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1.31.2023

A Dança das Folhas

Lembro-me de algumas folhas secas outonais que dançavam na rua deserta ao som de um vento harmonioso. Primeiro pensei que fossem alguns pardais a lutar por algumas migalhas de pão esquecidas no alcatrão, mas depois percebi que não.

O táxi tinha-me deixado ali com duas malas grandes e um saco de desporto igualmente generoso no tamanho, a dona do hostel onde eu alugara um quarto barato à pressa no terminal dois do aeroporto de Sófia ainda não tinha chegado para me abrir a porta e portanto restava-me esperar. Os meus olhos saltavam entre essa tola dança das folhas de árvore e toda a minha bagagem como uma bola de ténis batida lentamente por dois jogadores que nunca falham, quando se concentravam nas malas mergulhavam também na minha própria vida, que começava ali do zero outra vez.

Tinha quarenta e quatro anos e uma sucessão de empregos mal pagos, recorrentemente com salários em atraso, que mesmo assim todos somados não chegavam ao montante das minhas dívidas. A sensação era a de que o país onde eu vivera a maior parte desses anos me abandonara e como qualquer homem abandonado decidira afastar-me. Sem amuos. Apenas afastar-me.

Até àquele momento a minha vida na Bulgária resumia-se a uma conversa com o taxista sobre os jogadores búlgaros que tinham passado por Portugal e a esse primeiro momento de paz. Paz porque estava longe, só isso. Eu ainda não fazia ideia de que a minha próxima companheira de vida seria búlgara e que a ia conhecer num jardim não muito longe dali cerca de três meses depois.

O ano era 2016 e não estávamos no Outono mas sim no fim de Março. Foi também nesse ano de recomeço que me fui desligando deste blogue que começara dez anos antes, após o meu primeiro divórcio. Desde então muita coisa mudou e hoje vivo no Reino Unido, numa pequena cidade chamada Newcastle Under Lyme. A S. veio comigo, ou melhor, veio ter comigo meio ano depois da minha partida da Bulgária para este país e ainda cá está. Quer dizer, ainda cá estamos. 

Vou com cinquenta e um anos de idade e apetece-me escrever de novo sobre os dias que passam. Vou fazê-lo aqui,  recomeçando sem apagar o passado, alternando o meu olhar entre o que me rodeia e eu mesmo. Talvez as folhas ainda dancem  de um lado as minhas malas cheias de nada ainda estejam por abrir. Vocês são bem vindos. Se quiserem, claro.

5.17.2020

O Síndrome do Peixinho Vermelho

Estou com o síndrome do Peixinho Vermelho, disse ela. Estávamos numa floresta dum país que não era o nosso, até porque eu sou português e ela de lugar nenhum. Só me lembro que as árvores eram muitas e cada uma se tinha vestido duma cor diferente, como se estivessem num baile de finalistas.

E eu perguntei-lhe que raio de síndrome é esse. Não perguntei porque realmente estivesse interessado em saber, mas sim porque tinha acabado de me apaixonar por ela. Sempre que me apaixono por alguém e não tenho coragem de o dizer, faço perguntas. Sabia que se ela fosse respondendo, pelo menos ficava perto de mim.

A alguns metros de nós seguia um lobo que de vez em quando se aproximava apenas para pedir uma festa no focinho. Era esse o pagamento para ele nos guardar. De vez em quando rosnava para afugentar os sinais de vida que se moviam por ali como se fossem um vento esguio. Eu não os via, mas sentia-os a abanar as folhas e os ramos coloridos.

E então ela explicou-me o síndrome. É ouvir a mesma música muitas vezes seguidas com auscultadores como se a nossa vida dependesse disso e reparar que as pessoas falam umas com as outras como se fossem eternas.

Eu sorri. As árvores dançaram num assobio e o lobo rosnou. Não sei muito bem explicar porquê, mas foi a primeira vez que fiquei realmente feliz por ele estar ali. Aproximou-se e fiz-lhe uma festa.

E eu perguntei-lhe como é que as pessoas que pensam que são eternas falam. Não que eu quisesse realmente saber, claro. Falam das coisas que não interessam nada para sermos felizes mas sim e apenas para uma entidade abstrata qualquer chamada Economia, disse. São como aqueles peixinhos vermelhos que andam sempre em círculos num aquário redondo.

O lobo rosnou. As árvores fizeram silêncio. Eu também.

E ela olhou para mim e disse-me para continuar a fazer perguntas. Enquanto eu as fizesse, ela responderia e ficaria perto de mim. Precisava saltar fora do aquário.

Pode não parecer, mas esta é uma história de Amor.

