2042

Ela - Não consigo perceber porque é que nunca tive uma relação com um homem que durasse mais de três ou quatro meses.
Eu - Mas querias?!
Ela - Eu queria ter uma relação a sério, mas nunca funciona.
Eu - Hum, hum...
Ela - Eu sou uma mulher bonita, não sou?
Eu - És.
Ela - Não sou burra nenhuma, pois não?
Eu - Não.
Ela - E até sou afável, não sou?
Eu - És.
Ela - Lá está.
Eu - Lá está o quê?
Ela - A culpa é sempre dos homens.

10.25.2013

conversa 2041

Ela - Por causa da chuva, estraguei a minha persiana.
Eu - Por causa da chuva?!
Ela - Sim. Na ânsia de apanhar a roupa que estava a secar, puxei-a com demasiada força e foi toda lá para dentro.
Eu - Ah! Então não deves ter estragado nada.
Ela - Não?
Eu - Não. Deve ser só preciso abrir aquilo e ir lá desenrolá-la. Depois é só um ou outro ajuste...
Ela - E tu sabes fazer isso?
Eu - Qualquer um sabe.
Ela - Queres jantar lá em casa este fim de semana?

10.22.2013

conversa 2040

Ela - Acho incrível a forma como algumas pessoas discutem alguns assuntos.
Eu - Porquê?
Ela - Porque, quando partem do pressuposto que não concordam uma com a outra, são incapazes de ouvir os argumentos do outro. No fundo já não querem ouvir o que o outro tem a dizer, mas sim defender a sua posição mesmo que ela já não seja defensável.
Eu - Passaste por alguma discussão assim, foi?
Ela - Sim, com o meu ex-marido. Sabes que eu trabalho longe de Aveiro... acho que era melhor levar o nosso filho comigo.
Eu - E ele não concorda contigo?
Ela - Não. Quer que o miúdo fique em Aveiro.
Eu - Quais são os argumentos dele?
Ela - Sei lá. Achas que eu ainda dou importância ao que ele diz?!

10.21.2013

respostas a perguntas inexistentes (263)

Lembro-me duma árvore com um tronco sólido e sinuoso, dum carro abandonado com os vidros partidos, duma capela com velas a arder e dum bêbado numa esquina a gritar com quem passava. Era a minha rua, que não tinha princípio nem fim.
Era também o meu estádio de futebol' onde uma bola de futebol vazia se queixava, em frágeis e sofridos sopros, dos pontapés que levava. Lembro-me das balizas feitas com pequenos montes de pedras e de camisolas sujas. Lembro-me das mulheres que vinham à janela chamar os miúdos para o almoço ou para o lanche, algumas delas com rolos na cabeça e lábios pintados de vermelho vivo.
Lembro-me do único café que tinha o único televisor a cores da cidade, onde o meu me levava depois do jantar para beber uma Sumol de laranja, e de fazer uma pequena cidade em cima da mesa com a garrafa, o copo e o porta-guardanapos, para conduzir o meu Morgan Plus em miniatura enquanto não começava o programa dos Marretas.
Lembro-me de revelar à Dora, que vivia do outro lado da rua, um dos mais profundos e misteriosos segredos da vida, e de ela me dar um beijo como recompensa. Fez-me corar, fez-me fugir.

- O Monstro das Bolachas é azul.
- Azul escuro ou azul claro?
- Não sei bem, mas é mesmo muito azul.

Lembro-me de tudo isso nesta outonal tarde, muitos anos depois. Da janela da minha casa vejo agora outro mundo. Uma mulher, que passa as tardes a fumar numa janela cansada, dá para uma rua despovoada. As persianas dos prédios estão quase sempre fechadas, como se quisessem esconder alguma coisa. Penso nos segredos que desapareceram e das ruas que já não têm crianças.
Ainda estou, de vez em quando, com a Dora. Há dias, durante um curto café a seguir ao almoço, perguntei-lhe se se lembrava deste episódio das nossas vidas e ela abanou afirmativamente a cabeça. Deu-me um beijo igual ao de há trinta anos atrás, um beijo roubado e rápido. Fez-me corar, mas não me fez fugir. Fiquei a ver aquela cidade caótica em cima da mesa onde se amontoavam duas chávenas, um pacote de açúcar por abrir, um copo de água e um porta-guardanapos. Revelou-me outro segredo.

- Tenha saudades tuas.
- Saudades escuras ou saudades claras?
- Não sei, mas mesmo muitas saudades.

Eu também. Talvez o Amor seja isso mesmo, ter saudades de quem está ao nosso lado.

