12.31.2015

sejam felizes!

O fim de um Amor é sempre lento, mesmo que o seu início tenha sido espontâneo e explosivo. A explicação está na forma como olhamos para trás. É como se tivéssemos percorrido uma rua ladeada por extensas paisagens verdejantes mas, quando nos viramos para as rever, percebemos que elas deram lugar apenas a um imenso deserto. Ficamos ali, lentamente, a contemplar o nada em que tudo se transformou até lhe conhecermos cada centímetro.
Às vezes perguntamo-nos como é que tudo aconteceu, mas a verdade é que o nada nunca tem resposta e a nossa pergunta ecoa até deixar de se ouvir. É assim que olhamos para trás, quando um Amor termina, porque não há outra forma. Tudo bem. Eu sei que o Amor costuma ter um prazo de validade.
Ainda assim, há sempre alguém que nos diz que temos que olhar noutra direcção e continuar a caminhar, o que é mais ou menos verdade mas também é mentira. Ninguém deve virar a cara repentinamente a um desgosto de Amor. É com a lenta urgência que o longo momento exige que nos despedimos desse desgosto. Sempre. Como se acreditássemos que o nada se pode transformar de novo em tudo.
Hoje é o dia em que quase todos nós celebramos o tempo que passa. Eu, não tendo a certeza científica do que vou dizer, acredito que a maior parte das pessoas só o faz duas vezes por ano: no seu aniversário e na passagem de ano. De resto, percebermos que o tempo passa serve essencialmente para nos queixarmos de que caminhamos para a velhice.
Eu estou parado a olhar para um imenso vazio que surgiu repentinamente atrás de mim. Contemplo-o num misto de amargura e de doçura, que é ao que me sabe, por exemplo, a caneca de chá que tenho na secretária. Tenho pedido a quem me é mais próximo que não me diga para desviar o olhar, embora hoje o faça voluntariamente para desejar a todos os que aqui vêm visitar-me que olhem noutra direcção. Aquela em que a paisagem somos nós que a fazemos.
Sejam felizes!

12.29.2015

coisas que fascinam (199)

Aos dezanove anos escrevi a minha primeira história de Amor. Escrevi-a com o intuito de fazer um filme e, com excepção de algumas pessoas que me são muito próximas, nunca a mostrei a ninguém. Uma dessas pessoas é uma mulher por quem estive muito apaixonado e que acabou por ser a mãe da minha única filha. Separámo-nos dezasseis anos depois e hoje em dia, com quarenta e quatro anos, já perdi a conta às vezes que reescrevi a história. Ainda não fiz o filme.
Na verdade, cada mulher que fez parte da minha vida faz também parte da última versão da história. É por isso que a reescrevo. Se um dia, por acaso, eu conseguir mesmo passá-la para o ecrã, sei que nele poderei ver um pouco de todas as mulheres por quem me apaixonei. Saber isso traz-me de alguma forma uma sensação de alegria e também de angústia, porque naquelas páginas estão, ainda que de forma imperceptível para a maior parte dos potenciais leitores, tantos princípios como finais de Amores que sempre imaginei eternos.
Há algum tempo que não lhe pegava. Na verdade, tinha-a guardado numa pen de sessenta e quatro megabytes que comprei há sete anos e que estava cheia de pó numa gaveta onde guardo todo o tipo de recordações que não tenho coragem de ver de forma regular. Até hoje, dia em que a estive a ler porque, mais uma vez, preciso de lhe fazer alterações.
Das poucas coisas que aprendi com as diversas histórias de Amor que vivi, a mais importante é que a seguir a uma acaba sempre por vir outra. É assim que mantenho as forças para, em tempos estéreis, conseguir escrever sobre Amor.
Para além disso, e ao ler sobre os abraços que cada uma dessas mulheres me deu, percebi também que nenhuma mulher abraça da mesma forma. Sei, pelo menos, que o que um homem sente quando é abraçado por uma mulher nunca é igual ao que sente quando é abraçado por outra. Talvez seja assim que um homem se apaixona ou não. Através da singularidade de um abraço.
Se algum dia fizer o filme, quero que o último abraço, na última cena, pareça tão longo e tão curto como todos os abraços que recebi até hoje.

12.28.2015

pensamentos catatónicos (341)

Acho que já me aconteceu ser Amado por mulheres que nunca Amaram ninguém. Nem sequer a mim, claro. Mulheres que, não Amando ninguém, Amam histórias de Amor. As melhores histórias são sempre aquelas que nos parecem impossíveis de viver. É por isso que as mulheres que não sabem Amar me Amam de vez em quando. Sei contar histórias.
A tragédia das histórias de Amor é que, mais tarde ou mais cedo, acabam por abandonar a sua condição ficcional e passam a ser realidade, e as histórias de Amor verdadeiras dão-se muito mal com a realidade.
A realidade, apesar de tudo, não existe. Existem, isso sim, várias realidades porque cada um de nós tem uma. A minha realidade é que me apaixono mais facilmente por mulheres que gostam de histórias de Amor, ou melhor, por mulheres que não Amam ninguém.

12.24.2015

conversa 2178

(ao telefone)

Ela - Bom Natal para ti...
Eu - Bom Natal também para ti. Obrigado por teres telefonado...
Ela - Estou sem nada para fazer, à espera do meu namorado, e vou telefonando a todos os contactos da minha lista telefónica até ele chegar...

12.23.2015

sexo

Encostei-me a uma nuvem e a nuvem eras tu, com a tua voz trémula a perfumar-me e o teu corpo a fechar-se em concha. Primeiro não percebi muito bem o que é que os teus braços finos queriam, se afastar-me ou se abraçar-me. Depois concluí que tu própria também não sabias. Quando é assim, são os braços que mandam e não nós. Eu obedeci-lhes com receio.

- Sabes que eu tenho quase mais vinte anos do que tu?
- Hum...

E os teus braços a tentarem dar um nó cego em mim. Nunca to disse, mas o meu maior medo era partir-te. Quebrar-te em dois como se quebra, por exemplo, o esparguete antes de o cozer. Foi por isso que hesitei e te penetrei devagar, colocando as mãos a salvo do resto do teu corpo. Estavas tu a suar Amor e eu a Amar suor. Éramos só um quando te percebi a chorar.

- Queres que eu pare?
- Anda!

E eu fui.
Não to disse, mas os teus dedos frágeis pareciam pincéis a pintar-me em Pontilhismo quando me tocavam no rosto, com pequenas e indeléveis manchas Impressionistas. Nunca ninguém me tinha pintado antes, nem eu sabia que o Impressionismo partira do sexo com medo. Se eu soubesse, tinha-te explicado que não sou propriamente uma tela em branco. Foi a vida que me fez assim, em tantas pinceladas sem nexo que eu próprio não sei quem sou.

- Anda! - Tu outra vez...

Uma hora antes estávamos no teu bar habitual, com a tua cerveja habitual e os teus amigos habituais sentados na mesa ao lado. Cumprimentavam-te de forma a que eu os pudesse ouvir bem e tu respondias de forma a que eu não te pudesse ouvir de todo. Apeteceu-me dizer-te que és bonita, mas esse está longe de ser o maior elogio que te posso fazer. Calei-me.

- Gostas de David Byrne? - Perguntaste.
- Sim. Quando tu nasceste eu tinha dezoito anos e já ouvia Talking Heads...

Tinhas-me pedido para fechar a persiana do teu quarto e, em abono da verdade, só conheço o teu corpo por gestos. Nunca o vi, mas imagino-o agora numa pintura que descansa no meu peito e me pergunta pelo futuro.

- Não te metas nisso. Vai correr-te tão mal. Lamento.

E tu a abraçares-me mais.

12.21.2015

sete e meio

Nesta altura do ano, encontrar um bar que não tenha pelo menos um enfeite de Natal é um exercício doloroso. Por isso mesmo é que percorri várias ruas do labirinto da cidade, espreitando discretamente pela porta de cada um, até encontrar um balcão com uma cadeira vazia onde me pudesse sentar sem me lembrar em que época estou. O Natal deprime-me sempre, mas este está a deprimir-me mais do que todos os outros.
Apesar de tudo, tive sorte. A mesma mulher que me atendeu tinha acabado de colocar a agulha num vinil dos Rolling Stones e eu pude beber um copo de vinho durante o "You Can't Always Get What You Want". Um lugar vazio ao balcão de um bar que não tenha enfeites de Natal pode parecer um desejo simples, mas as cidades labirínticas são autênticas mulheres. Nelas nos perdemos e nelas desejamos o que, parecendo fácil, se torna impossível.
Com o primeiro gole, fechei os olhos para poder ver melhor o momento. A música é a última do lado b do "Let it Bleed", um álbum de 1969 que eu tive durante a minha adolescência e no qual ouvia repetidamente esta música. Pegava delicadamente na agulha e devolvia-a de forma repetida ao princípio do tema. Lembro-me de pensar várias vezes que era bom a canção durar sete minutos e meio, para eu não me cansar de o fazer.

You can't always get what you want 
You can't always get what you want 
You can't always get what you want 
But if you try sometimes, yeah 
You just might find you get what you need!

O que é que pode acontecer em sete minutos e meio? Tanto...
Uma bomba pode cair em Aleppo e matar uma família inteira. Nos casos mais cruéis, pode até deixar apenas um ou dois sobreviventes que viverão mais algumas décadas sem esquecer esse momento durante um segundo que seja. Dois turistas, um americano e uma espanhola, podem apaixonar-se em Roma e viver um Amor impossível durante todo esse tempo, com viagens e discussões constantes sobre o Atlântico e sobre quem devia mudar-se para onde. Um homem solitário pode escrever um texto sobre o que sente nesses sete minutos e meio e, daqui a muitos anos, tornar a lê-lo sem lhe perceber o sentido, mas lembrando-se que demorou a beber o copo de tinto exactamente o mesmo que a música a chegar ao fim.
A mulher aproximou-se do antigo gira-discos Akay e colocou a agulha no princípio da música para a ouvir outra vez. Olhou para mim de relance, talvez para perceber se eu consentia, e eu pedi-lhe outro copo de vinho, que ela me serviu com um pequeno chocolate negro.

- É daqui do Porto?
- Não. Venho muito aqui porque adoro cidades labirínticas...

12.17.2015

conversa 2177

(ao telefone, esta manhã)

Eu - Queres tomar o pequeno-almoço?
Ela - Quero...
Eu - Escolhe um sítio, que eu vou lá ter.
Ela - Ah! Estavas a dizer os dois juntos?!

