5.30.2014

pensamentos catatónicos (307)

Fui levantar dinheiro a uma caixa multibanco. Era a única operação que eu queria fazer, mas assim que coloquei o cartão na ranhura senti qualquer coisa nos meus calcanhares. Era uma mulher que acabara de pousar alguns sacos de compras no chão sem a mínima noção de espaço. Olhei para trás e ela, enquanto mexia descontroladamente no interior da carteira, mandou-me despachar.

- Despache-se que eu tenho muita pressa.

Não lhe disse nada. Com o pé esquerdo empurrei devagar os sacos para trás. Depois fiz cinco operações. Levantei o dinheiro que pretendia em três fases diferentes e aproveitei ainda para carregar o meu telemóvel e tirar os movimentos de conta. Só para chatear, sim. Foi nessa quinta operação que ela acabou por pegar nos sacos e afastou-se a resmungar.
Esta mulher tinha o objectivo de me afastar da caixa multibanco o mais depressa possível e fê-lo da pior maneira, optando pelo confronto e pela pressão sobre mim. Só tinha que me pedir com modos para eu ser rápido. Tenho a certeza que lhe tinha dado imediatamente o meu lugar e levantava dinheiro a seguir.
Uns dez minutos depois cruzei-me com ela no mesmo centro comercial. Ia com aquele que supus ser o marido dela. Ela espreitava a montra duma perfumaria e ele, que abrandara relutantemente o passo, mandava-a despachar-se.

- Vais ver montras agora?! - Anda mas é embora.

Ela obedeceu em silêncio.

5.29.2014

respostas a perguntas inexistentes (279)

Lembro-me da primeira vez que declarei Amor a uma mulher, que por acaso ainda não era mulher porque eu também ainda não era homem. Troquei-me todo nas palavras e nos movimentos, corei e gaguejei para no fim não conseguir dizer muito mais do que "gosto mais ou menos de ti!". O resultado, como poderão imaginar, não foi o melhor.
Quando somos crianças e nos apaixonamos pela primeira vez aprendemos que o Amor é uma barreira gigantesca entre aquilo que dizemos e aquilo que sentimos. Depois disso não aprendemos mais nada. Eu, pelo menos, não aprendi. Aos quarenta e dois ainda estou na mesma. Acho que é por isso que vou mantendo este blogue, para diminuir essa distância entre o que sinto e o que digo.
É uma verdade que os homens em geral não gostam de falar de Amor. Optam quase sempre por engoli-lo e andar com ele às voltas no estômago com uma impossível digestão. Tem uma certa lógica: são o sexo forte e falar de Amor fragiliza-os. Além disso, uma declaração de Amor é uma aposta total. Ou se ganha tudo ou se perde tudo.
Quando nos tornamos adultos a coisa muda um bocado, essencialmente por causa do sexo. Uma declaração de Amor não depende apenas do que se diz, mas também do corpo. Dois corpos podem aproximar-se lentamente um do outro sem se comprometerem tanto como se comprometem as palavras. Se a coisa funcionar, acaba em sexo. Se não funcionar, acaba em silêncio. Acaba bem ou menos bem. São as palavras as únicas que podem acabar mal.
De qualquer forma duma coisa tenho a certeza: é muito mais fácil dizer que se Ama depois do sexo. É por isso que, em caso de paixão, a primeira palavra deve ser um toque.

5.27.2014

odeio estrelas.

Começo por dizer que não odeio críticos, sejam eles de cinema, de música ou de outra coisa qualquer. Não os odeio por um motivo muito simples: todos nós somos críticos. Ainda assim, nunca dou a importância a críticos profissionais. Não leio nenhuma crítica sobre nenhum filme por outro motivo também muito simples: o melhor crítico relativamente ao meu gosto sou eu.
No entanto odeio uma coisa: estrelas. Um tipo tem uma trabalheira enorme a escrever um livro, a fazer um filme ou a compor uma música. Uns dias depois, num pasquim qualquer, alguém atribui uma, duas, três, quatro ou cinco estrelas ao resultado. Para além de injusto é redutor. Reduz-nos a nós todos à incapacidade de pensar e de sentir.
Lembrei-me disto hoje, quando falava com um conhecido sobre uma amiga comum que temos há muitos anos.

- É cinco estrelas! - disse ele.

Não, não é. Também não é quatro, nem três, nem duas, nem uma. É uma mulher de quem eu gosto com todas as características que tem, mesmo aquelas que não me são simpáticas.
Por favor, não me reduzam a um número de estrelas.

