Ainda não fiz a árvore de Natal e talvez até nem faça. Não gosto que tenham pena de mim, e aquelas bolas e fitas que ficam a colorir a minha casa despovoada fazem-no exactamente por pena. Toma lá um bocadinho de cor nessa tua vida cinzenta, ouço-as pensar quando vou à sala buscar um uísque para voltar imediatamente para o quarto. E ignoro-as da mesma forma que ignoro o olhar dos passageiros do autocarro que me vêem sentar todos os dias num dos cantos lá atrás. Passo pelo meios deles para depois me isolar e, agora que penso nisso, tem sido assim toda a minha vida amorosa.
Talvez eu seja mesmo assim, nem carne nem peixe, como a minha avó costumava dizer. Na verdade, de todas as pessoas que conheço sou a que me conheço pior. Sou capaz de adjectivar toda a gente menos eu próprio. Não é triste, só que também não é alegre. Não é nada. É respirar involuntariamente entre uma casa e um emprego. A minha avó também costumava dizer-me que eu tinha que arranjar uma mulher. Tinha razão, ao mesmo tempo que não tinha. As mulheres não se arranjam. São elas que nos arranjam a nós, homens. Nunca nenhuma me arranjou.
Da janela do meu quarto vejo o mundo. A solidão num muro despenteado por cacos de vidros afiados, numa cortina que se abre para se fechar imediatamente a seguir, num rapaz de capucho que joga sozinho à bola contra a parede duma garagem e na mulher que já espera pelo mesmo autocarro que eu também vou apanhar daqui a mais uns minutos. Está ali há cerca de meia-hora, a rodar o guarda-chuva de riscas vermelhas e brancas como se fosse a Mary Poppins num cinzento dia de chuva. Faz todos os dias o mesmo, desperdiçando o tempo a colorir uma rua vazia e cinzenta com aquelas cores riscadas.
O uísque promete sempre mais do que dá. Promete afogar a nossa solidão e nunca o faz, por isso é que nunca tenho forças para lavar o copo e agora acumulo mais um no balcão da cozinha. É o décimo, mais copo menos copo, que terei que lavar de enfiada um dia destes, quando já não tiver mais nenhum limpo e seco. Visto o casaco e saio.
Lá está ela, a Mary Poppins, a rodar o guarda-chuva que chuta os pingos de água como se fosse uma máquina de pipocas. Ponho-me a três metros dela para não ser atingido, mas ela dispara algo bem mais potente. Boa tarde, diz. E eu, que não queria que o dia chegasse sequer a conhecer-me a voz, respondo encolhido em mim mesmo. Boa tarde, cuspo. O autocarro também cospe, exactamente com a mesma vontade, dois ou três passageiros pela porta de trás. Eu entro pela da frente e percorro-o para depois me aninhar num dos cantos.
Sinto-lhe o cheiro. A Mary Poppins senta-se perto e estende o guarda-chuva molhado na única cadeira entre nós, virado para mim como se quisesse atingir-me com aquelas cores que violam o cinzentismo pacífico de mais um dia de Dezembro. Que está frio, diz. Que está chuva, diz. Que as nuvens não se vão embora, diz. Diz tudo o que não me interessa a mim nem a ninguém, mas que me obriga a responder com um "hum, hum..." controlado.
Ela sai, como habitualmente, uma paragem antes da minha. Fico a desejar que amanhã se torne a sentar ao meu lado. Talvez até eu próprio vá mais cedo para baixo e fique a ser bombardeado pela sua máquina de fazer pipocas. Ainda não fiz a árvore de Natal, é verdade, mas talvez a faça um destes dias.