12.16.2015

conversa 2176

Ela - Como é que andas de Amores? Bem ou mal?
Eu - Nem bem, nem mal. Nem sequer ando...
Ela - Tens que perceber uma coisa duma vez por todas...
Eu - O quê?
Ela - É muito raro uma mulher apaixonar-se por um homem. Normalmente, fica à espera que um homem se apaixone por ela e, na melhor das hipóteses, apaixona-se pela forma como esse homem gosta dela.
Eu - Foi isso que te aconteceu comigo?
Ela - Claro.

12.14.2015

respostas a perguntas inexistentes (358)

Uma vez convidaste-me para comer uma torrada em tua casa. Pode parecer vulgar, mas olhando para os meus mais de quarenta anos de vida não encontro outro convite igual. Estavas no terraço da tua casa e a Lua tinha mergulhado numa fina poça de água que crescera perto dos vasos com plantas.

- Gostas de torradas?
- Acho que sim... nunca pensei muito nisso.
- Queres tomar o pequeno-almoço comigo?
- Mas... são dez da noite.
- São. Terás que dormir cá e esperar pela manhã.

E então ergui os olhos e percebi que a Lua voltara para o céu.
Passaram-se alguns meses até voltarmos a comer torradas de manhã, num café encolhido numa das esquinas da cidade. Estavas a tentar explicar porque é que tinhas gostado de mim e eu, depois de te ouvir, percebi que não tinhas gostado assim tanto. Afinal de contas, também eu gostava de ti e não sabia nem me apetecia explicar porquê.
Nunca quis explicar os meus Amores. Nem os desAmores, já agora. Guardo-os numa gaveta muito especial da minha memória e só lá vou vê-los quando sei que isso não me vai deprimir. Duas formigas passeavam-se entre as migalhas que sobravam no prato e, por falar em formigas, os clientes já faziam fila na caixa. Queriam pagar e partir para mais um dia igual ao anterior e ao próximo. Acabaste por ir com eles.
Existem Amores que nunca o chegam a ser e, na verdade, são bons. São os Amores dos quais nos conseguimos despedir sem grande constrangimento. Num café, por exemplo, depois de comer torradas. 
Todas as pessoas deviam viver um Amor desses de vez em quando, só para tornar a vida mais leve. Os outros Amores, aqueles dos quais nunca nos conseguimos despedir, não vão lá com torradas. Foi o que eu te disse, pelo menos.

12.13.2015

mulheres em pinturas nos moliceiros (6)


OLHA QUE A PASSARA QUER A MINHOCA!...

12.11.2015

a mulher que não sorri

Sempre que escrevo, melhor ou pior, escrevo sobre uma mulher. Aprendi com o tempo que é uma forma dessa mulher existir, escrever sobre ela. E como a existência precede sempre o Amor, voltei à cidade do Porto para frequentar as oficinas de escrita criativa da TKNT. Aliás, ir ao Porto uma vez por semana é uma das terapias que vou manter na minha vida.
Um exemplo: a mulher desta fotografia passou a existir na minha vida, escrita por mim, esculpida pelo Nuno e fotografada pelo Paulo Pimenta. Para quem precisa de escrever por existir, as oficinas da TKNT são um conselho meu pessoal.


fotografia de Paulo Pimenta

O que me sobra na memória, espremido o dia, é a mulher do lenço branco na cabeça e da face escondida. “Sorria! Está a ser filmado!”, lê-se na entrada da lojinha de cacarecos onde turistas esgravatam ímanes para frigoríficos como galinhas a cercar um monte de milho. As galinhas sorriem ao olhar a placa, mesmo em Português, entendendo-a por causa de um smile pateta.
É tão estranho passar o dia a ver pessoas sorrir apenas porque lhes mandam. Como se estar triste fosse motivo de censura. Pior! Como se sorrir sem vontade fosse natural. Aquela mulher, fugaz como um insecto ao Sol, ficou-me cravada na memória por ser a mais honesta: A única que não sorriu. Vendo-lhe a cara, sei que me apaixonaria por ela. Sempre me quis apaixonar por alguém que não sorrisse por obrigação. Vou pedir demissão de vigilante desta lojinha – onde a minha tarefa mais importante é desconfiar de pessoas que sorriem por obrigação – para estar atento ao sol que desenha as paredes da cidade. Talvez torne a ver a mulher do lenço branco na cabeça. A mulher que não sorri

12.09.2015

respostas a perguntas inexistentes (357)

Do que me lembro é de gostares de mim. De me dares a mão num cruzamento onde o cheiro de flores se confundia com o de gasolina queimada e me dizeres que, talvez por isso, uma borboleta branca tivesse optado pelo alcatrão em vez das plantas que rareavam as margens. Sempre gostei que gostasses de mim em sítios inóspitos. O teu conforto fazia-me rir do desconforto da cidade.
E eu segurava-te também a mão, não fosses tu querer fugir e deixar-me ali. Uma borboleta numa manhã de Dezembro só podia estar enganada, disse-te. Mais do que isso, só se estivesse a enganar o mundo enganando também o seu próprio tempo. Talvez não lhe apetecesse ceder aos pequenos caprichos da vida e fazer tudo aquilo para que a genética a programou: voar em círculos tortuosos e errantes até morrer.

- Cala-te.

E eu calei-me. Cedi à complexidade neurobiológica que me fazia estar ali, de sorriso estendido numa cidade encolhida, a sentir o suor da tua mão chover na palma da minha. Depois parámos numa montra e tu apontaste para um quadro da cidade, pintado por alguém cujo nome não se reconhecia na assinatura.

- É por isso que te Amo. Vejo uma coisa bonita e tenho com quem partilhar.

E partilhaste. E abracei-te. É do que me lembro.
O Amor nunca foi de fiar. Há uma altura em que nem sequer conseguimos perceber como é que aquilo que é mais simples se torna tão difícil, ou seja, duas pessoas que gostam uma da outra gostarem-se de facto.
Talvez a tristeza de um desAmor vá sendo só isso. Ter os passos mais curtos porque nunca nos apetece chegar onde estamos a ir. Uma pequena mota ruidosa fere de morte o silêncio da manhã e uma interminável fila de cacos de vidro espreita-me de cima do muro de uma das casas da rua. É Dezembro e acabei de ver uma borboleta branca a pousar num poste público de iluminação.
Lembrei-me de ti. É do que me lembro, aliás. De gostares de mim.


12.08.2015

respostas a perguntas inexistentes (356)

Dos Amores às Escondidas

Se calhar todos nós Amamos às escondidas, como eu. Se for verdade, já todos vivemos algumas centenas de Amores diferentes, ou até milhares, mesmo que só tenhamos tido um Amor Mesmo na vida.
Os Amores às escondidas podem ou não ser recíprocos. Nunca sabemos, precisamente porque são escondidos. Quando, por acaso, passamos a saber que somos correspondidos, então deixa de ser um Amor às escondidas para passar a ser um Amor Mesmo.
Apaixono-me muitas vezes durante cinco minutos pela empregada do café, pela do quiosque onde compro o jornal, pela que se cruza comigo quando vou pôr o lixo lá fora ou pela que me atende na farmácia. Elas não sabem, claro. Nunca lhes disse. Afinal de contas, quando não as estou a ver não me sinto apaixonado. É apenas quando estão perto de mim, o que dá ao Amor uma explicação: a presença.
Há muitos Amores que nascem de Amores às escondidas. Já me aconteceu. O problema do Amor Mesmo é que a explicação desaparece. A presença deixa de ser um motivo para Amar e passamos a Amar sempre, mesmo quando estamos sozinhos em casa, apenas porque sim.
É por isso que quando um Amor Mesmo de alguém está a correr menos bem, não vale a pena aconselhá-lo a deixar de Amar. Se não há motivo nenhum para Amar Mesmo, também não há nenhum para deixar de o fazer. Os Amores Mesmo nunca morrem duma só vez, como os Amores às escondidas. Com o tempo, vão-se fortalecendo ou enfraquecendo. Quando um Amor Mesmo se fortaleceu muito, demora bastante para desaparecer.
Ainda assim, há um conselho que se calhar todos podem seguir quando o seu Amor Mesmo parece doente. Vivam muitos Amores às escondidas. Eu hoje, por exemplo, tenho seis encontros marcados com Amores desses. Eles é que não sabem. Nem vão saber.

12.07.2015

O Dia do Mar, do Rui Oliveira

No meio da tempestade, abri uma nova empresa com um grande amigo. Não é uma empresa qualquer. É, antes de mais nada, a perseguição de um sonho, porque é também uma tentativa de eu viver a fazer o que mais gosto: filmes.
Para além dos filmes,  e sempre relacionado com audiovisual, damos formação, fazemos consultoria e organizamos eventos. Para já, gostava de vos convidar a seguirem a empresa Outer Rim Works no facebook e para verem este pequeno vídeo que fizemos para o músico Rui Oliveira. Também o podem seguir no facebook dele.
Eu agradeço!

um gato numa varanda

De vez em quando morríamos de Amor. Principalmente aos Domingos depois do almoço, que era a altura em que descobríamos que não tínhamos coragem para dizer um ao outro que precisávamos de estar sozinhos. Na verdade, era também nesses momentos que tínhamos tempo para estar os dois juntos sem as preocupações inerentes à vida mesquinha que levávamos. Por isso nem sequer a nós próprios tínhamos coragem de o dizer.
Ela tinha um gato que eu nunca vi. Sempre que a visitava perguntava-lhe por ele, mas ela dizia que em Lisboa é normal os gatos frequentarem os telhados dos edifícios dos bairros antigos. Cheguei à conclusão que ele só entrava em casa para comer e saía logo outra vez. De facto, na cozinha havia sempre uma taça com comida e outra com água.

- Como é que podes ter a certeza que é o teu gato, e não outro, que vem cá comer?
- E se for outro, isso incomoda-te?

Era Domingo e eu tinha chegado apenas no dia anterior. Como é que numa relação onde só nos víamos ao fim de semana já se notava um desgaste tão grande? Pensei na pergunta, mas engoli-a imediatamente, para não provocar uma discussão.

- Se queres ter sexo antes de ires embora tem que ser agora. A seguir tenho que estudar...
- Esta semana estava a pensar ir só amanhã...
- Então deixa estar. Temos logo à noite.