9.04.2016

dez

No fundo da marquise havia um tanque de lavar a roupa, esquecido e humilhado pela máquina de seiscentas e cinquenta rotações que entretanto se instalara a poucos metros. Não me lembro uma única vez de alguém ter aberto a torneira ansiosa por enchê-lo, mas lembro-de ser tão pequeno que o podia trepar e meter-me lá dentro. Enquanto o pude fazer, esse tanque foi o meu avião. Pilotei-o durante milhares e milhares de quilómetros a contemplar a paisagem que se via lá embaixo, desde a vidraça que fechava aquele compartimento do segundo andar da casa onde cresci.
Às vezes, em vez de o pilotar, planava. Ia ao frigorífico buscar uma das mousses de chocolate que a minha mãe costumava fazer e comia-a apenas em duas colheradas. Depois ficava ali, com a pequena taça de vidro na mão à espera de absolutamente nada, tentando apenas prolongar o doce momento que acabara de viver.
Nunca fui de comer doces em pequenas doses. Era guloso e, fosse qual fosse o doce, comia-o em apenas alguns segundos de forma a atingir um maior nível de prazer, mesmo que isso implicasse depois ver outras crianças ainda a comer quando eu já não tinha nada.
Quando me apaixonei a sério pela primeira vez por uma mulher contei-lhe esta história. Estávamos num café em Aveiro e eu já não era assim tão guloso. Bebíamos cerveja os dois e ela sorriu-me. Deu-me a mão e abriu os enormes olhos azuis que costumavam hipnotizar-me mesmo quando não estavam perto de mim.

- Não faças isso connosco... - pediu.
- Isso o quê?
- Abocanhar o nosso Amor todo de uma só vez.

Foi o Amor mais longo da minha vida. Quando ele acabou, comecei este blogue, que tem agora dez anos de idade. Não é que a idade seja importante, mas o que ele já me deu é definitivamente importante. Já conheci muitas pessoas através dele, incluindo um Amor que não acaba nem mesmo quando acaba.
Hoje de manhã, por exemplo, alguém que aqui vem lembrou-me que escrevi este texto em Janeiro deste ano, numa fase da minha vida em que tudo o que levava à boca me sabia mal, fosse em pequenas ou grandes doses.
Hoje vivo na Bulgária, onde nunca me  tinha imaginado a viver. Pela primeira vez na vida tenho dois Amores e não sei bem o que fazer com isso. Tenho um emprego razoável e uma vida que, se me esquecer das inesquecíveis saudades que sinto, me satisfaz, também por causa deste blogue e de quem me vem lembrar do que escrevi há mais de meio ano.
Obrigado.

3.30.2016

é da manhã que estou à espera

É da manhã que estou à espera. Seguro um copo cansado na mão direita e a minha vista descansa nas luzes da cidade, que observo pela última vez. Uma delas, de um candeeiro público, está intermitente há alguns meses. Sei-o porque esta varanda é um dos meus vícios.
Ainda não a vejo, mas sinto-lhe o cheiro. Quando ela chegar, assim como se fosse a minha mais temível predadora, levar-me-á com ela entre os seus dentes afiados. Não pretendo lutar, apenas deixar-me ir. Quando a noite voltar eu já não estarei entre nós.
Não sei muito bem onde é que cabe uma vida, mas sei que a minha não cabe aqui há muito tempo. Há um pequeno espaço a três mil trezentos e sessenta e nove quilómetros desta varanda onde um trabalho me espera. Não sei que mais, talvez algumas lágrimas, um novo Amor, muitas dificuldades de certeza e pode ser que alguns sorrisos também.
Quando a manhã me levar, sei que deixo para trás as sombras preguiçosas da minha rua, as pessoas que me são mais queridas e o sorriso da mulher de avental que me tira o café diário no Bom Gosto, mas onde eu estiver a esperar pela manhã de amanhã saberei que é assim todos os dias.
A partir desta manhã serei apenas mais um que partiu.

1.21.2016

se não morrer até lá

Se não morrer até lá, lá mais para o fim do ano este blogue faz dez anos. Terei quarenta e cinco nessa altura e, neste preciso momento, não faço a mínima ideia do lugar onde vou estar, com quem vou estar e a fazer o quê. Sei que cerca de vinte e dois por cento da minha vida foi a escrever regularmente nestas páginas brancas.

Isto é bom e é mau ao mesmo tempo. Quer dizer que a vida profissional me tem corrido um bocado mal nos últimos anos e que, no seguimento, a minha vida emocional também. Abri uma empresa de produção de filmes, formação em audiovisual e venda de equipamento que ainda está no princípio. É a minha área de formação e espero que até lá a coisa entre nos eixos e eu comece a fazer dinheiro suficiente para viver sem grandes preocupações. Não tem ajudado muito o facto de eu ter tornado a ficar sozinho, o que me surpreendeu e me deixou um bocado abalado. Tudo bem. Como sempre, as coisas recompor-se-ão.

Nem tudo é mau. Neste momento estou a escrever este texto com umas meias grossas calçadas que a minha filha me deu e acabei de receber uma mensagem a desejar-me um bom dia, com um sorriso à frente como aqueles que faço quase sempre nos comentários. Alguns amigos e a família têm sido um bom apoio nesta fase menos boa. Acho que no fim é sempre o que se mantém.

Lembro-me de quando comecei a escrever aqui. Andava triste por causa do fim da mais longa relação Amorosa que tive até hoje e usei a escrita como terapia. Fez-me bem. Foi através deste blogue que conheci, entretanto, algumas das pessoas que me são próximas, outras que já foram e já não são e também a minha mais recente companheira.