5.22.2014

Marinho Pinto

Defendo que a violência doméstica deve ser crime público. A explicação é óbvia: as vítimas deste tipo de violência precisam de apoio da sociedade, não de desprezo. Precisam que o crime do qual são alvo possa ser julgado pela sociedade mesmo que não estejam em condições de apresentar queixa.
Marinho Pinto, candidato pelo MPT nas eleições europeias, considera que a violência doméstica NÃO deve ser crime público. É por isso que eu estou aqui, da forma mais sincera possível, a solicitar que não votem nele neste Domingo.
A justificação de Marinho Pinto é que, enquanto advogado, já assistiu a um caso em que o casal se reconciliou. A lei nunca impede a reconciliação, mas pode impedir que o abuso sexual e a agressão sejam permanentes. Basta fechar os olhos. Eu não fecho os olhos à violência doméstica!

5.21.2014

conversa 2101

Ela - Tens uma cara que transmite confiança a uma mulher.
Eu - Porquê?
Ela - Estive a ler sobre isso. Homens com a face como a tua, ligeiramente arredondada, são mais confiáveis do que aqueles que têm uma cara mais quadrada.
Eu - Confiáveis em que aspecto?
Ela - Não traem a mulher e são mais carinhosos.
Eu - Ah! O teu marido tem a cara arredondada também?
Ela - Claro que não. Credo!

5.20.2014

conversa 2100

Ela - Tenho quarenta e cinco anos e estou no limite da idade para arranjar um namorado decente.
Eu - Acho que não é bem assim, mas pronto.
Ela - Espero que não seja. Não queria arranjar um namorado decente já...
Eu - Não?!
Ela - Não. Também estou no limite da idade para ter uma vida sexual de jeito e com um namorado decente isso não se consegue.

5.19.2014

respostas a perguntas inexistentes (278)

Nunca dei importância à palavra “estranho”, pelo menos quando ela se aplica a alguém. Por um lado, porque acho que somos todos únicos. Por outro, porque independentemente de sermos únicos também temos todos o mesmo valor. As nossas especificidades têm sempre como denominador comum o facto de sermos um grupo de átomos de carbono.

É por isso que me lembro tão bem do momento em que conheci a Irina. Foi a única pessoa a quem associei a palavra “estranha” assim que a conheci. Não que ela tivesse um aspecto esquisito ou outra característica física qualquer fora do normal. O que se passou foi que, desde o primeiro momento, me pareceu uma pessoa totalmente racional e sem pingo de sistema nervoso ou emoção.

De resto, e se eu fizesse um esforço para atribuir uma emoção qualquer à sua face petrificada, era uma mulher bastante atraente. Tinha a pele muito branca, com alguns sinais bem visíveis, e uns cabelos longos e pretos que pareciam ter sido acabados de esticar.

A forma como a conheci também não foi muito normal. Os nossos olhares não se trocaram directamente, mas sim através do nosso reflexo no vidro do comboio. Ela estava a olhar para o meu reflexo e eu para o dela. Quando eu sorri ela falou pela primeira vez.

- Não te preocupes – disse – Quase todas as pessoas que viajam com um desconhecido à frente optam por analisá-lo a partir do reflexo no vidro.
- Não te estava a analisar – respondi.
- Estavas, estavas, só que não sabes.

Aquela certeza toda começou por me irritar e foi nesse momento que pensei que aquela mulher era estranha. Ainda assim, e porque entre Aveiro e Lisboa a viagem era de quase três horas, acabei por ir a conversar com ela até ao nosso destino comum. Às vezes olhávamo-nos directamente, outras vezes através do reflexo na janela.

Com o tempo eu fui falando cada vez menos e ela cada vez mais, até que eu acabei por me tornar num mero ouvinte do que ela tinha para me dizer. Isto aconteceu porque ela parecia saber tudo sobre mim. Não que soubesse factos concretos como a minha idade ou estado civil, mas sim como eu me sentia e como eu pensava em cada momento ou situação. Comecei a sentir-me cada vez mais transparente aos olhos dela, como se fosse apenas um reflexo, e acabei por me silenciar.

Foi então que ela me disse para eu não me assustar. Explicou-me qualquer coisa sobre existirem várias dimensões e nós não passarmos de apenas uma projecção. Disse-me que tem a capacidade de sentir que nós não estamos sozinhos porque sente constantemente outros seres inteligentes à nossa volta. Aquilo pareceu-me conversa de alguém alcoolizado ou sob o efeito de drogas. Ainda assim, por qualquer motivo, não me deu para rir. Segundo ela, todos nós vivemos da forma como nos tínhamos acabado de conhecer, ou seja, como uma série de reflexos que se confundem uns com os outros e com a própria paisagem.