Se ela ia estudar, eu tinha a porta aberta para me perder em Lisboa. Dei-lhe um beijo seco nos lábios e saí. É, sem dúvida, uma das cidades que eu gosto de visitar e revisitar, Lisboa. Nunca me canso de tentar perceber o labirinto de ter muitas cidades pequenas numa cidade grande. Talvez Lisboa seja um bocadinho como a minha vida, uma cidade onde me posso perder, mas onde também me posso aconchegar num pequeno bairro qualquer.
De qualquer forma, aquela tarde foi diferente. Passei-a a olhar para os telhados a ver se descobria algum gato. Vi vários e cheguei à conclusão que ela podia ter razão. Fiquei cinco minutos a olhar para um que, empoleirado no ferro enferrujado duma varanda, me fitava também. Era cinzento com riscas mais escuras. Enfim, um gato normalíssimo que só me despertou a atenção por estar a olhar para mim. Tinha uma coleira vermelha.
Nesse fim de tarde decidi que não fazia sentido voltar a Lisboa tão cedo para a visitar e acabei por apanhar um comboio para Aveiro. Estava farto de morrer de Amor ao Domingo. Não lho disse logo. Planeei telefonar-lhe na quarta-feira para a informar da decisão, o que acabei por não fazer. Por isso mesmo, a última conversa que tivemos foi sobre o gato dela.

- Conheci o teu gato. Estava na varanda dum prédio ao cimo da rua...
- Como é que sabes que era ele?
- Incomoda-te se for outro?

E saí. Ela também nunca mais me telefonou.

12.03.2015

conversa 2175

Ela - A minha relação atingiu o auge.
Eu - Fixe!
Ela - Não é assim tão fixe...
Eu - Então?
Ela - Quer dizer que a partir daqui nunca vai melhorar. Só pode piorar...

12.01.2015

respostas a perguntas inexistentes (355)

O Amor é tão estranho, pá.

Era um domingo à tarde como outro qualquer, daqueles em que a maior parte das pessoas se dá conta que não sabe o que fazer de manhã, mas quando chega a noite arrepende-se de não ter feito o que devia. Foi assim que tu me explicaste porque é que estavas à janela a ver os carros a passar. Aproximei-me e deste-me algum espaço, como se eu também quisesse ficar ali a contemplar a inércia domingueira da cidade.
Naquela altura havia Amor entre nós, mas não quando estávamos juntos. Era como se o Amor fosse uma terceira entidade que ia dar uma volta sempre que estávamos os dois em casa. Eu passava os meus tempos de solidão a pensar em ti, depois passava o tempo contigo a desejar voltar a essa solidão. Menos quando fazíamos Amor ou tínhamos visitas em casa.
O que nunca te expliquei bem é que não era para estar sozinho que eu queria estar só. Era para me lembrar de ti com a intensidade dessa saudade. Na verdade, acho que tu sentias exactamente o mesmo que eu. Pelo menos passaste a aceitar bem que eu me afastasse para ir ao café, ao cinema ou a outro sítio qualquer, mas telefonavas-me sempre quando a distância entre nós crescia.

- Não quero ficar a tarde toda à janela! - disse-te.
- Então vai dar uma volta. Eu gosto deste calorzinho que passa pelos vidros da janela.

Afastei-me como uma presa na selva que não quer ser vista pelo predador. Nem a bater com a porta fiz qualquer ruído. Caminhei horas a fio pela cidade sem parar uma única vez, nem que fosse para olhar para uma montra. Acho que passei a tarde a falar com as árvores alinhadas das ruas e das avenidas, que me pareciam tão sós como eu, apesar de estarem umas com a outras.
Quando voltei já o Sol aquecia janelas noutro lugar qualquer do mundo e tu não estavas na janela do quarto. Perguntei-me quanto tempo terias lá estado depois de eu sair, mas não encontrei nenhuma resposta no meu pensamento dedutivo.
Estavas na cozinha a tomar café e a comer um pão com manteiga, com o telefone ao lado como se fosse o cadáver de um animal.

- Saíste, mas deixaste o telefone em casa... - disseste.
- Aconteceu alguma coisa?
- Não... era só para falar contigo.

O Amor é tão estranho, pá.

11.30.2015

é tudo uma questão de toque

Tiveram uma separação difícil. Para ambos, entenda-se. É natural que depois de quase vinte anos a partilhar a vida com outra pessoa não se saiba aproveitar a liberdade de estar só. Estar só é bom, mas requer treino, experiência e aprendizagem. Talvez por isso mesmo, alguns meses depois ainda telefonassem um ao outro regularmente, mais para ouvir do que para falar. A voz do outro fazia-lhes falta.
Combinaram tomar café um Domingo, depois do almoço, mas acabaram na cama dele numa tarde de sexo de que já não se lembravam de ter. Sem os mecanismos de quem dorme lado a lado todos os dias e com a improvisação e energia de quem acabou de se apaixonar. Mesmo assim não repetiram a experiência. Sabiam que o caminho não podia ser o de regresso. E assim chegaram finalmente ao silêncio entre ambos.
Passado alguns meses ela apaixonou-se e tornou a casar. Pelo menos foi o que ele ouviu dizer. Nessa tarde chorou um bocado, sem ninguém ver, e depois convidou uma garrafa de uísque para passar a noite. A ressaca fez-lhe bem. Foi com dois comprimidos para as dores de cabeça e uma garrafa de água com gás num café dos subúrbios que teve olhos pela primeira vez para outra mulher. Não que se tenha apaixonado, mas pelo menos interessou-se. Sorriu.
Ela era morena, pele muito branca e um sinal no queixo. Não seguia nenhum padrão especial de beleza, mas parecia ter em excesso aquilo que lhe faltava a ele: a vida resolvida. Além disso era simpática sem ser dada e era decidida sem ser arrogante. Enfim, um luxo. Tinha comprado uma garrafa de Sumol de Laranja de litro e  meio, quatro pães da avó e tomado café ao balcão. Nunca mais a viu, mas o momento foi interessante. Tão interessante como uma data de nascimento.
Depois de nascer vieram as dores de crescimento. Noites de sexo falhado e dias de Amor empatado. Era quase sempre uma questão de pele. Ao primeiro toque numa mulher percebia a diferença e uma tonelada de memória caía-lhe em cima. O que ele mais ansiava era pelo momento a seguir ao sexo, aquele em que se olha para o tecto e se descobre realmente o outro, já depois de lhe ter conhecido o corpo.
À partida, seria num desses momentos que ele se apaixonaria de novo, não fosse o Amor ser sempre o contrário do que pensamos que vai ser. Comprou um bilhete de autocarro sem querer ir a lado nenhum, apenas para dar uma volta à cidade sem ter que se esforçar. As luzes dos candeeiros públicos misturavam-se com a negritude do fim de tarde numa estranha aguarela abstracta. Uma mulher sentou-se ao lado dele e adormeceu em poucos minutos. Encostou-se ao seu corpo como se fosse uma cria de pássaro num ninho e deu-lhe uma mão. Ele deixou-se ir até ao fim, respirando suavemente para não a acordar.
É tudo uma questão de toque, pensou.

11.29.2015

conversa 2174

(ao telefone)
Ela - Abraça-me, por favor.
Eu - Como?!
Ela - Com palavras.

11.27.2015

conversa 2173

Ela - Tens alguma coisa para fazer no sábado?
Eu - Sim.
Ela - O quê?
Eu - Nada.
Ela - Então... tens ou não tens?
Eu - Tenho. Tirei sábado para estar sozinho e não fazer nada, portanto, se alguém me perguntar se estou ocupado, digo que sim.
Ela - Sabes que eu entendo porque é as mulheres se fartam de ti num instante?

11.26.2015

uma bola no fundo do copo

- E a Márcia?
- E a Márcia o quê?
- É bonita. Nunca te apaixonaste por ela?

O fundo do meu copo de cerveja tem uma bola verde. Não sei porquê, mas suponho que seja para o distinguir dos copos de cerveja dos outros bares, que são todos iguais. Não costumo sentar-me em praças de alimentação em shoppings a beber cerveja, mas desta vez não tive escolha. A Marta trabalha ali perto e não tinha tempo para ir a outro sítio.
Mesmo ali, num ambiente que considero inóspito, gosto de a ver. A Marta é uma daquelas amigas que tanto posso visitar cinco vezes numa semana, como depois passar três ou quatro meses sem lhe pôr a vista em cima. De qualquer forma, sei que quando ela me telefona para tomar café é uma ordem que, mesmo que seja num centro comercial, eu acato.

- Desde quando é que um homem se apaixona por uma mulher só por ela ser bonita?!
- Desde que é homem... - ri-se.

Rio-me também.
A Marta pensa que eu gosto muito de mulheres, o que até é verdade. O que não é verdade é que gosto de muitas ao mesmo tempo. Gosto de uma de cada vez e tenho uma enorme dificuldade em deixar de gostar. Normalmente, quando tenho que o fazer, começo a reparar em coisas tão absurdas como o facto de um copo de cerveja ter uma bola  verde pintada no fundo. Por isso mesmo afasto o copo vazio para o lado e esqueço o que vi.

- E então?! Apaixonas-te por quê?! Diz lá. Inteligência? Sensibilidade?
- Sei lá...
- Não sabes?
- Claro que não. Normalmente apaixono-me por uma mulher. Nunca consegui simplificar com adjectivos uma mulher. Nem sequer tento...

Um homem aproxima-se e cumprimenta a Marta. Ficam os dois a falar um bocado sobre uma coisa qualquer que não me diz respeito. Por um momento não interesso para nada e gostava de ainda ter alguma cerveja no copo. Nem sequer sei para onde olhar ou onde pôr as mãos. Suspiro. Sei que ela me ia dizer qualquer coisa que eu queria ouvir, mas o mais provável é já nem se lembrar quando ele se for embora.
Levanto-me e faço, propositadamente, algum ruído com a cadeira. Escolho outro bar para ir buscar mais uma cerveja, apenas pela curiosidade da bola no fundo do copo. Escolho um onde uma mulher bonita, por trás do balcão, parece impaciente por não ter clientes.

- Uma cerveja de pressão, por favor.
- Um fino?!
- Isso...

Não, definitivamente não me apaixono por uma mulher apenas por ela ser bonita. Esta é muito bonita, por exemplo, e sei que nunca me apaixonaria por ela. Na verdade, nem sequer gosto muito da forma como ela me atende, apesar de ser simpática.