10.18.2013

conversa 2039

Uma noite ela disse-me.

- Os homens não sabem estar sozinhos.

Fiquei na mesma posição em que estava, deitado na areia da praia, a olhar na direcção do céu estrelado. A quietude do meu corpo contrastava com a tempestade que nascera dentro de mim, mas mantive-me assim, com a sensação de ser uma caixa com uma bomba relógio no interior. Não lhe perguntei porquê. Mais, nem sequer tentei adivinhar porquê.

- Em que é que estás a pensar? - Perguntou.
- Em nada.
- Quando uma mulher está sozinha, sente-se bem. Quando uma homem se encontra na mesma situação, entra facilmente em desespero.

Na verdade eu estava a pensar em como a minha vista conseguia englobar simultaneamente estrelas tão distantes umas das outras. 

- Então são as mulheres que não sabem estar sozinhas.
- Achas? - Perguntou.
- Acho.

E ela ficou na mesma posição que eu.

10.12.2013

conversa 2038

Ela - Tive, pela primeira vez na minha vida, um sonho húmido. Nem sabia o que isso era...
Eu - A sério?!
Ela - Sim... e foi contigo.
Eu - Comigo?! Espectacular.
Ela - Sim. Eu estava no pátio a ler um livro e tu dentro de casa, de esfregona na mão, a limpar o chão.
Eu - Foi esse o sonho?
Ela - Foi.

10.10.2013

conversa 2037

Ela - Mas que naco de gajo que conheci hoje!
Eu - Então?
Ela - Um homem com umas mãos enormes. Sempre adorei homens com mãos grandes.
Eu - Mãos grandes?! A que propósito?
Ela - Tenho mesmo que te explicar?
Eu - Tens.
Ela - olha bem para mim.
Eu - Sim...
Ela - O que é que eu tenho grande e que precisa de mãos grandes para apertar?
Eu - O nariz?
Ela - Eu tenho mãos pequenas, mas levas já duas chapadas.

10.09.2013

respostas a perguntas inexistentes (262)

Regresso à luz que costuma visitar-me todas as noites sós. Aquela que vem, trémula, dum fraco candeeiro público e se deita silenciosamente no meu sofá. Deito-me com ela, sem sexo, e abraço-a. Conversamos sobre a pressa dos dias que passam e se ultrapassam, sobre como o Amor neles se acanha e, finalmente, sobre o sabor dum copo de uísque novo. Digo-lhe que contei pelos dedos os sorrisos que vi hoje, durante todo o dia, na rua e no café da esquina. Enfim, no meu pequeno mundo.

- Quantos?
- Cabem todos numa só mão.
- Então fecha-a e guarda-os.

Regresso a um baloiço velho, já velho quando eu era criança, onde os dias baloiçavam numa tontura desigual. Era a Helena, que ia sempre mais alto do que eu e depois punha-se em pé. Chegava a ficar na horizontal, quando atingia a altura máxima atrás ou à frente e eu, com medo, a dizer-lhe que não me apetecia baloiçar. Quando o fiz, caí, e ela saltou lá de cima para me secar as lágrimas. Deu-me a mão para me ajudar a levantar e eu fechei-a, para guardar a sensação do toque dela.

Regresso a uma incerteza que nada sôfrega no meu copo de uísque.

- Lembras-te de mim?

10.08.2013

conversa 2036

Ela - Divorciei-me principalmente por um motivo.
Eu - Qual?
Ela - Sexo.
Eu - Era mau?
Ela - Era curto.
Eu - Era curto?!?!
Ela - Curto em tempo, curto em tempo... já ouviste falar em ejaculação precoce?
Eu - Ah! Porque é que ele nunca foi ao médico?
Ela - Já ouviste falar em estúpido orgulho de macho?
Eu - Ah!
Ela - Chegou a convencer-me que, se bebesse três ou quatro uísques antes do sexo, a coisa podia durar mais, para eu também aproveitar.
Eu - E experimentaram?
Ela - Sim. Algumas vezes.
Eu - Deu resultado?
Ela - O único resultado que deu foi ele adormecer bêbado em cima de mim algumas vezes.

10.07.2013

coisas que fascinam (163)

As árvores despem-se no Outono, disse ela. Eu confirmei, abanando a cabeça afirmativamente, enquanto aquecia os dedos das mãos na chávena de chá escaldada. Lá fora, como se estivéssemos perante uma pintura viva, as folhas mortas avermelhadas pontilhavam a cidade cinzenta. Lembro-me de acompanhar, com o olhar, um pássaro assustado que batia freneticamente as asas em direcção a lugar nenhum. Acabou por ser refugiar na beira duma janela triste, que muito provavelmente deixara de apreciar as vistas havia muitos anos. Estava fechada, tão fechada como os olhos de alguém que dorme um sono eterno.