Em Santa Apolónia despedimo-nos um do outro com dois beijos na face. Ela apanhou um táxi e eu segui a pé até à casa dum amigo que ia visitar. Pelo caminho fui sempre a pensar na sua última frase, até porque eu não lhe tinha dito nada sobre o assunto.

-Ah! Compreendo que me aches estranha! - disse.
Penso sempre nela quando vejo o meu reflexo numa janela.

5.16.2014

conversa 2099

Ela - Não devia ter cortado totalmente a relação com o meu ex-marido.
Eu - E cortaste?
Ela - Sim, o ambiente entre nós tornou-se insuportável. Infelizmente, acabámos da pior maneira.
Eu - E estás arrependida, é isso?!
Ela - Sim. Esta semana tenho que levar o carro à inspecção e ele dava muito jeito para isso. Não tenho é coragem de lhe pedir...
Eu (risos) - Estou emocionado com tanta sensibilidade.

(dois minutos depois)
Ela - Estava à espera que te oferecesses para me levar o carro à inspecção, pá!
Eu - Azar, também detesto levar o meu carro à inspecção.
Ela - Pronto... nem como ex-marido me servias.

5.15.2014

pensamentos catatónicos (306)

Todos nós, em determinada altura da vida, já decidimos lutar por um Amor. Todos nós também aprendemos nesse momento que por um Amor não se luta. Ou ele vem de livre vontade, ou então não vem.
Quando nos apaixonamos é como se voltássemos a ser crianças. Olhamos para o nosso Amor como se ele fosse um brinquedo na montra duma loja. Sem ele, sabemos que vida perde toda a intensidade e talvez até perca o sentido. Por um momento sentimo-nos proprietários ou, na pior das hipóteses, expropriados. 
Só que o Amor não é uma questão de propriedade. É precisamente o contrário. Ou vem de livre vontade, ou então não vem. Mesmo que venha, claro.

5.14.2014

conversa 2098

Eu - Já não te via há tanto tempo!
Ela - Não tenho saído muito. Estou numa fase em que gosto de ficar em casa, sozinha com os meus pensamentos.
Eu - Estás a viver sozinha?
Ela - Sim. Separei-me há quatro meses. Quer dizer, não me separei. Ainda namoro com o David, mas decidimos viver separados.
Eu - Ah! Eu também vivo sozinho, por isso compreendo.
Ela - Nós tivemos uma discussão muito grande e decidimos ir cada um para seu lado no próprio dia. Há coisas que tornam a coabitação difícil.
Eu - Ainda bem que não se chatearam.
Ela - Pois... ele queria tirar a televisão por cabo lá de casa. Para mim é impossível viver sem televisão por cabo. É mais do que evidente que não podemos viver na mesma casa.
Eu - Tens a certeza que gostas de ficar em casa sozinha com os teus pensamentos?!
Ela - Pronto... e a ver televisão também. Admito que sim.

5.13.2014

desabafo

Às vezes tenho vergonha de género, o que quer dizer que tenho vergonha de ser homem. Com "h" minúsculo. Isso acontece-me sempre que leio alguma coisa sobre violência doméstica. É que a estatística não engana e, enquanto as vítimas são quase sempre mulheres, os agressores são quase sempre homens.
São os homens que têm esta capacidade de transformar um beijo num murro, ou de passar de uma mão dada para uma mão sufocante à volta do pescoço. Este ano já vamos em dezoito vítimas mortais neste país, todas elas mulheres cuja culpa foi apaixonarem-se pela pessoa errada.
É certo que a violência entre quatro paredes é sempre um acto de cobardia mas, para além disso, o que retira qualquer capacidade de compreensão é essa metamorfose da paixão em violência. Nisto tudo tenho apenas uma certeza: se é possível o Amor transformar-se em agressão, já a agressão nunca se transforma em Amor. É uma fria verdade sobre a nossa espécie, mas é assim.
Sei que a minha vida emocional me leva a muitos sítios diferentes e é grande por isso mesmo. Leva-me ao sofrimento algumas vezes, à felicidade plena outras vezes. Se algum dia me tivesse levado à violência seria apenas isso: uma vida pequena.