- Um e vinte!
- Obrigado.

O homem está a ir-se embora. Óptimo. A Marta não mo apresentou e eu não tive que fazer um sorriso amarelo para parecer simpático. Sento-me. A bola no fundo do copo é amarela. Curioso, já sei porque é que não gostei da rapariga. Foi o sorriso amarelo. Os sorrisos desta cor não nos definem como pessoas, mas definem a incompatibilidade entre uns e outros. Acho eu, pelo menos.

- Lembras-te do que me ias dizer? - Pergunto.
- Não, desculpa. Foste buscar uma cerveja e não me trouxeste uma...

Ela levanta-se. Fico a vê-la a serpentear as mesas cheias de tabuleiros e restos de comida até se encostar a um balcão. É bonita e não me faz sorrisos amarelos, mas nunca me apaixonei por ela. Nem sequer na noite em que nos beijámos dentro de uma tontura alcoolizada. Acho que às vezes a vida é mais sobre as relações que não temos do que sobre as que temos.
Não sei qual é a cor da bola que ela trará no fundo do copo.

11.24.2015

limpar os pés e pedir licença

Uma excitação levemente alcoolizada. Era o momento perfeito, pensou ele assim que ela o convidou para subir. Tinha-a acompanhado a casa apenas pelo tradicional cavalheirismo e agora adivinhava um mundo de prazer à sua frente, pelo menos por uma noite. Sexo quase de certeza e, com sorte, repetido na manhã seguinte. 

- Só um copo de vinho, então! - disse.

Ela sorriu. Adorava que os homens não admitissem ao que iam. Sempre lhe pareceu que eram os mais sinceros na cama, aqueles que eram mais mentirosos nas palavras. O último com que tinha tentado rasgar a solidão em que vive dissera apenas "claro!" e, com tanta ânsia e clarividência masculina, ela acabara a olhar para uma melga que tropeçava no tecto do quarto enquanto ele se masturbava dentro dela. Fez-lhe o favor de o deixar acabar e depois inventou uma desculpa qualquer para o mandar embora. Não houve manhã seguinte.
Subiram num elevador demasiado pequeno para os dois. Ainda não era o momento de se tocarem e, sobretudo, de se cheirarem. Depois de uma noite a dançar num dos poucos bares da cidade onde ainda se fuma, não era pelos aromas que se iam atrair. 

- Em que andar vives?
- Quinto. É rápido.

Ela abriu a porta e entrou primeiro, sem limpar os sapatos no tapete. Foi à cozinha confirmar que tinha uma garrafa de vinho tinto com um rótulo que não parecesse muito mau. Ele demorou alguns segundos no tapete de entrada e depois, já sem contacto visual com ela, pôs a cabeça dentro de casa e pediu licença com o primeiro passo.

- Não sejas tolo. Entra!

A vantagem do vinho é que substitui as palavras quando elas ficam presas na língua. Deram alguns goles pequenos entre sorrisos amarelos e atrapalhados, até ele se encostar à parede e desligar o interruptor da luz com as costas. Foi sem querer, mas pareceu de propósito. O primeiro beijo não teve testemunhas oculares.
Não era a primeira vez que passava a noite na casa duma mulher acabada de conhecer, mas sentia-se um pouco intimidado. Além disso, sempre achou que o melhor Amor é aquele em que se entra devagar, a pedir licença depois de limpar bem os pés. 
Já na cama, nu e com o falo no descanso do guerreiro, lembrou-se do seu primeiro pensamento: "com sorte, sexo na manhã seguinte". Ela também já dormia mas, entre os seus sonhos, abraçou-o e pousou-lhe a cabeça no peito com a leveza duma andorinha.
O sexo em que se limpa os pés à entrada e se pede licença é o sexo que se prolonga no tempo. Às vezes na vida.
Quem sabe?

11.22.2015

conversa 2172

(na minha casa)

Ela - Tens o fogão todo sujo.
Eu - Eu sei...
Ela - As manchas de gordura são as mesmas da última vez que cá vim, na semana passada.
Eu - Isso é porque eu não o limpo há mais de uma semana.
Ela - Não sei se conseguia viver contigo, assim com as mesmas manchas de gordura no fogão durante uma semana.
Eu - Eu não sei se conseguia viver contigo, assim a criticar-me por eu não limpar o fogão todos os dias.
Ela - Percebes que não é normal ter o fogão assim?
Eu - Percebo que vivo sozinho precisamente para ninguém me chatear com essas coisas e tu estás a chatear-me na mesma.
Ela - Eu também devia viver sozinha, se calhar. O meu marido é mais ou menos como tu e estamos sempre em conflito com este tipo de coisas.
Eu - Coitado do teu marido.
Ela - Aí estamos de acordo.

11.21.2015

Você é linda!

Estava na cozinha a abrir uma lata de tomate aos pedaços, daquelas mais baratas, quando o telemóvel tocou. Tu não sabes, mas há vários meses que me lembro de ti sempre que ele toca. Cada vez que o ouço, corro para ele na esperança de ver o teu nome no ecrã e preparo-me para te dizer "olá" com a voz mais natural possível.
Mais uma vez não eras tu e acabei, como é costume, por dizer "olá" num tom decepcionado. Prendi o telemóvel entre o ombro e a orelha para libertar as mãos e poder continuar a cozinhar. Despejei os pedaços de tomate para o wook, juntei dois dentes de alho esmagados, um fio de azeite e uma malagueta. Depois acendi o lume e encostei-me a uma das paredes da cozinha a ouvir a minha interlocutora.
Uma vez perguntaste-me se havia alguma música que me lembrasse de ti e eu respondi-te que sim. Aconselhaste-me a configurar o telemóvel para tocá-la sempre que fosses tu a ligar-me. Deixa-me dizer-te que ainda bem que nunca o fiz. Assim, agora ganho uma vã esperança de seres tu mesmo quando não és. São alguns segundos em que a minha vida volta a ganhar cor. E sabem-me bem, esses segundos. Obrigado por seres uma música.
Não sei se já te aconteceu não conseguir ouvir uma pessoa por estares a pensar noutra. A mim acontece-me frequentemente por estar a pensar em ti e admito que perdi, muito provavelmente, mais de metade do telefonema. Ainda assim, nesse pântano sonoro em que me encontrava, uma frase ficou-me gravada na memória como se fosse uma tatuagem definitiva.

- Não era bem contigo que queria falar, mas ele não me atende o telefone e eu preciso desabafar...

Não percebi logo o contexto em que ela me disse aquilo, mas foi como se me despertasse do hipnotismo em que estava por ter saudades tuas. Talvez, não sendo tu a telefonar-me, eu possa aproveitar a voz de outra pessoa qualquer, mesmo que seja de alguém que me chama apenas para desabafar. É como se nós pudéssemos emprestar um bocadinho do que somos a quem não quer tudo mas, de facto, um bocadinho dá jeito naquele momento.

- O que é que estás a fazer? - perguntou.
- A pôr dois ovos a escalfar em tomate frito. Se quiseres ponho quatro e vens cá jantar...

Um quarto de hora depois ouvi-a tocar à campainha. Já eu tinha a mesa posta com dois pratos, uma garrafa de vinho branco e uma música a passar no antigo sistema midi que ainda tenho na sala. "Você é Linda" do Caetano.

11.20.2015

coisas que fascinam (198)

O plano A

Para tudo podemos ter um plano B.  Menos no Amor. Se no Amor tivermos um plano B, então não é de Amor que falamos. É só por isso que nos sentimos perdidos quando alguma coisa corre mal com as nossas emoções. É que todos os planos, que não verdade são só um, parecem estar a falhar.
Ainda assim, o tempo que passa por nós e nos engelha a pele é o mesmo que nos ensina que podemos ter vários planos. Apenas não podem ser contemporâneos. Os planos A podem suceder-se, os planos B nunca existem.
Porque é de tempo que falamos quando falamos de Amor, foi esse mesmo tempo que me ensinou a perceber até quando me devo manter no meu plano A. É enquanto os olhares que se cruzam no ar se agarram como borboletas tontas e os braços se amarram como cordas de um navio. É só isso que define um Amor. É só isso que me mantém no meu plano A.


respostas a perguntas inexistentes (354)

uma mulher na passadeira

Mesmo à minha frente, uma mulher atravessa a avenida com as mãos nos bolsos dum casaco comprido. Foi a primeira a pisar os traços brancos da passadeira, assim que o semáforo para peões ficou verde, mas vai ser última a chegar à outra margem, aquela em que eu estou petrificado como uma estátua esquecida. Todos os outros transeuntes, apressados, ultrapassaram-na como se estivessem a chegar à meta numa prova de velocidade e agora passam por mim tangendo-me os ombros com toques embrutecidos.
Os motores dos automóveis rosnam como cães raivosos atrás de um portão de ferro, ameaçando avançar com a mesma ânsia.
Apercebo-me agora que todos os que tenho visto na rua parecem estar com pressa para chegar a qualquer lado. Menos ela, claro, que finalmente passa por mim. Trocamos olhares durante dois segundos e ela continua até desaparecer numa esquina qualquer. Foi a única que me viu. Foi a única que eu vi...

11.19.2015

pensamentos catatónicos (340)

Estava a lavar a louça e feri-me na ponta de uma faca de cozinha. Cortei um dedo. Durante três segundos fiquei a ver o sangue misturar-se com o detergente em pequenas porções de vermelho. É estranho. O sangue lembra-me sempre de ti. Talvez por sair de dentro de mim.
O dedo, o indicador da mão esquerda, ganhou uma dor latejante. Larguei o esfregão, a faca e o copo que tinha entre as mãos e disse uma asneira que só as paredes ouviram. É estranho. As paredes lembram-me sempre de ti. Talvez por ser com elas que falo da solidão que é não te ter.
Rio-me. Acho que a maior parte de nós não dá a devida importância às paredes. Em silêncio, construímos muros que nos separam, como os que dividem Jerusalém da Cisjordânia ou o México dos EUA. Só nos manifestamos quando eles caem, como quando caiu o de Berlim. De alegria, claro. Temos a mania de gritar felicidade e de engolir a tristeza.
Talvez um dia destes eu derrube estas paredes e grite ao mundo que gosto de ti. Talvez o mundo organize uma banda com tambores e oboés. Será o dia da revolução. Até lá, direi asneiras às paredes.