A Marta era a companhia ideal para as minhas tardes de silêncio. Tinha sempre qualquer coisa para dizer e não se importava que eu não lhe respondesse. Falava sobre tudo e era capaz de mudar de assunto várias vezes por minuto. Normalmente eu limitava-me a ouvi-la. Lembro-me que gostava de o fazer porque também gostava de a ver sorrir, o que ela fazia constantemente. De resto, ela tinha uma habilidade muito especial para... para qualquer coisa importante que nunca percebi o que era.

- É estranho as árvores despirem-se no Outono! - insistiu ela.
- Porquê?
- Porque está frio. No Inverno deviam vestir-se com um casaco quentinho de folhas. Talvez fosse melhor despirem-se no Verão.
- As árvores não sentem frio nem calor... - respondi.

Ela desfez o sorriso enquanto eu verificava se o chá já tinha a cor pretendida, mergulhando o saco com as ervas várias vezes seguidas no caldo de água quente. Pelo canto do olho, percebi que ela estava desiludida com alguma coisa, mas não fazia ideia do que era.

- O que é que foi? - Arrisquei.
- Quando eu estiver a conversar contigo e te disser uma inverdade, por favor, leva-me a sério. Para seres meu amigo tens que acreditar que eu acho que as árvores têm frio. Está bem?

Tornei a abanar a cabeça afirmativamente. Foi aquela a única vez que a Marta me chamou a atenção numa conversa e mostrou desagrado pela minha resposta. Percebi, nesse dia, que mesmo numa conversa de pacotilha como aquela era importante estarmos os dois ao mesmo nível. A minha observação, embora coerente, tinha cortado a conversa pela raiz. 

- Desculpa. - pedi.

Hoje fui dar uma volta aqui pela zona onde vivo, em Aveiro, que não é propriamente a zona mais bonita da cidade. Sentei-me numa paragem de autocarro e ao meu lado sentou-se uma mulher com a filha, uma miúda com uns cinco ou seis anos de idade. Uma árvore nua contemplava-nos num silêncio sepulcral e a criança perguntou à mãe se ela não tinha frio.
Há muitos anos que não vejo a Marta. Sei que ela foi viver para o estrangeiro há muitos anos e perdi-lhe o rasto. Hoje, no entanto, percebi qual era a habilidade dela de que eu sinto falta. Ser criança. Não pelos gestos infantis, nem sequer por alguma ingenuidade inerente, mas sim pela capacidade que tinha de humanizar tudo o que via. Incluindo eu.

10.03.2013

pensamentos catatónicos (300)

Tenho uma cómoda no meu quarto que foi feita pelo meu avô. Sempre que a vejo, por um curto momento que seja, lembro-me dele. "Olha a cómoda do meu avô", penso. Nela tenho seis gavetas, três mais pequenas e três grandes, e reservo uma destas para guardar tudo o que não cabe em mais sítio nenhum. Ali estão fotografias, cartas, postais, canetas e as coisas mais estranhas que se pode imaginar. Muitos objectos que não têm interesse nenhum, a não ser para mim, porque num determinado momento da minha vida foram importantes. Sempre que os vejo lembro-me desses momentos, tal como a cómoda me lembra o meu avô.
É o caso duma joaninha de corda, por exemplo, que a Raquel me ofereceu quando passámos em frente a uma velha loja de brinquedos na República Checa. Estávamos tão felizes nesse dia, que experimentámos imediatamente o brinquedo no passeio, perante o olhar espantado dos transeuntes que se desviavam daquele insecto metálico que rodopiava no chão. Lembro-me de olhar para a Raquel e de pensar como o mundo se dividia entre nós e todos os outros habitantes do mundo. Depois ri-me. É desse momento que a joaninha me lembra.
Agora mesmo acabei de ler a primeira carta que a minha filha escreveu ao Pai Natal, quando ainda acreditava nele. Emocionei-me. Não pedia nada para ela, mas sim para mim, assim, como "poderes" em vez de "puderes"

Venho dizer que o meu pai queria uma PSP, sabes  eu não sei se podes dar. Se poderes agradecia, eu queria que o meu pai tivesse uma prenda de Natal mesmo que não seja uma PSP. Beijinho

Os objectos têm esta mania estúpida de me fazer viajar no tempo. É por isso que os guardo, seja uma pedra que encontro no caminho ou uma máquina de escrever antiga; um simples lápis de carvão ou um copo de vidro comum.