5.12.2014

respostas a perguntas inexistentes (277)

Não acredito no Amor para sempre. Acredito no Amor durante algum tempo, seja ele mais curto ou mais longo consoante diversas variáveis. A vida pode ser óptima quando finalmente nos apercebemos disso mesmo, ou seja, que o Amor da Disney não existe. O problema que eu tenho é que, apesar de não acreditar no Amor para sempre, desejo-o.
Para quem o deseja mas não acredita nele há várias formas de o prolongar o mais possível. Estou convencido que a melhor de todas é ter vida própria e dar espaço a que a pessoa Amada também a tenha. Vida própria e ciúmes dela, claro.
Os ciúmes não são assim tão maus. Se não se tornarem doentios até são um dos ingredientes obrigatórios do Amor. É por isso que os devemos sentir de vez em quando e, caso já não os sintamos, temos que fazer por isso. A vida própria de ambos é uma boa maneira de o conseguir.
Com vida própria temos sempre alguma coisa para contar à pessoa que Amamos. Onde estivemos, o que fizemos, o que aprendemos e conhecemos. Além disso, também temos sempre alguma coisa nova para ouvir. É uma revelação constante, sendo que essa revelação, logo antes do ciúme, é o principal ingrediente de um Amor longo.


5.08.2014

conversa 2097

Ela - Desconfio que o meu marido me anda a trair com outra.
Eu - Porquê?
Ela - De repente tornou-se super carinhoso e meigo comigo.
Eu - Ele ser carinhoso contigo quer dizer que te anda a trair?!
Ela - Sim, porque na cama continua a ser um zero à esquerda.

5.07.2014

conversa 2096

(no café)

Eu - Pareces nervosa!
Ela - Já me acalmo, mas não me digas que pareço nervosa.
Eu - Mas pareces...
Ela - Eu sei que pareço, mas não me preciso que mo digas, okay?! Não há nada pior do que dizer a uma mulher nervosa que ela parece nervosa!
Eu - Pronto, mas posso fazer alguma coisa por ti?
Ela - Não. É só o meu marido que é um querido mas é preciso explicar-lhe tudo, até ao mais ínfimo pormenor, todos os dias. Até as coisas mais simples...
Eu - Ah!
Ela - Pedi-lhe para me cortar os legumes para fazer sopa e conseguiu fazer tudo ao contrário. Já lhe expliquei tantas vezes que as cenouras são para raspar e cortar em pedaços pequenos, que às batatas e aos nabos é que se tira a casca, que as cebolas é só lavar e tirar a casca seca. Nunca faz nada bem...
Eu - E é isso que é simples?
Ela - Então não é?
Eu - Mais ou menos, mas não precisas de te enervar por causa disso.
Ela - Já te disse para não me dizeres que estou nervosa.

5.06.2014

conversa 2095

Ela - Estou numa fase boa da minha vida.
Eu - Fico contente em ouvir isso.
Ela - Apercebi-me que os maridos não fazem falta para quase nada e sinto-me bem sozinha.
Eu - Para quase nada?! Então fazem falta para alguma coisa...
Ela - Sim, fazem falta para implicar de vez em quando, mas como tenho um filho adolescente não preciso de mais nada.

5.05.2014

conversa 2094

Ela - Ouvi dizer que tens gatinhos pequeninos.
Eu - Só durante algum tempo. Sou FAT* duma gata que decidiu parir dois gatitos lá em casa.
Ela - Ao meu ex-marido aconteceu mais ou menos o mesmo.
Eu - Também é FAT de gatos?
Ela - Não. Foi FAT duma gaja logo a seguir a mim e quando deu por ela, ela já estava prenha.

* Família de Acolhimento Temporário

respostas a perguntas inexistentes (276)

Só os homens é que sabem Amar.

O meu vizinho do lado era um tipo forte, de poucas palavras e muita acção. Trabalhava na distribuição de fruta e acordava todos os dias por volta das cinco da manhã. Eu simpatizava com ele, apesar de nunca termos tido um contacto muito próximo. Cumprimentava-me sempre, mesmo quando estava visivelmente mal disposto.
No apartamento à frente também só vivia uma pessoa. Era uma mulher igualmente de poucas palavras, mas que preferia virar a cara a dizer "bom dia" quando nos cruzávamos na escada do prédio.
Um dia descobri que eram marido e mulher, mas que tinham decidido viver tão perto e tão longe um do outro quanto possível. Por isso é que eram vizinhos, apesar de partilharem a cama regularmente. Foi ele que mo disse, numa noite em que ambos nos deixámos estar para além da hora no café da frente.

- As mulheres não sabem Amar. Só sabem ser Amadas! - concluiu ao pousar o último copo de vinho.

Já não vivo naquele edifício e nunca mais vi aquela gente. Mesmo assim nunca mais a esqueci, principalmente por causa desta frase, que terá sido a última que ele me disse para além do "bom dia" ou "boa tarde" habituais.
Se hoje passasse por ele, explicar-lhe-ia que na altura era apenas um jovem adulto e não percebi onde ele queria chegar, mas a vida ensinou-me muita coisa e hoje percebo. O tempo dá-nos destas certezas. Só os homens é que sabem Amar.