11.16.2015

respostas a perguntas inexistentes (353)

É tão bom

É tão bom não te esquecer, ter na pele a confirmação do nosso Amor na memória de um toque que, ainda que efémera, é a única confirmação possível de qualquer Amor. É tão bom tudo o resto ser a incerteza de sempre e ser apenas nela que vivo. Mesmo a de quando não precisava de me lembrar de ti.
É tão bom seres tu este vento outonal que me faz apertar os colarinhos do casaco logo de manhã, enquanto aqueço as mãos numa chávena de café quente e ouço as conversas dos outros. Uma criança a apontar o dedo para um pastel colorido na vitrina e o pai à procura do jornal nas mesas do café, uma mulher a contar as moedas para saber quantos pães pode comprar e um homem já embriagado a falar dos atentados em Paris. A vida é uma palermice sem ti.
É tão bom seres a mulher que trava bruscamente para me deixar passar na passadeira e que me sorri por trás de um pára-brisas escurecido, morreres-me a cada cinco minutos num suspiro perdido ou num olhar solitário. É tão bom saber que todos os olhares que se cruzam na cidade são olhares de pessoas sós e que o meu se lembra de ti.
Uma poça de água a beijar o alcatrão sujo, por exemplo, é o toque húmido dos teus lábios na minha pele. Fico a vê-la ondular, depois de uma motorizada ruidosa me cortar o pensamento, e transforma-se no mar de Verão onde tu molhaste os pés. 
Vou só molhar os pés, disseste. E eu na toalha vermelha, derrotado pelo Sol, à espera do teu toque outra vez por um segundo que fosse. A incerteza no Amor é a certeza de que a qualquer momento me podes tocar outra vez e, mesmo que nunca o faças, é tão bom não te esquecer.

11.12.2015

pensamentos catatónicos (339)

a dor de pescoço

Das dores de que falamos quando falamos de Amor, a do coração é a mais conhecida. O coração dói-nos quando o Amor também nos dói. Há também quem fale na dor que sente no peito, quando a palavra "coração" parece demasiado específica e pequenina para falar de Amor. Depois vem a dor de corno, quando o Amor que falhou partiu para parte incerta e nós nos zangámos com o mundo.
Quanto tu me faltas eu falo da dor de pescoço, uma dor de que ninguém fala não sei porquê. Talvez nunca tenha sido diagnosticada nos Amantes falhados apesar de, tenho a certeza, ser bastante comum. É a dor da falta da tua cabeça encostada ao meu pescoço, num abraço que sempre me pareceu o mais bem encaixado do universo. A tua cabeça encostava ao meu pescoço como a peça de um puzzle. Sabes aquela parte redonda que encaixa de forma perfeita na peça ao lado? Era isso... depois abraçava-te e ficávamos assim...
Às vezes, quando estou sozinho e me lembro de ti, vem-me essa dor de pescoço que é também a minha dor de Amor. As dores do Amor são sempre dores de uma parte qualquer do nosso corpo, porque é no corpo que o Amor carimba o tempo que passa.

respostas a perguntas inexistentes (352)

o melhor de dois mundos

O vinho e o Amor são os melhores amigos do Homem. Ambos prometem aquilo que não podem dar: uma vida inteira de paixão e de bebedeira. Não faz mal, porque ambos são capazes de nos fazer acreditar que sim. Com o Amor nos embebedamos e com o vinho nos apaixonamos, acreditando sempre na eternidade dum Amor bêbado, pelo menos até ele acabar.
O fim de um Amor é a sobriedade da vida e estar sóbrio é uma merda. É tornar a acreditar que a felicidade é um luxo a que só nos podemos dar de vez em quando, sempre depois de muita tristeza. Estar sóbrio é aceitar que a injustiça é a normalidade da vida. Assim como trabalhamos muito para ganhar um salário baixo, sofremos muito para ganhar uma felicidade precária.
Os melhores Amantes seriam aqueles que bebem, se não se perdessem na bebida. Os melhores bêbados seriam aqueles que Amam, se não se perdessem no Amor. É por isso que eu peço: Embebedem-se com paixão e apaixonem-se com vinho. É o melhor de dois mundos.

11.10.2015

conversa 2171

Ela - Uma das coisas que mais me atrai em ti é que tu não te apaixonas por uma mulher pela beleza física dela.
Eu - A beleza física também conta...
Ela - Eu sei, mas para ti não é o principal.
Eu - Não, não é o principal...
Ela - E isso é apaixonante em ti. É pena tu próprio não seres assim muito bonito.

respostas a perguntas inexistentes (351)

Estou deitado, embrulhado nos teus lençóis como um louco num colete de forças, enquanto tu vagueias pelo quarto. Quando saíres, daqui a alguns minutos, vou-me arrepender de não me ter levantado. O Amor termina sempre que te afastas sem me dizer nada. Ainda assim, não é a preguiça física ou mental que me faz prolongar o tempo nos teus lençóis usados. É tu estares nua. Tu nua no quarto e eu deitado devia ser o fim do tempo.
A nudez nunca enganou ninguém no Amor. As palavras sim. As palavras mastigam um Amor da mesma forma que a nudez mastiga os lençóis onde dormimos os dois. É por isso que te admiro. Sais, fechas a porta do quarto, e os teus passos caminham decididos até à porta, levando com eles o teu corpo e o teu silêncio sincero.
Depois de te ires fica tudo por fazer. A cama e o Amor. Pela janela, vejo os postes de iluminação da rua que segredam entre eles o teu percurso. Sabem para onde foste mas não me dizem nada, os sacanas. Às vezes até se riem de mim. Sabem da minha fraqueza e da minha solidão contigo.
Se eu me fosse embora agora e te deixasse uma carta escrita, em princípio na tua almofada, dir-te-ia que quase tudo o que procuro num Amor é a mentira constante das palavras, mesmo aquelas que trocamos quando tomamos café ou comemos o prato do dia no café da esquina. Quando mentimos é porque temos um desejo. É esse o sustento do Amor. 
Não acredito na verdade.

11.08.2015

coisas que fascinam (197)

O Amor deve ser das poucas coisas neste mundo que só acaba depois de já ter acabado. Ao contrário de um copo de vinho, de um prato de comida, de uma amizade ou de uma viagem, nunca damos pelo fim do Amor a não ser algum tempo depois dele já se ter ido. Ainda assim, o Amor é isso tudo: um copo de vinho, um prato de comida, uma amizade e uma viagem.
A diferença está na linha do horizonte que se desenha em tudo, mesmo que com traços indecisos, menos no Amor. Um copo de vinho satisfaz, um prato de comida também, uma amizade e uma viagem também. Um Amor não.
Bebo esse copo enquanto almoço na companhia de um amigo, numa curta viagem de fim de semana, e explico-lhe que talvez o Amor me tenha avisado do seu fim antes de ter acabado. 
Ele ouviu-me, mas não reagiu. No televisor silencioso, alguns polícias americanos perseguem latino-americanos no vídeo duma música que não conheço nem passei a conhecer, o que dá um ar surrealista à conversa. Talvez esteja a pensar na hipótese do seu próprio Amor ter terminado.
Não sabemos muito bem onde a viagem nos vai levar, mas a descoberta do momento é que podemos repetir o vinho. Diz ele como se tivesse acabado de descobrir a pólvora. Pede mais uma garrafa, redesenhando com um copo vazio no ar e um "outra, por favor" um dos nossos horizontes.
Descobriu mesmo a pólvora. Talvez eu possa repetir-te também.

11.05.2015

É por isso que estou aqui

Estou sentado ao balcão de um bar qualquer onde nunca tinha entrado. É pequeno, o espaço, e do outro lado uma mulher vai fingindo que tem coisas urgentes para fazer. Eu percebo-a. Não a conheço de lado nenhum e, se ela estivesse desocupada, estaríamos demasiado perto um do outro para quem não tem nada a dizer ao outro. Provavelmente seria eu a beber este copo de uísque a correr para procurar alguma privacidade noutro lado qualquer.
Porque é que não vou para casa? Porque preciso de estar sozinho com alguém perto de mim. De preferência alguém que não me conheça e finja estar a fazer alguma coisa para não cruzar o seu olhar com o meu. É assim que estamos os dois, a fingir que não damos pelo outro apesar de ambos termos uma presença pesada.
Ela é bonita. Tenho a sensação que muitos homens já se apaixonaram neste mesmo balcão. Talvez alguns tenham tentado meter conversa com ela e outros tenham simplesmente bebido demais para esticar o tempo deste impasse.
Ela não sabe, mas eu não estou assim tão sozinho como parece. Tudo o que eu faço já fiz contigo ao meu lado. É por isso que continuas a estar comigo, apesar de não estares. Por exemplo, há bocado abraçaste-me e pediste-me para molhar os lábios no meu copo. Depois disseste-me que não percebes como é que eu bebo estas coisas. Fizeste uma careta e eu saboreei o simples facto de existires.
É por isso que bebo estas coisas. Tudo o que bebo, o que como ou o que respiro sabe-me à tua existência e isso chega-me para me sentir feliz. Feliz é a palavra. Não há outra para definir o meu Amor por ti.
Ou então há. Estar assim num espaço pequeno, com uma mulher à minha frente sem fingir que está ocupada a fazer qualquer coisa, só me acontece contigo. Mesmo que tão calada como este copo que bebo. É por isso que estou aqui. 
Onde estiver estarei bem.

11.04.2015

respostas a perguntas inexistentes (350)

O Amor dispensa planos. Quando duas pessoas que se Amam fazem planos fazem-nos para a vida, mesmo que pensem que os estão a fazer para o Amor. O Amor pouco mais planeia do que Amar. A vida é que requer planos para tudo, desde cada refeição até à forma como se vai ganhar a vida. Aliás, é por isso que falamos em ganhar a vida mas nunca falarmos em ganhar o Amor.
O Amor é estatisticamente absurdo. Somos sete mil milhões de pessoas no planeta, mas quando nos apaixonamos passamos a acreditar que encontrámos a única que realmente queremos Amar. É uma mentira óbvia em que passamos a acreditar. Uma vez disse-te que acho que aceitamos essa mentira porque Amar alguém é um acto criativo. Apesar de não haver planos, cada Amor entre duas pessoas é diferente do outro. É por isso que, ainda assim, é mais difícil Amar do que viver. A vida pode-se ganhar, o Amor não.
Quando me calei tu sorriste, apagaste as quatro velas da mesa do jantar com os dedos humedecidos na tua própria língua e molhámos a nossa vontade no fundo de mais um copo de vinho. Depois deitámo-nos na tua cama com os lençóis já tão usados. Acho que foi a primeira vez que fizemos Amor. Estava tudo planeado, menos isso.
É do que me lembro. Do jantar não.