Tudo o que eu escrevo aqui é verdade, apesar de ser quase tudo mentira. A escrever tem que ser assim mesmo. Mente-se para dizer a verdade. Sei que quando leio textos antigos me lembro de como me sentia nessa altura ou momento e, por aí, nunca me minto.

Estou a dizer isto tudo por um motivo muito simples. No próximo dia quatro de Setembro voltarei aqui, a este texto, para me lembrar do que estou a sentir hoje. Se não morrer até lá, espero estar bem melhor.

1.08.2016

E é assim que parto...

Há lugares em Portugal de que não me esqueço. Ou porque neles já fui feliz, ou porque fui imensamente triste. Dos lugares em que fui assim-assim quase nunca me lembro. Depois desses lugares de Portugal estão os lugares do mundo, que são menos porque sempre visitei mais Portugal do que o mundo.
Esses lugares não servem para nada, a não ser para me lembrar deles durante conversas com amigos ou para regressar a eles quando preciso de voltar a ser feliz ou triste. Na fase que atravesso, jamais regressaria a um lugar onde me senti assim assim, porque de coisas mornas está o mundo cheio e eu, por acaso, também. Além disso, não quero visitar lugares onde fui feliz na minha última história de Amor, porque é apenas a essa história que esses lugares pertencem.
Vou visitar um lugar fora de Portugal onde já fui imensamente feliz e imensamente triste ao mesmo tempo. Na verdade, acho que é o único lugar que neste momento compreende aquilo por que estou a passar e, por uma questão de sobrevivência emocional, preciso dele durante uns dias. Estou a falar de uma cidade onde vivi várias histórias de Amor, todas elas mais curtas do que um simples fim de semana.
As cidades são tão inconclusivas como o Amor. É nelas que nos perdemos até um dia as conhecermos tão bem que nos cansamos. Além disso, voltar a uma cidade dez anos depois da última vez quer dizer que também é possível voltar a um Amor que já terminou.
E é assim que parto...

1.06.2016

As avós sabem tanto como as árvores

As árvores calavam-se quando eu passava por elas. Estavam nuas naquela altura do ano, mas não me pareceu que sentissem frio. Na verdade, acho que cochichavam sobre mim como velhas no café que falam sempre dos netos. Agradeço-lhes por isso, por terem sido minhas avós nesse dia.
Sabiam que eu voltava de um adeus para sempre, na janela duma casa antiga que ficava longe. Tinha andado mais de duas horas a pé para a ver despedir-se de mim em silêncio, acenando com a mão e com uma face inexpressiva, mais o ladrar de um pastor alemão que também não me queria lá.

- Coitado. Sempre foi assim, o rapaz. Por Amor, faz tudo... - segredou uma avó.
- Isso passa-lhe! Ele já sabia que ela não o queria... - respondeu outra.
- Mesmo assim foi lá, vê-la uma última vez... - concluiu a primeira.

A minha avó, a verdadeira, nunca me perguntava nada. Sentava-me na pequena mesa da sala e dava-me uma colher de sobremesa e um pudim amarelo que eu comia em apenas duas dentadas. Depois dizia-me que tudo havia de correr melhor. Foi com ela e com as árvores que aprendi que as avós sabem sempre o que se passa com os netos, mesmo que eles não lhes contem nada.
As avós sabem tanto como as árvores.
É por isso que sempre que passo por uma lembro-me da minha avó a segredar-me a minha própria vida enquanto engolia a sua num silêncio sofredor. Aconteceu-me ainda agora. Escondi a cabeça no capucho do meu casaco, para a cidade não perceber quem eu era, e parei junto à berma da estrada para calcular o melhor percurso para atingir a outra margem sem pisar as poças de água.

- Vai tudo correr melhor!

Um automóvel travou para me deixar passar. Dei quatro ou cinco passos em corrida e acenei-lhe com a mão para agradecer. Um pastor alemão que costuma andar por ali esperou por mim e pela festa habitual que lhe costumo fazer. 
Vim para casa devagar. As árvores calavam-se quando eu passava por elas. Estão nuas nesta altura do ano, mas não me parece que tenham frio. 

12.31.2015

sejam felizes!