5.04.2014

respostas a perguntas inexistentes (275)

Todos nós dizemos coisas apenas por dizer. Eu também. Acho que às vezes é só uma questão de matar o silêncio porque o silêncio, dependendo do contexto, pode significar uma enorme distância entre duas pessoas. Aceito isso da mesma forma que aceito a minha condição, tão grande quanto pequena, de Homo Sapiens.
Para além duma flor para a minha mãe, pousei no tapete corredor do supermercado duas garrafas de vinho, uma embalagem de filetes de peixe e outra de rúcula selvagem. A empregada da caixa fez-me todas as perguntas que já teria feito algumas centenas de vezes, antes de mim, a outros clientes: se eu tinha cartão cliente, se desejava saco plástico e, por fim, se queria número de contribuinte na factura. Não, não, sim.
A última frase, já com o pagamento feito, não foi uma pergunta. Continuação de um bom domingo, disse. Foi simpática, mesmo que o tenha sido apenas porque sim, mas deu-me para não aceitar aquele cumprimento como outra coisa qualquer. Tenho tido um péssimo domingo, respondi.
Na verdade não tenho tido um péssimo domingo. Tenho tido, isso sim, um dia banal. Acho que o que me passou pela cabeça foi não aceitar a inocente presunção daquela mulher de que sabia como estava a ser o meu dia. Dizer coisas por dizer até pode ser, fazer apostas relativamente ao meu dia é que não.
O próximo cliente mostrava-se nervoso, como se eu lhe estivesse a empatar a tarde por estar a fazer compras no mesmo sítio que ele. Ela repetiu-lhe as mesmas duas perguntas iniciais: se ele tinha cartão cliente e se desejava saco plástico. Ele bufava com modos pesados a tanger o grosseiro. Percebi então o motivo pelo qual ela partia do princípio que eu estava a ter um bom domingo. Pedi-lhe desculpa e desejei-lhe um resto de um bom dia tanto quanto possível.
O cliente seguinte pareceu-me acalmar-se.


5.03.2014

respostas a perguntas inexistentes (274)

Irrita-me toda a iconografia sobre o Amor. Corações com setas, pores do Sol, lábios vermelhos ou duas mãos dadas num postal barato. O Amor não se dá com ícones, dá-se apenas consigo mesmo: Amor, e tentar reduzi-lo a outra coisa qualquer parece-me sempre um erro crasso.
No entanto percebo por que motivo se coloca uma fotografia do Pôr do Sol no Facebook quando se está apaixonado. É o sentimento de impotência para explicar o que nos vai na alma. Nenhuma palavra nos parece suficiente para o explicar, por isso passamos para uma imagem, acreditando que é verdade que ela pode valer mil palavras que no momento nem sequer nos vêm à cabeça. É mentira.
A minha proposta é que escrevam apenas Amor. Chega.

5.02.2014

coisas que fascinam (170)

As mulheres têm a mania de dizer, num estranho tom acusatório, que os homens não conseguem manter um compromisso de Amor, que abandonam uma mulher por outra com uma facilidade enorme porque não sabem Amar. Nada disso é verdade. A verdade é que o Amor não pode ser um compromisso.
Nenhum homem aceita um Amor que não seja o maior de todos, o que vai sendo cada vez mais difícil de conseguir com a idade. Depois de um Amor grande, nenhum consegue interessar-se por um Amor médio. Nem é má vontade, é apenas uma impossibilidade.
As relações curtas são legítimas e necessárias, mas não são Amor. São remendos à solidão.
O problema de muitos homens é que as mulheres aceitam remendos como se fossem Amor. Por um lado porque não gostam da definição de remendo, por outro por serem mais inteligentes. É que assim existe uma grande probabilidade de Amarem menos do que são Amadas. Numa relação desequilibrada, é sempre fodido Amar mais do que se é Amado.
Um homem pensa sempre que se o seu Amor terminar não conseguirá ter outro, pelo menos tão cedo. É que os Amores grandes não andam por aí pela rua à mão de semear. Já os remendos, felizmente, sim. Quando não se Ama ninguém, os remendos são uma questão de sobrevivência.
Eu vivo um Amor grande nos tempos que correm, o maior de todos. Ando a aproveitar para viver o mais possível. A sobrevivência é só para quem sabe.

conversa 2093

Ela - Gostas de caracóis?
Eu - Sim, com cerveja vão bem, especialmente no Verão. Só não percebo a que propósito é que me estás a perguntar isso. Estavas a falar do teu...
Ela (interrompendo-me) - Do meu cabelo. Exactamente!
Eu - Ah!