11.02.2015

pensamentos catatónicos (338)

Em vias de extinção

Percebi hoje que o Amor em mim  é uma espécie em vias de extinção, talvez fruto da tua caça exacerbada e da consequente destruição do meu habitat natural. Ainda assim, como presa, não me lembro de te fugir.
Percebi hoje (não se veio nas notícias) que o que ainda resta foge agora de tudo. Quando sinto perigo, escondo-me em casa com um livro do Paul Auster e uma garrafa de branco, como se fossem esses os mantimentos possíveis para um longo Inverno hibernado. Raramente arrisco expor-me no terreno e, quando o faço, faço-o pela calada. Evito ser presa e recuso-me ser caçador.
Talvez esteja à espera que me caces de novo, uma noite qualquer, no corredor movimentado de um centro comercial. Se o fizeres, extingo-me. É disso que estou à espera.


respostas a perguntas inexistentes (349)

Uma incerteza certa

Com a vida, aprendemos que o Amor é a certeza mais incerta. Sempre que vivemos um Amor, temos a certeza que ele é tão forte que nunca vai falhar. Até ao dia em que falha, claro.
Podemos repetir a experiência uma, duas, dez ou vinte vezes que não interessa. Sempre que nos apaixonamos e somos correspondidos, o Amor enche-nos a alma de certezas e, mesmo que a nossa História nos diga que o Amor é incerto, não acreditamos. O Amor cega-nos para o podermos ver um bocadinho melhor. Deixamos de ver o que pode correr mal para ver apenas o que pode correr bem. Não podia ser de outra maneira. Se duvidamos do Amor, então é porque não é Amor o que vivemos. Nalguns casos mais intensos, podemos também aprender que o Amor é a incerteza mais certa. Se por acaso vivemos um Amor forte, mas com base na incerteza, podemos ter a certeza que mesmo quando tudo falhar continuaremos a Amar. 
E da incerteza da minha vida é a única certeza que tenho.

10.30.2015

conversa 2170

Ela - Não te posso telefonar mais este mês. Já gastei os minutos todos que tenho para falar...
Eu - Tens que ir para o meu tarifário. Tenho dois mil minutos por mês...
Ela - É como eu, então.
Eu - Gastaste dois mil minutos em menos de um mês?!
Ela - Sim, mas foi quase tudo com a mesma pessoa...
Eu - Dois mil minutos são mais de trinta horas ao telefone...
Ela - Sim, é pouco...

respostas a perguntas inexistentes (348)

Ela disse-me que era o vento Norte, mas eu não acreditei. Para mim não há vento no mundo que não venha de ti, mesmo que eu não saiba onde estás. É por isso que, em vez de um ponto cardeal, dou a todos os ventos o teu nome, apesar de não o dizer a ninguém.
Dá-me um certo prazer ver o mundo a abrigar-se de ti, ajeitando os colarinhos ou até segurando capuchos fugidios, enquanto  eu abro o casaco e ofereço o meu peito ao frio. É assim que tu me tocas e me abraças nos dias que correm. É também assim que eu te respiro.
E então foi assim: uma criança fugiu à mãe para ir para os baloiços e eu segui-a com os olhos, não fosse ela desaparecer numa curva qualquer da cidade. Quando deu pela falta dela, a  mãe procurou-a através da janela do café, entre as árvores que dançavam ao teu ritmo, e correu atrás dela com um cachecol cor de laranja na mão. Embrulhou-a como se embrulha uma prenda e voltou para dentro. Talvez por se ter apercebido que eu vira a cena toda, justificou-se chamando Norte ao vento. Sorri-lhe, mas não acreditei.
É só para te dizer que não precisas de soprar tão intensamente. Quando o vento amainar hás-de ser outra coisa qualquer.

10.29.2015

respostas a perguntas inexistentes (347)

Acho que sou um bocado desarrumado. Por exemplo, não sei onde guardar as memórias que tenho de ti. Passo os dias a tentar guardá-las numa prateleira qualquer da vida, mas não consigo. Acabo sempre com elas espalhadas por todo o lado, de tal forma que quero andar e não consigo sem as pisar.
Ontem, por exemplo, fiz um montinho com elas e coloquei-o numa caixa que fechei. Pensei que era desta, mas não. A meio da noite precisei duma memória de quando me sorriste ao aterrarmos na cidade dos anjos. Para a encontrar tive que desarrumar as memórias todas e já não fui capaz de as meter no mesmo sítio.
Tem-me acontecido mais ou menos o mesmo todas as noites. O Amor é uma questão de arrumação e eu sou um desarrumado por natureza, o que quer dizer que a minha natureza é Amar-te mais ou menos assim, num caos permanente em mim.
Se um dia me perguntares como é que eu ando e eu responder que estou arrumadinho, então é porque deixei de te Amar. Mas não contes com isso. 

10.28.2015

coisas que fascinam (196)

Prefiro-te azul, se puder ser. Se fores azul, basta-me olhar para cima para te encontrar, mesmo quando não estás.
Aconteceu-me agora mesmo. Na rua cinzenta todos tentavam proteger-se da chuva que começava a cair. Um cão escondeu-se debaixo de um automóvel ainda quente, uma mulher encostou-se à montra de uma loja chinesa e um homem entrou de improviso num café sobrepovoado. Provavelmente nem soube bem o que pedir quando se sentou no balcão.
Na aguarela enegrecida do céu, procurei-te durante um momento. Encontrei-te. Acontece-me de dez em dez segundos.

10.26.2015

coisas que fascinam (195)

ser um tolo sem arte

Dizem que quem parte e reparte e não fica com a maior parte ou é tolo ou não tem arte. Isto é verdade no caso dos bancos e das entidades patronais. De resto, espero que não seja relativamente às pessoas, porque me parece que as pessoas que levam este provérbio a sério não podem ser minhas amigas.
Penso nisto numa noite em que me sento com um amigo à minha mesa e parto e reparto uma garrafa de vinho e um queijo de cabra curado. Partimos o que ponho na mesa sem olhar às partes, repartindo a amizade que temos de igual forma.
É assim também que se parte uma vida para repartir um Amor, em partes nunca iguais mas sem perceber qual delas é a maior e, sobretudo, sem perceber qual é a mais pequena, porque o grande problema de um Amor inteiro é que não cabe em parte nenhuma a não ser, às vezes, num abraço despido.
Quem parte e reparte e não fica com a maior parte pode ser tolo ou não ter arte, mas sabe muito melhor do que qualquer calculista manhoso o que é a Amizade e o que é o Amor. Eu sei que sou tolo e não tenho arte. Têm-mo dito quase toda a vida. Ainda assim estou apaixonado e a falar de um Amor sofrido com um Amigo, à minha mesa, com uma garrafa de vinho e um queijo cujas partes não me interessam.

10.23.2015

pensamentos catatónicos (337)

Às vezes tenho a sensação que podia Amar uma mulher. Podia, mas não Amo. O único motivo para que tal aconteça é outra mulher de quem gosto e que me ocupa o Amar por inteiro.
Não sei até que ponto isto é verdade, nem sequer me interessa saber. Às vezes a verdade nem sequer existe porque cada um de nós tem a sua. A minha verdade é esta. Disse isto a uma pessoa que eu não Amo, embora talvez pudesse Amar, e ela respondeu-me que me podia acontecer exactamente o contrário. Amar uma mulher apenas por causa de outra.
Do mesmo cruzamento podemos seguir direcções opostas. É por isso que aquela que seguimos tem sempre imenso valor.

10.21.2015

conversa 2169

Ela - Aposto que dizes mal de mim a toda a gente.
Eu - Por acaso só digo bem.
Ela - Custa-me acreditar nisso.
Eu - Porquê?! Se calhar tu é que dizes mal de mim, então.
Ela - Eu nunca faço isso. As pessoas que fazem isso são parvas e eu não sou parva.
Eu - Então e estavas a partir do princípio que eu sou parvo?
Ela - Vamos mudar de conversa.

coisas que fascinam (194)

Todos os Amores eram mais fortes se lhes adivinhássemos a saudade. Quando estamos com alguém que Amamos muito não somos capazes de imaginar o fim desse Amor, até porque tudo parece perfeito e ninguém crê que o fim faça parte da perfeição.
Imaginar a nossa vida sem aquele Amor com que vivemos é simultaneamente um sonho e um pesadelo. Um sonho porque estamos de facto a vivê-lo, um pesadelo porque nos apercebemos que podemos não o viver mais.
Adivinhar a saudade de um Amor faz com que o tratemos melhor. Corrijo, adivinhar a saudade de um Amor faz com que o tratemos Amando-o. Todos os Amores deviam ser tratados assim, mas às vezes não são.
E eu, que não acredito na perfeição nem gosto da palavra, pouco mais faço actualmente do que adivinhar a saudade. É por isso que estou à espera que o Amor me bata à porta um dia qualquer. No máximo até aos meus oitenta anos de vida. Depois desisto.

10.18.2015

conversa 2168

(entre adolescentes, no comboio Aveiro-Porto)

Ela - Prefiro que me chamem puta do que feia.
Ele - Estás a brincar.
Ela - Não estou nada!
Ele - Mas porquê?!
Ela - Porque puta eu sei que não sou.

10.16.2015

pensamentos catatónicos (336)

gatos

Eu sei que todos os Amores acabam. Aprendi-o com as pessoas que pensam o contrário e que passam a vida inteira num desAmor constante. Sei que o nosso Amor também vai acabar. A única coisa que eu queria era que ele acabasse depois de nós.
Hoje sentei-me num muro velho que separa uma casa em ruínas duma estrada movimentada. Levei comigo um casaco azul e a solidão que tinha em casa. Creio que não me esqueci de nada. Fiquei a ver os automóveis a passar, todos na mesma direcção desconhecida. Ao longe, o trânsito automóvel é como cada um dos Amores deste mundo. Parece que vão todos na mesma direcção, mas não vão.
Um gato preto subiu ao muro e, depois de me fitar durante alguns segundos, ficou também a olhar para a estrada. Acho que ele me leu o pensamento. A diferença entre mim e ele é que ele aceita essa verdade com naturalidade. Eu não. Se algum dia tornar a andar contigo de carro, vou estar atento aos gatos que olham para o trânsito.
Acho que só os gatos é que percebem que eu desejo sempre que a estrada não acabe. Seria uma forma de, mesmo contigo a conduzir em silêncio, estar sempre perto de ti. O Amor é eternizar cada momento de proximidade, se possível até depois de nós.