O fim de um Amor é sempre lento, mesmo que o seu início tenha sido espontâneo e explosivo. A explicação está na forma como olhamos para trás. É como se tivéssemos percorrido uma rua ladeada por extensas paisagens verdejantes mas, quando nos viramos para as rever, percebemos que elas deram lugar apenas a um imenso deserto. Ficamos ali, lentamente, a contemplar o nada em que tudo se transformou até lhe conhecermos cada centímetro.
Às vezes perguntamo-nos como é que tudo aconteceu, mas a verdade é que o nada nunca tem resposta e a nossa pergunta ecoa até deixar de se ouvir. É assim que olhamos para trás, quando um Amor termina, porque não há outra forma. Tudo bem. Eu sei que o Amor costuma ter um prazo de validade.
Ainda assim, há sempre alguém que nos diz que temos que olhar noutra direcção e continuar a caminhar, o que é mais ou menos verdade mas também é mentira. Ninguém deve virar a cara repentinamente a um desgosto de Amor. É com a lenta urgência que o longo momento exige que nos despedimos desse desgosto. Sempre. Como se acreditássemos que o nada se pode transformar de novo em tudo.
Hoje é o dia em que quase todos nós celebramos o tempo que passa. Eu, não tendo a certeza científica do que vou dizer, acredito que a maior parte das pessoas só o faz duas vezes por ano: no seu aniversário e na passagem de ano. De resto, percebermos que o tempo passa serve essencialmente para nos queixarmos de que caminhamos para a velhice.
Eu estou parado a olhar para um imenso vazio que surgiu repentinamente atrás de mim. Contemplo-o num misto de amargura e de doçura, que é ao que me sabe, por exemplo, a caneca de chá que tenho na secretária. Tenho pedido a quem me é mais próximo que não me diga para desviar o olhar, embora hoje o faça voluntariamente para desejar a todos os que aqui vêm visitar-me que olhem noutra direcção. Aquela em que a paisagem somos nós que a fazemos.
Sejam felizes!

8.28.2015

utopia é a meta

A solidão nunca acontece quando estamos sozinhos, mas sim quando estamos sós. Estar sozinho é das melhores coisas da vida, estar só é uma das piores. Para estarmos sozinhos não pode haver ninguém perto de nós, para estarmos sós é preciso uma multidão. Uma cidade, por exemplo, onde habite quem nós Amamos e não nos quer ver.
Lembro-me de ser criança e de fazer sumos de laranja. Cortava as laranjas em dois e espremia cada metade para dentro de um copo. Fazia toda a força que tinha até sentir o meu corpo a tremer, pois não queria desperdiçar uma única gota. É o que eu ando a fazer agora ao mundo. Espremo-o com toda a força para não desperdiçar as pessoas que me são importantes. É uma sorte termos pessoas importantes na pequenez da nossa vida, até porque são elas que lhe dão alguma grandeza. Entre as poucas amizades a sério que tenho, a Odete é uma delas. O facto de ter como meta a utopia não me é um pormenor, claro. Aliás, é toda uma vida.
No blogue dela diz que eu lhe disse que é uma das pessoas que mais me influenciou na vida, e é verdade. Diria mais, os abraços da Odete influenciam-me todos os dias, mesmo quando não os tenho. Quando espremo a minha passagem pela política partidária, em que deixei de acreditar, sobra-me a Odete e o companheiro dela, por tudo o que me ensinou e me permitiu crescer, que é como quem diz que a política tem que ser um abraço sincero.
Quando me sinto só e me perco na cidade, entre faces petrificadas pelos dias sempre iguais e ombros embrutecidos sem destino, procuro a Odete. Ela está sempre lá, porque é de amigos que a vida é feita.
Visitem o blog dela... porque utopia é a meta. E porque eu a Amo.

8.05.2015

os amigos e os outros

Tenho saudades dum amigo meu que, quando estava comigo, me matava as saudades que eu tinha dos outros. Os melhores amigos são assim, começam por não querer as nossas saudades só para eles. É por isso que é fácil ser amigo deles.
Nos dias como o de hoje, eu telefonava-lhe e falava do tempo, de futebol e dos lábios da Scarlet Johansson. Depois marcávamos um copo num café qualquer para falarmos de nós. Ele conheceu todas as mulheres por quem me apaixonei, mesmo aquelas que eu próprio não cheguei a conhecer muito bem. Eu, diz-me a presunção, terei com certeza conhecido as dele.
No dia a seguir a ter conhecido a minha actual companheira liguei-lhe. Estava a chover torrencialmente, o Porto estava à frente da liga nacional de futebol e a Scarlet Johanson tinha contracenado com os lábios da Rebecca Hall em Vicky Cristina Barcelona. Depois marcámos no Convívio às dez da noite.
Eu cheguei primeiro. Quando ele entrou, levantei-me e demos um abraço.

- Então, estás bem?
- Estou fodido! - respondi.
- O que é que se passa?
- Acho que estou apaixonado...

Ele riu-se. Virou-se para o empregado, nosso velho conhecido, e pediu dois uísques.

- Sem gelo, que este homem precisa de esquecer a vida... - brincou.

Brindámos.

- Como é que isso aconteceu?

Abanei os ombros.

- Acho que ia na vida, como se vai na rua às vezes, tropecei nela e caí. Quando me levantei já não era o mesmo. É sempre assim que nos apaixonamos, não é? A cair e a levantar.

Há sempre um amigo para saber mais da nossa vida do que sabem os outros. Sendo tecnicamente o mesmo, a um amigo dizemos que estamos apaixonados. A um outro dizemos, quando muito, que começámos uma relação. É por isso que um amigo nos mata as saudades que temos dos outros.