Sei que um dia qualquer, quando eu morrer, alguém vai tratar de pôr tudo no lixo, mas aí já terão cumprido a sua função de manter a minha vida para além do presente, este presente que deixa de o ser assim que o é. É só por isso que estou a escrever este pequeno texto. Acabei de ir lá fora pôr o lixo orgânico no contentor, onde uma mulher estava encostada sem dizer nada, como se ela própria tivesse sido ali depositada por alguém, como que à espera que outro reparasse nela e ainda a aproveitasse.

- Precisa de alguma coisa? Está bem? - Perguntei.

Ela acordou, como se tivesse acabado de sair dum sono secular. Aos seus pés tinha um saco cheio de objectos que podiam muito bem ser os da minha gaveta. Um pouco de tudo, como se fosse possível embalar uma vida num saco. Abriu-o, pegou num ou dois e meteu-os no bolso, depois atirou o resto para a reciclagem.

- Ele morreu! - disse.

Fiquei a vê-la afastar-se. Compreendo-a.

10.02.2013

respostas a perguntas inexistentes (261)

Desde o fim de semana que estou praticamente remetido ao interior da minha casa, entre algumas canecas de chá muito quente e copos de água onde dissolvo saquetas de paracetamol. Quando passamos alguns dias seguidos fechados em casa, praticamente sozinhos, o mundo lá fora ganha outro significado. É como se fosse o mundo dos outros, o qual vamos observando através da janela como se fosse o telescópio dum submarino.
Saio muito raramente com a desculpa comum de tomar um café no tasco do outro lado da rua, mas a razão verdadeira é precisamente aventurar-me nesse outro mundo e ver algumas caras diferentes daquela que o meu espelho tem a mania de me mostrar. As caras dos outros, que se tornam interessantes mesmo que eu não as conheça de lugar nenhum. É que para além disso, este é o terceiro dia consecutivo em que a minha vida social se resume a conversas ao telefone com a Raquel, a minha mãe e um ou outro amigo. Com uma excepção.
Foi precisamente nesse café que marquei um encontro com a Olga. Ela tinha visto no facebook que eu estava doente e mandou-me uma mensagem privada. "Talvez seja uma boa oportunidade para nos vermos", dizia. E eu, que acho que todas as oportunidades são boas, combinei com ela. Tive que lhe explicar onde vivo, porque não a via há uns quinze anos. Cheguei uns dez minutos antes da hora marcada.
Lembro-me que ela tinha um namorado de quem eu não gostava muito. Um tipo pouco falador, um pouco mais baixo do que eu, que tinha a mania de andar com a chave do carro na mão e que a usava como sinal sonoro para tudo. Por exemplo, quando queria chamar o empregado do café, batia com chave na mesa para atrair a sua atenção. Era uma coisa que me irritava solenemente.
Outra coisa de que me lembro é que ele anulava a Olga totalmente. Quando ela estava sozinha era uma mulher interessante, faladora e que tinha uma opinião sobre tudo, algo que eu apreciava bastante. Quando ele estava com ela, no entanto, era praticamente impossível ouvir-lhe a voz. Transformava-se numa espécie de bicho do mato, mudo e surdo. Mesmo quando eu lhe perguntava fosse o que fosse, era ele quem respondia automaticamente.
Talvez por isso tenha sentido um certo alívio quando a vi chegar sozinha ao café.

- Estás melhor? - Perguntou.
- Já consigo falar. Ontem nem isso conseguia, por causa da garganta inflamada.

Ela riu-se. Pediu um café e um pastel de nata enquanto olhava para a minha chávena já vazia, com um ar compreensivo e como se assim me explicasse que já sabia que eu não queria pedir nada.

- Estás como eu, então! - concluiu.
- Como tu?!
- Sim. Também andei anos com a garganta inflamada. Agora já consigo falar.
- Casaste com aquele teu namorado...
- Sim, mas já me divorciei.

Não me espantou o facto dela ter casado com ele. Espantou-me o tê-lo feito com a perfeita consciência do que estava a fazer. Ela sabia que estava a anular a própria vida ao fazer aquela opção mas, por qualquer motivo que nem ela me conseguiu explicar, fê-lo. Conversámos sobre isso, de forma descontraída, e eu acabei por recorrer também à doçura duma nata. Andou alguns anos calada, a observar o mundo como se não fizesse parte dele. Era o mundo dos outros, disse-me.
Estava doente, concluí.