10.13.2015

respostas a perguntas inexistentes (346)

Amor à primeira vista

Um dia destes vou tentar perceber porque é que se fala apenas do Amor à primeira vista. E os Amores à primeira audição, ao primeiro toque, ao primeiro aroma ou ao primeiro sabor? São tão ou mais importantes que o da vista, mas ninguém lhes liga nenhuma.
Acho que é por isso que todas as histórias de príncipes e de princesas são sempre uma boa merda. A Disney, por exemplo, só nos apresenta a visão como elemento fulcral da paixão. Mas que erro mais limitador e que péssimo exemplo para quem é criança. Corremos o risco de crescermos a pensar que o Amor é apenas aquilo que vimos e chegar a adulto sem saber Amar. A Disney é apenas pornografia barata.
Quem tem saudades de um Amor tem saudades muito para além daquilo que viu. Eu, que sinto uma enorme saudade de tudo o que me lembro no escuro de um quarto, estou-me nas tintas para a visão. A escuridão é o meu ninho, onde o Amor ultrapassa totalmente os meus olhos enganadores.
Nunca me apaixonei de verdade por ver uma mulher, mas já me apaixonei por um segredo contado ao ouvido, um toque de uma mão ou o cheiro de um abraço apertado. Talvez o melhor dos Amores seja aquele em que a vista começa a ver realmente depois de tudo o resto.

conversa 2167

Ela - Quando me divorciei, decidi dar um tempo a mim mesma para ficar sozinha. Entretanto, já lá vão doze anos.
Eu - Mas vês isso como algo mau na tua vida?
Ela - Nem sei bem. Às vezes apetecia-me ter alguém, mas acho que tenho medo de estragar a paz em que vivo.
Eu - Eu percebo... e nunca tentas uma relação em part-time?
Ela - Em part-time?!
Eu - Sim, vivendo em casas separadas e assim...
Ela - Não. Um Amor é para estar sempre bem acompanhado.
Eu - A não ser que seja melhor estar só do que bem acompanhado.
Ela - Como é que se chama o vinho branco que estávamos a beber?
Eu - Azinhaga de Ouro. É Douro...
Ela - Podes abrir outra garrafa? É a primeira vez que ouço semelhante coisa...

10.12.2015

respostas a perguntas inexistentes (345)

que o Amor não me engane

Um homem e uma mulher nunca se Amam de verdade. Podem ter os dois uma enorme vontade de fingir que sim e, nesse caso, fazem um esforço que pode durar uma vida inteira. O fim desse esforço é o fim do Amor ou, em casos de perseverança, o fim da vida é que é o fim do Amor. De qualquer forma, o Amor exige sempre esse esforço.
Ainda assim, um homem e uma mulher podem Amar-se em mentira. Não faz mal nenhum esforçarmo-nos quando Amamos alguém em mentira, para que tudo pareça verdade. O que temos que aprender é a não deixar que o Amor nos minta a nós, para sermos nós a mentirmos-lhe a ele. É que quando ele nos bate à porta pela primeira vez, tudo parece fácil. Algum tempo depois é que ele nos diz que não é bem assim.
Quando eu e ela discutíamos, eu optava sempre por me calar. Um dia ela disse-me, num tom acusatório, que eu nem sequer tinha opinião sobre as coisas. A minha mentira era essa, mas eu preferia o silêncio à verdade.
Acho que no dia em que a vi partir, deixei-a ir tão facilmente por a saber tão verdadeira que nem sabia fingir que o nosso Amor era verdade.

10.09.2015

respostas a perguntas inexistentes (344)

cócega

Foi contigo que descobri que o Amor é uma cócega. Não sei se te lembras, mas um dia toquei à tua campainha e mandaste-me subir pelo intercomunicador, Quando cheguei ao teu quarto andar a porta estava aberta e tu lá para dentro, numa divisão qualquer fora de vista. Fiquei a limpar a sola dos sapatos no teu tapete da entrada durante alguns minutos até tu apareceres e me perguntares porque é que eu não entrava.
Não to disse na altura, mas não foi vergonha nem timidez. Foi uma cócega. Estar na iminência de te ter fez-me querer ficar assim, feliz para sempre por estar quase. Foi uma cócega. Depois entrei e fizemos Amor, já não sei se durante cinco minutos ou uma hora. Sei que no fim te levantaste para ir às compras e, nesse momento, voltei a querer estar a limpar os pés à tua porta, feliz para sempre por estar na iminência de te ter.
Há muitas formas de Amar, provavelmente tantas quantas as pessoas que Amam alguém. Em tantas formas de Amar, a nossa é sempre a pior, por ser a mais intensa e também a única que permite a quem Ama sofrer. 
Faz-me uma cócega, por favor, tão leve e despreocupada quanto outra coisa qualquer. Abre-me a porta. Eu prometo não entrar.

10.08.2015

coisas que fascinam (193)

Hoje perdi as minhas chaves e atrasei-me a um encontro por causa disso. Tinha a porta de casa aberta mas sabia que, se saísse, não voltava a entrar facilmente. Infelizmente, o mundo não está virado para sairmos e deixar o que é nosso ao Deus-dará. Procurei nos bolsos das calças que tinha atirado para dentro da máquina de lavar, nas confusas estantes do meu quarto e no labirinto desarrumado da sala de estar. Nada. Demorei um quarto de hora a perceber que estavam no bolso do casaco que eu havia de vestir assim que saísse, talvez porque os lugares onde procurei primeiro fossem os mais óbvios.
Podemos perguntar também onde está o nosso Amor quando não sabemos dele. É legítimo. Às vezes o Amor é apenas algo que se perdeu e tudo o que se perde pode encontrar-se de novo. Se não pode, pelo menos faz bem acreditar que sim. Acreditemos que é uma questão de procurar, então. Mesmo que não seja, claro.
Cheguei atrasado porque tinha demorado a encontrar as minhas chaves de casa. Ela não se chateou, pelo menos a julgar pelo sorriso largo que fez assim que abriu a porta. Abraçou-me e deu-me a mão, como se eu precisasse de um guia para os dez metros que distanciam a porta de entrada da casa dela da sala. Depois largou-me como se larga um balão de ar quente e eu não voei. Fiquei ali, preso ao doce suor da mão dela.
Tirou-me um café com um fundo de aguardente, pôs música a tocar no velho rádio que conheço do tempo em que ela me dava a mão todos os dias e esticou as almofadas que adornam o sofá. O gato dela resmungou um pouco e depois assumiu a propriedade de uma delas. Ri-me. Ela também.
Ali, numa sala que já foi minha, procurei o meu Amor como se procura um objecto qualquer. Até o procurei nos olhos claros dela e nos cabelos que voavam em electricidade estática. Procurei-o em cada canto da memória, mas não o encontrei nestes lugares óbvios. Já não está lá.
Talvez esteja mais perto de mim, numa espécie de bolso de casaco que hei-de vestir outra vez um dia destes.

10.07.2015

coisas que fascinam (192)

Há mulheres que todos os dias me salvam a vida, apesar de nem sequer o saberem. Nunca lhes agradeço porque nem sequer as conheço pessoalmente. Falta-me a confiança para tal. Ainda assim, o que me resta é imaginar que lhes faço também esse pequeno favor. Salvar-lhes a vida todos os dias.
Assim que encostei os cotovelos ao balcão e lavei em seco a cara com as palmas das mãos, ela aproximou-se e retirou dois ou três copos de cerveja já bebidos por clientes que não cheguei a ver. Depois disse-me que estava à minha espera.

- À minha espera?!
- Sim. Tive aqui um cliente tão chato que precisava de alguém mais simpático.

É assim que ela me salva a vida todos os dias, a mentir-me sobre mim mesmo. Depois tirou-me um café que, ela já sabe, bebo sem açúcar. Sorri-lhe timidamente e perguntei-lhe se precisava de alguma coisa, sabendo eu que a resposta ia ser que não.
Perguntar a uma pessoa se precisa de nós mesmo sabendo que ela não precisa, às vezes, é o mais legítimo do mundo. Estamos apenas a afirmar que se pudéssemos fazer alguma coisa por ela, fazíamos mesmo.
É como se todos precisássemos de alguma coisa que não sabemos bem o que é, mas sabemos que é em alguém que se encontra e, até encontrarmos alguém que nos salve todos os dias com a vida, vamos visitando quem nos salva a vida todos os dias.

10.06.2015

conversa 2166

Ela - Ando mesmo com a auto-estima pelas ruas da amargura.
Eu - Eu percebo. Nunca é fácil acabar um Amor... mas o tempo cura tudo.
Ela - Eu sei que o tempo cura tudo, mas enquanto não cura...
Eu - Enquanto não cura, tens que gostar de ti mesma um bocadinho.
Ela - Eu gosto de mim mesma. Não penses que não.
Eu - Óptimo!
Ela - Na verdade, adoro-me! Sou a pessoa de quem gosto mais no mundo.
Eu - Também não precisas exagerar.
Ela - Adoro-me tanto que não sei como é que aquele animal me deixou!

10.05.2015

pensamentos catatónicos (335)

Quando alguém sofre por Amor, explicar-lhe aquilo que ele já sabe não ajuda nada. Só piora. É que de um Amor, tudo o que se sabe é que ele dispensa a sabedoria.
Por mim, fazia já um abaixo-assinado para pedir ao mundo que não dê conselhos sobre desAmores alheios. Os conselhos são apenas mais matéria para o mal estar. Nunca ninguém se apaixonou através do pensamento dedutivo, nem sequer tirou uns dias para decidir se se devia apaixonar ou não. É por isso que o processo inverso também não é inteligente. Ou te apaixonas, ou não. Ou te desapaixonas, ou não.
Dizer a alguém que não devia gostar de alguém é tão inteligente quanto pouco. Vem sempre de quem sabe analisar especificidades mas não consegue perceber o todo. A especificidade é uma batata. O todo é o Amor.
Um abraço, no entanto, muda tudo nem que seja só por um momento. Às vezes, em vez de palavras, deviam surgir abraços.

