mosca
Uma mosca na réstia do leite que atapeta o fundo do copo. Deve ter estado ali a noite toda, a debater-se com a morte naquele líquido lençol branco, enquanto eu me debatia com a vida entre os lençóis duma velha cama prisional. Primeiro com dificuldade, que nem os lábios jovialmente frescos duma ruiva com menos dez anos do que eu me despertavam o corpo, e a fálica excitação do meu pénis resumia-se a uma pequena frustração noctívaga. Depois ela cansou-se de tentar e adormeceu.
Uma mosca na réstia do leite que atapeta o fundo do copo. Aproveito o sono daquele anjo sem asas para percorrer a solidão do corredor do estabelecimento prisional abandonado onde, por causa dum erro profissional, passei quase toda a minha vida. Trabalhava para uma seguradora como assassino profissional. Era um trabalho fácil e bem pago: só tinha que dar um tiro de vez em quando em alguém que se preparava para gastar uma pipa de massa ao patrão, fosse numa operação num hospital privado, numa reforma milionária ou noutra merda qualquer.
Uma mosca na réstia do leite que atapeta o fundo do copo. Algumas gotas lácteas mancham os lábios do anjo, agora que volto à cela que já foi minha, e é pela Via Láctea que o anjo me vai levar. Adormeceu de barriga para baixo e o rabo dela é uma maçã à espera do pecado. Penetro-lhe o sono sem ter a certeza se lhe penetro os sonhos, em movimentos tão lentos como os seus bocejos. Ela morde o próprio dedo indicador da mão esquerda.
Uma mosca na réstia do leite que atapeta o fundo do copo. Lembro-me de ter a arma apontada à mulher com quem agora me fundo. Eu tinha vinte anos e ela dez. Ia receber um transplante de coração demasiado caro para a Seguradora. Foi a única vez que falhei. A última também. No momento em que ia premir o gatilho ela olhou na minha direcção e eu tremi. Ela lambia um gelado e mordia o próprio dedo indicador. A bala passou-lhe a dez centímetros da testa e alojou-se no papagaio duma loja de animais.
Uma mosca na réstia do leite que atapeta o fundo do copo. Ainda não me vim mas ela muda de posição. Abre as pernas e pede que eu lha faça um minete. Aliás, ordena-me. Eu faço. Costumo fazer tudo o que ela me pede desde que a conheci nesta prisão onde agora sou um sem abrigo. Talvez deva humedecer os lábios com o que resta do leite, para também ela sentir alguma frescura na língua, mas gosto de ver a mosca a bater-se pela vida naquele branco antro de morte.
Uma mosca na réstia do leite que atapeta o fundo do copo. Também eu sou uma mosca a proteger o que ainda significa vida em mim. No fundo ainda sou um prisioneiro, só que agora sem guardas nem trancas na porta. Apenas com um anjo com uns lábios e um rabo excitantes. O ano passado detectaram-me um tumor no cérebro. Agora ando fugido dos assassinos da seguradora, que me colocou na lista dos segurados a abater. Foi assim que ela apareceu aqui, para me matar. Acabámos por fazer amor.
[resposta a um desafio lançado no ministério da soltura]