7.26.2015

Um dia, quando tudo tiver passado

Tenho um amigo com exactamente mais trinta anos do que eu, ou seja, faz amanhã setenta e quatro anos. Só é meu amigo por causa disso mesmo. Uma vez, numa conversa banal, descobrimos que tínhamos nascido no mesmo dia e à mesma hora, apenas com trinta anos de diferença. A partir daí, cada vez que nos cruzávamos, ele dizia-me num tom de brincadeira: "Boa colheita, ahn?! A do nosso dia". Foi um passo até começarmos a tomar café de vez em quando e falar sobre a vida.
Gosto dele, primeiro porque o acho parecido comigo, segundo porque as nossas conversas são desprendidas de um passado em comum. O que nós fazemos, basicamente, é dividir uma mesa de café de vez em quando e falar mais do mundo do que de nós.
Talvez por isso, tenha sido o primeiro a saber que a minha vida já teve momentos melhores. Foi um desabafo com quem eu sabia que não ia fazer juízos pessoais sobre mim, mas sim dizer qualquer coisa mais generalista. Talvez até pagar-me o café e dar-me uma pancada no ombro, o que se veio a confirmar.
Expliquei-lhe que o meu Amor já teve dias melhores, apesar de eu estar ainda totalmente apaixonado e que a minha vida profissional está um caos, apesar de eu ter um caminho que pode vir a dar frutos muito em breve. Das minhas finanças, prefiro nem falar. Mexi devagar, com a colher, um café no qual não tinha posto açúcar, à espera de qualquer coisa, fosse o que fosse, que me pudesse fazer sentir melhor.
Ele dobrou o jornal que tinha nas mãos e pousou-o sobre as pernas. Pediu-me para olhar para ele de frente e, pela primeira vez, pareceu-me o homem mais sério do mundo.

- Um dia, quando tudo tiver passado, não te arrependas da vida que tiveste!

Tornou a abrir o jornal e eu encostei-me para trás na cadeira do café.

- Boa colheita, ahn?! A do nosso dia...

7.21.2015

não quero saber!

Quero escrever sobre o Amor, mas é como se não me chegasse a coragem para o fazer. Cansa-me a merda do Amor calculado, porque também me cansa a vida programada. E por aqui, talvez não exista uma única mulher que possa gostar de mim a sério. Mesmo a sério, digo eu.
Ou se calhar existe só uma. Sei lá.
Passamos a vida a abdicar da vida em nome da vida, sem percebermos que estamos a abdicar de nós mesmos, incluindo do nosso Amor, em nome duma outra coisa que nos permite respirar, mas não nos permite viver.
Já não nos apaixonamos por ninguém, mas sim pelo que alguém representa, mesmo que isso represente o nosso fim. Então que se foda! Digo eu.
Fiquem vocês com a merda do Vosso sucesso, da merda a que chamam pragmatismo e empreendedorismo. Privatizem-se à Economia e ao pouco tempo que têm para viver para além de um trabalho humilhante e que vos toma até os cinco minutos de pausa ao almoço. Fiquem com isso tudo, mas não me levem com vocês. Até podem ficar com os fins de semana que só servem para recuperar da vida merdosa e fria que têm. Só para vocês. Eu estou noutra, ou então não estou.
Isto chama-se capitalismo. Não se chama Amor... e eu não faço parte.

7.04.2015

É tudo normal na ponta de um cigarro.

É tudo normal na ponta de um cigarro. Ela dá mais uma passa e diz que vai deixar de fumar assim que arranjar coragem. Fico a vê-la por um instante. Talvez seja o cigarro a fumá-la a ela, não sei bem. As mãos tremem-lhe e a pele está mais velha do que o tempo que já viveu. Não faz mal. É tudo normal na ponta de um cigarro.
Uma vez, há muitos anos, estivemos apaixonados. Éramos novos e durante três dias acreditámos que ia ser para sempre. Não foi. Ao terceiro dia ela recusou-se a beijar-me e mergulhou no rio a sorrir. Lembro-me da disponibilidade da água para afogar toda a tristeza. A dela e a minha. Era a água, a mesma que agora está aprisionada dentro duma garrafa de plástico ao lado do cinzeiro usado, à espera que uma moeda de um euro a liberte. Penso no presidente da Nestlé a afirmar que os seres humanos não devem ter direito à água. O que seria de mim nessa tarde sem acesso à água? Não sei. Teria sede da vida. Não faz mal. É tudo normal na ponta de um cigarro.

-  Lembras-te de nós?

 E ela abana afirmativamente a cabeça. O queixo trémulo e o cigarro a fumá-la já quase no filtro. 

-Ainda tenho a flor que me deste, seca, entre as páginas de um livro qualquer...

 Era amarela. É do que me lembro. Resgatei-a duma fenda no alcatrão da estrada e dei-lha. Senti-me um herói. A qualquer momento, o pneu dum automóvel ia esmagá-la para sempre. Assim não. Perdura no tempo entre as palavras dum livro que eu não sei qual é, mas sei que existe. É suficiente. É dum tempo em que as sementes cresciam de forma aleatória por aí, sem a Monsanto e sem o gene suicida, à espera duma morte natural. Até no chão impermeabilizado que ligava as cidades. A minha e a dela. O que seria de nós, de mim e dela, sem uma morte natural? Não faz mal. É tudo normal na ponta de um cigarro.

-  Somos tão estúpidos quando somos jovens! - E acende outro cigarro.
- Somos... - Concordo sem perceber porquê.

 De toda a estupidez que já vivi, a dela foi a mais curta e feliz. O que nos sobrou de três dias foi uma vida inteira. Sem uma Economia medonha a esmagar-nos a esperança, sem uma dívida que ninguém sabe bem de onde veio, sem um governo a aniquilar uma população inteira e a perpetuar o cadáver de um jogador de futebol. Éramos só nós, a gostar imensamente da vida e de um rio por três dias. Não faz mal. É tudo normal na ponta de um cigarro.
Ela é bonita. Ainda, digo eu. Às vezes olha-me de lado, como se tivesse medo de enfrentar o passado, e eu percebo porque é que gostei dela. Era bonita, sorria, mergulhava na água e guardava as flores silvestres que eu lhe dava. Para sempre, diz ela, como se isso existisse. E o cigarro a fumá-la.
Ao vê-la a ela vejo um mundo inteiro que acabou, onde todos perdemos a mais óbvia das coisas: o direito a ser feliz por três dias. Não faz mal. É tudo normal na ponta de um cigarro.

1.30.2015

Alabote

Não me lembro do dia em que decidi que ter um Amor é melhor do que ter cinquenta. Sei que foi uma decisão rápida e espontânea, não um processo de lento amadurecimento. Procuro esse dia no meu passado, como se procura num qualquer velho sótão empoeirado, e não o encontro. Por isso, e porque sei que ele está lá algures, fecho a porta à chave para que ninguém mo roube e volto ao presente.
No presente atendo uma cliente na minha loja de congelados que procura um peixe muito específico chamado Alabote.

- É aqui que vendem Alabote? - Pergunta-me da porta.
- É! - E ela sobe os três degraus da entrada.

Habituei-me a esta pergunta com alguma regularidade. Não faço a mínima ideia porquê, mas o Alabote é um peixe difícil de encontrar. Eu próprio só o saboreei pela primeira vez depois de ter iniciado este negócio. Normalmente, quem compra este peixe já sabe ao que vem.
Lá fora , três árvores nuas vão-se acariciando mutuamente com as pontas finas dos galhos, indiferentes ao trânsito automóvel que mastiga a estrada como se não soubesse muito bem para onde ir. Olho pela janela e ouço uma arca frigorífica a abrir-se.

-  Não sei muito bem quando é que comi este peixe pela primeira vez, mas sei que me sabe muito bem. Foi uma amiga que já cá veio que me disse que vendia Alabote.

Sorrio. A cliente não sabe, mas enquanto lhe faço a conta penso em como ela respondeu à minha dúvida. Decidi que ter um Amor é melhor do que ter cinquenta no exacto momento em que o provei e me soube bem. Ela sai, devagarinho, com a carteira numa mão e o saco de peixe noutra. Agradeço-lhe a compra e, sem ela saber, tudo o que ela me disse.
O vento amainou e as árvores pararam com as carícias. Talvez estejam a pensar em como lhes souberam bem. Acho que às vezes todos paramos por um momento ou dois para pensar no prazer de estar vivo. Mesmo que não saibamos de onde ele vem, guardamo-lo. Acho que é tudo.

1.12.2015

um pássaro assustado

Neste momento quase só trabalho. As horas de lazer de que desfruto são roubadas a muita coisa que tenho que fazer e resumem-se a ver um ou outro filme à noite ou ler um ou outro livro. Quando posso vou ver a minha companheira, o que acontece menos vezes do aquilo que eu quero e preciso. Para além disso, a minha vida social resume-se quase só aos amigos e amigas que me visitam quando estou na loja e, claro, a alguns momentos com a minha filha.
Não me considero com jeito para vendedor, mas nunca me tinha acontecido isto: simplesmente não conseguir ter emprego e ter que iniciar uma actividade por conta própria. A minha loja ainda não está a dar dinheiro, mas as reacções da generalidade dos clientes dão-me alguma esperança de que eu possa vir a viver disto. Uma das vantagens é que converso com mais pessoas que não conheço de lado nenhum, clientes que entram, compram uma ou duas postas de peixe e falam sobre temas variados. Ainda assim, passo muitas horas sozinho.
Na rua onde estou não há árvores no passeio. É uma avenida preenchida por edifícios herméticos, com cerca de seis ou sete andares cada um, que parecem indiferentes ao que se passa lá fora. Existe uma esplanada onde o Sol costuma tomar café depois do almoço e eu, sempre que posso, também. Tudo o resto é quase sempre sombra.
Foi num desses momentos que percebi que alguns pássaros pequenos pousam na frágil vegetação da faixa central da avenida. Cada vez que passam automóveis, eles assustam-se e voam. Depois tornam a pousar, como se o susto os tivesse cansado bastante. Não sei se é sempre assim, mas pelo menos foi uma vez.
Foi dessa esplanada, também, que vi um senhor de idade tropeçar e estatelar-se no chão. Ninguém se levantou para o ajudar, a não ser eu e o amigo que estava nesse momento comigo. Às vezes parece que quantos mais somos, mais sós vivemos. É por isso que aproveitamos a compra duma posta de peixe para falar sobre qualquer coisa, seja o que for. Eu também sou assim, uma espécie de pássaro assustado.

1.06.2015

a minha loja, ou como não consigo fazer as pazes com o mundo

Todos nós sabemos que não está tudo bem, nem connosco nem com o mundo. Há sempre qualquer coisa mal, mesmo que esteja quase tudo bem. Apesar de tudo, costumamos perguntar aos amigos se está tudo bem, como se não soubéssemos a resposta. Não sabemos mesmo, porque normalmente a resposta que ouvimos é sim.
Talvez tenha a ver com a idade, não sei. Ando com uma vontade enorme de fazer as pazes com o mundo. O problema é que não consigo.
Os mais atentos leitores deste blogue sabem que estive dois anos desempregado, mas não sabem que acabei de abrir uma loja em Aveiro e que por isso é que deixei de escrever durante algum tempo. Foram dias agitados que, na verdade, ainda o são.
A minha loja fica na Avenida da Força Aérea, em Aveiro, e vende produtos alimentares livres de químicos, branqueadores, intensificadores de sabor, etc. Essencialmente tenho produtos congelados da marca Moreira, mas também conservas e mercearia essencial. Tudo marcas portuguesas de alguma qualidade e baixo preço que aprendi a consumir precisamente durante o meu período de desempregado.
Quis fazer as pazes com o mundo, mas no primeiro dia que abri, provavelmente a minha quinta ou sexta cliente, foi uma senhora que demorou cerca de dois minutos a subir os três degraus da entrada. ofereci-lhe ajuda, mas ela recusou. Depois escolheu uma posta de Alabote e perguntou-me o preço.
- Um euro e noventa e oito! - respondi.

Ela abriu o porta moedas, procurou com os dedos algumas moedas e tornou a fechá-lo. Agradeceu-me e saiu. Provavelmente nem percebeu que tinha escolhido um dos peixes mais caros do mercado, mas a dor de barriga com que fiquei impediu-me de a esclarecer. Não lhe ofereci porque, em abono da verdade, não posso oferecer nada que tenha a ver com o meu trabalho.
Alguns momentos depois um amigo entrou na loja e perguntou-me se estava tudo bem. Respondi-lhe que sim, mas menti. Obviamente.

De qualquer maneira, para quem tem Facebook e é de Aveiro, pode visitar-me aqui.

1.05.2015

engolida pelo Sol

Hoje encontrei uma amiga que já não via há muito tempo. Talvez há uns quatro anos, pelo que me lembro. A primeira vez que olhei para ela pensei que fosse apenas uma mulher parecida, mas depois reparei que era mesmo ela e então cumprimentei-a. Acho que lhe aconteceu o mesmo relativamente a mim, porque não me disse nada na primeira vez que trocámos olhares.
Estávamos num café em Aveiro. Eu sozinho numa mesa e ela acompanhada por um homem e uma criança noutra mesa. Levantámo-nos ao mesmo tempo, depois de um lapsus facial simultâneo, e demos um abraço a meio do caminho, muito perto duma outra mesa onde duas mulheres bebiam chá e comiam torradas. 
De certa forma apetecia-me contar-lhe e ouvir-lhe tudo sobre o tempo que passou por nós desde a última vez que nos vimos, mas a situação não o permitiu. Dois minutos depois do nosso abraço, o homem levantou-se e levou a criança pela mão até à porta do estabelecimento, onde ficou em pé a esperar por ela. Eram o marido e o filho que a chamavam sem chamar. Ela abanou os ombros como que desculpando-se, deu-me outro abraço e despediu-se. Disse-me que temos que falar para pôr a conversa em dia.
Não fiquei com o número dela nem ela com o meu. Acabei de o procurar e não consta da minha lista telefónica. Acho que o perdi numa das mudanças de telemóvel bruscas que fiz no passado recente. O mais provável é que se passem mais quatro anos até eu a encontrar de novo, por acaso, num café qualquer da cidade.
Não sei quando é que o tempo se tornou assim, imensamente pequeno e minuciosamente grande. Acho que fiquei alguns minutos em pé no meio do bar, a vê-la afastar-se e sair pela porta cujos vidros eram violentamente trespassados pela luz do Sol. Quando me sentei percebi que as mulheres que bebiam chá e comiam torradas cochichavam qualquer coisa sobre mim. Não sei bem o quê, mas suspeito que tinha a ver com o facto de eu ter ficado a suspirar assim que ela foi engolida pelo Sol.

10.23.2014

queixinhas

Quando eu era pequeno só se apresentava queixa a uma autoridade. Se um colega me batesse na escola primária, a autoridade era a professora; se o meu irmão me roubasse um brinquedo qualquer, a autoridade era a minha mãe; se alguém me assaltasse na rua, a autoridade era a polícia. O problema era quando queria fazer queixa de um Amor mal resolvido, cuja autoridade no planeta Terra ainda está por encontrar.
Nós, os queixinhas do Amor, precisamos sempre duma autoridade. Acho que foi por isso que fiz este blogue. À falta de autoridade fui-me queixando ao mundo, até que o mundo lá me prestou alguma atenção e me resolveu o problema.
Há bastante tempo que eu não me queixo de Amores, sem qualquer garantia que um dia destes não o volte a fazer. O Amor é assim, um dia acordamos e ele já não está ao nosso lado. Nesse dia tornarei a bater-vos à porta, pedir licença e informar que venho apresentar queixa: "Meus amigos! O meu Amor fugiu...".
As queixinhas sobre o Amor são as únicas que não devem ser engolidas. Em primeiro lugar porque são comuns a todos nós, em segundo porque nunca são digeridas e acabam por causar vómito, em terceiro porque são as únicas que não exigem vingança nem execução alheia. Se eu sempre quis que a professora batesse no meu colega, a minha mãe no meu irmão ou a polícia no ladrão, do mundo só quero que deixe o Amor andar por aí em paz.
Do Amor, queixem-se sempre ao mundo. Ninguém vos leva a mal.

10.13.2014

the last but not the least

Com o café veio uma prenda.
Dado que para o Intercidades já só havia bilhetes de primeira classe, optei por ganhar meia-hora para comer uma sopa e beber um café, apanhando o Alfa Pendular seguinte. Na estação de Santa Apolónia vivia-se um formigueiro mais ou menos intenso, próprio do fim de tarde de um Domingo.

- Uma sopa e um café, por favor! - Pedi enquanto olhava discretamente para as tatuagens coloridas da empregada.

Tive que empilhar alguns tabuleiros e loiça suja para arranjar lugar sentado. Alguns clientes comiam sandes variadas em pé, apenas apoiados pelo balcão ou até pela parede do café. Em pé também, mais ou menos perto de mim, uma mulher fazia equilibrismo para conseguir comer uma sopa quente igual à minha. Fiz-lhe sinal para se sentar na minha mesa, enquanto afastava a torre de tabuleiros, mas ela recusou com algum embaraço.
Depois chegou a hora da luta pelo café. Cerca de uma dezena de clientes que tinham acabado de comer qualquer coisa amontoavam-se num dos cantos balcão. Alguns agitavam o papel que indicava que o café estava pago, mas ele de facto nem era preciso. Uma oura empregada enfrentou-nos a todos depois de um suspiro profundo.

- Café para todos, não é? - Perguntou de forma quase retórica.

Um a um, ou dois a dois, foi servindo toda a gente. Eu fui o último. Quando afastei o pacote de açúcar (que nunca uso) do pequeno pires, já a maior parte dos clientes abandonava a loja. Sem saber explicar porquê, sentia uma pequena frustração por ter sido deixado para trás. Sabia que tinha sido dos primeiros a encostar-me ao balcão mas, compreendendo a confusão do momento, optei por aceitar tudo passivamente.
Assim que dei o último gole e pousei a chávena, a empregada voltou à carga.

- Desculpe ter sido o último. Olhei para si e pareceu-me ser o mais pacífico de todos. Hoje já tive problemas que cheguem...
- Não se preocupe. Vamos todos no mesmo comboio, provavelmente, que só parte daqui a cinco minutos.

Não sei onde é que ela viu em mim algum sinal de pacifismo, mas sei que sem o perceber comuniquei com ela sem de facto querer comunicar. Quando me sentei na carruagem seis, lugar sessenta e oito, fiquei a pensar naquilo... e sorri.

Já agora, fiquem com um pequeno vídeo que fiz no concerto íntimo do guineense Bubakar Djabaté, na Associação Renovar a Mouraria. É uma prenda.

10.10.2014

os meus sapatos estão rotos

Às vezes dou por mim a olhar fixamente para os meus sapatos. Sento-me no sofá e, como não vejo televisão a não ser que tenha um filme específico em mente, os sapatos são objecto seguinte. Foi o que me aconteceu agora mesmo, enquanto tentava respirar um pouco pelo excesso de tarefas e coisas para fazer dos últimos dias. Os meus sapatos estão rotos, pensei.
Estão mesmo, e ainda não tinha reparado, apesar de os calçar e descalçar quase todos os dias (às vezes uso outros). Quando olho para eles dentro do meu próprio quotidiano, os meus olhos não são capazes de analisar nada. Sabem que eles estão ali para serem calçados e me protegerem os pés enquanto caminho e são incapazes de alcançar seja o que for para além disso. Só em momentos como o de hoje, em que tento parar e quebrar a rotina do mundo, é que consigo perceber que os meus sapatos estão rotos.
Por qualquer motivo, sempre achei que é uma capacidade mais feminina do que masculina, esta de perceber que os sapatos estão rotos. Acho que é por isso que os divórcios e as separações partem quase sempre delas e não deles. Não são um fim em si mesmo. São uma tentativa de calçar outra coisa qualquer.