10.03.2015

conversa 2165

(ao telefone)

Ela - O meu marido está lá fora, no carro, à minha espera.
Eu - Okay, então falamos depois...
Ela - Não, não. Podemos falar agora.
Eu - Para não fazeres o teu marido esperar...
Ela - Eu quero fazê-lo esperar. Há muito tempo que não temos uma discussão.
Eu - Queres ter uma discussão com o teu marido?!
Ela - Só para ver se ele ainda reage a qualquer coisa. Tem andado tão mortinho...

10.02.2015

conversa 2164

Ela - Sabes... às vezes olho para trás e tenho pena de nunca me ter apaixonado por ti.
Eu - Apaixonaste-te por outros. Isso não se controla.
Ela - Pois... mas tenho a sensação que...
Eu - Que quê?!
Ela - Que sempre me meti com homens demasiado inteligentes.
Eu - Estás a chamar-me burro?
Ela - Não. Não sei bem explicar...

respostas a perguntas inexistentes (343)

dá trabalho

Há pessoas que não sabem estar sem fazer nada. Quando estão desempregadas, por exemplo, utilizam esse argumento para a urgência de encontrar trabalho. Não sei se não acredite nessa desculpa esfarrapada ou se tenha pena. Mas que essas pessoas me fazem confusão, lá isso fazem. Sempre procurei trabalho essencialmente por precisar de dinheiro.
O meu ponto de vista é que a vida dá trabalho, pelo menos para quem a sabe viver. Foi por isso que nunca me senti estar sem fazer nada, mesmo quando estava sem emprego. Uma das coisas que dá trabalho na vida, por exemplo, é Amar uma só pessoa (Amar muitas não dá assim tanto).
A minha vida sempre me deu trabalho, ser eu próprio sempre me deu trabalho, Apaixonar-me perdidamente por uma mulher sempre me deu trabalho. É por isso que me assusta quando uma mulher me diz que não sabe estar sem fazer nada. Concluo que ela pode não saber viver nem sequer Amar alguém.
O que eu estou a dizer não implica que o trabalho seja sempre um sofrimento. Não é e, aliás, já tive trabalhos que me deram bastante prazer. Assim como Amar já me deu sofrimento e prazer. O que era bom era que todos fossemos nós antes de sermos outra coisa qualquer. Dá trabalho, mas vai valendo a pena.
Às vezes nem reparamos que trabalhamos oito horas por dia e nos cansamos mais depressa de um Amor que vemos apenas uma ou duas horas. Quando isso acontece, provavelmente deixámos de ser nós próprios. Se nós formos nós próprios, nunca estamos sem fazer nada e nunca nos fartamos da vida. Só que dá trabalho.

10.01.2015

respostas a perguntas inexistentes (342)

Quer dizer

Lembro-me da insistência dela para que eu falasse. Quer dizer, nunca percebi muito bem se ela queria apenas que eu falasse ou que eu dissesse. É que falar e dizer são coisas totalmente diferentes, e eu estava numa de silêncios. O silêncio, para mim, era a nossa intimidade, e ela não devia precisar que eu o quebrasse.
Depois disso o nosso Amor morreu. Quer dizer, não morreu duma vez. Foi morrendo um bocadinho todos os dias. Não me importei muito porque nem cheguei a ver o cadáver. Quando morreu, morreu já longe. Creio que numa estrada nacional à noite. Ela ligou-me e disse-me que já não vinha mais. Pelo menos durante um tempo, referiu. Eu assenti com um "hum, hum". Estava zangada. Percebi sem que mo dissesse.
Nesse telefonema, há alguém que não sabe que eu ouvi o ruído do motor da sua motorizada a passar lá atrás e que, nesse momento, o comparei ao que nos tinha acontecido aos dois. O nosso Amor tinha sido um ruído assim, a crescer tão rapidamente como a desaparecer numa estrada que eu não percorrera. Quer dizer, três semanas. Creio.
Um Amor precisa de se entender nos silêncios, porque é nos silêncios que os olhares se explicam melhor. E o corpo, já agora. Nunca lho disse, mas quem pede tanto que se fale é porque não sabe o que o silêncio quer dizer. Quer dizer tudo, quer dizer.

9.30.2015

respostas a perguntas inexistentes (341)

Já agora

Num Amor há sempre dois. Aquele que um sente pelo outro e o que o outro sente pelo um. Quando se está apaixonado, pode ter-se a sensação de que o Amor entre duas pessoas está algures no meio delas, como uma força invisível que influencia ambas. Não está. Duas pessoas podem Amar-se muito sem se encontrarem sequer no caminho que as leva ao outro. E ao um, já agora.
A grande causa disto é o nosso próprio umbigo. A maior necessidade que temos é de nos sentirmos especiais e Amados e é por isso que nos damos ao trabalho de considerar outra pessoa especial e Amá-la. Por isso e pelo sexo, já agora.
É claro que todos temos mais ou menos esta percepção mas, por uma questão de conveniência, estamos sempre a esquecer-nos dela. É daí que surgem os primeiros problemas no Amor. Quando um homem diz à sua Amada que precisa de mais tempo com ela, está na verdade a dizer que precisa que ela o Ame mais. E que o assuma, já agora. 
Não é grave. No egoísmo e na arte de nos considerarmos dignos da atenção do outro somos todos iguais. É que, ainda assim, o Amor mantém-se como uma escolha única e um milagre cósmico quando acontece. Se é verdade que não optamos apenas por quem queremos Amar, é mais verdade ainda que somos muito exigentes a escolher por quem queremos ser Amados. É a isso que chamamos Amor, já agora.
Eu, já agora, costumo dizer que me custa muito apaixonar-me, mas o que me custa mesmo muito é querer ser Amado por uma qualquer. Neste meu egoísmo enorme, já agora, sou tão igual a vocês que sei que me compreendem. 

9.29.2015

conversa 2163

(em minha casa, durante o FC Porto - Chelsea)

Eu - Porque é que o Porto não tem publicidade nas camisolas?
Ela - Não sei...
Eu - Mas é giro não ter...
Ela - Para mim é igual.
Eu - E há um jogador do Chelsea que tem uma máscara...
Ela - Deve ter-se aleijado no nariz...
Eu - Ah! A publicidade nas camisolas do Chelsea é uma cidade japonesa. Que estranho!
Ela - É uma marca de pneus.
Eu - Também é uma cidade. Eu sei porque viveu lá um amigo meu.
Ela - Então é porque a empresa é de lá...
Eu - Este guarda-redes do Porto é aquele muito conhecido, não é?
Ela - Queres-te calar e deixar-me ver o jogo?! Pareces uma gaja!

respostas a perguntas inexistentes (340)

A primeira vez que nos apaixonamos é uma tortura. Somos ainda crianças e passamos a acreditar que aquele é o único e possível Amor da nossa vida. É um Determinismo saloio, mas assustador, porque é muita responsabilidade para tão tenra idade saber que falhando um Amor se vai falhar a vida toda. 
É por isso que a segunda vez é tão importante. Com a segunda paixão abrem-se as portas do futuro, pois percebemos que nos podemos apaixonar uma e outra vez até que uma (pelo menos) dê certo. Se me lembro com dor e sofrimento do primeiro Amor que me falhou, lembro-me apenas da tentação no segundo, que por acaso também me falhou.
Os Amores falhados tornam-se então das melhores coisas da vida. Na adolescência, o pior que nos pode acontecer é não falhar Amor nenhum, nem que seja para percebermos que o Amor também é aleatório. Para viver um grande Amor é preciso exactamente o mesmo que para viver cinco ou seis grandes Amores. Então, viva-se os cinco ou seis.
Depois crescemos e o Amor passa a ser memória, talvez por já não olharmos para o futuro com a mesma suavidade como quando éramos crianças. Gostamos de saber que do tempo que passámos há momentos que não foram nem nunca serão só nossos, nem que seja o de um simples café à beira-mar.
Que nos apaixonemos muitas vezes quando somos novos para nos conseguirmos apaixonar apenas uma vez ou duas em adultos. Se assim for, o Amor só falhou para nunca mais falhar.

9.28.2015

coisas que fascinam (191)

Os homens sós são aqueles que nunca parecem tristes. Ficam sempre mais um bocadinho onde quer que seja, se puderem, à espera que o mundo mude. No balcão de um bar, no banco duma praça ou na atenta observação duma peça de museu. O mundo nunca muda, mas a expectativa é essa. 
Os homens sós são esses, os que esticam sempre mais um bocadinho cada momento da vida, porque sabem que um grande um Amor pode caber nesse bocadinho. É uma inversão da Física, algo tão grande caber em algo tão pequeno, mas é isso que lhes permite sorrir, talvez por a hipotética mudança do mundo ser sempre uma mulher.
Se por acaso acontecerem mesmo, as coisas que nunca acontecem são as melhores. A mudança do mundo, por exemplo. É por isso que eles nunca parecem tristes. É tão fácil como outra coisa qualquer, o não Amor. É só esperar que o mundo mude num bocadinho.

O ideal feminino do Estado Novo

Morreu mais uma mulher, desta vez em Paços de Ferreira, às mãos do marido. As vítimas de violência doméstica são (quase) sempre mulheres, provavelmente porque há mais homens estúpidos do que mulheres estúpidas. Ainda assim, o erro está em pensarmos que mais uma promessa de Amor que acabou em morte se deve exclusivamente ao facto de estarmos a falar de um homem estúpido.

Não deve.

O homem estúpido é apenas uma das condições necessárias para que este tipo de crimes aconteça, mas o principal chama-se cultura, e é isso que temos urgentemente que mudar. Agredir a mulher, silenciar a mulher, provocar sofrimento à mulher ou torturar a mulher é uma questão cultural no nosso país. Sempre foi normal encostar a mulher a um canto da vida, através da limitação violenta do seu papel social e económico na sociedade. Aquilo que é normal durante séculos não o deixa de ser de um dia para o outro. Infelizmente.

No curto mas intenso documentário "O ideal feminino do Estado Novo", que podem ver no link a seguir, é fácil contextualizar o que eu estou a dizer, mas o mais importante é o que vos peço: não se remetam ao silêncio quando sabem da existência de um homem estúpido.

O ideal feminino do Estado Novo

9.26.2015

conversa 2162

(ao telefone)

Ela - Apetece-me passar o sábado em casa sozinha, enrolada no sofá, a ver filmes.
Eu - Parece-me bem.
Ela - Queres cá vir?
Eu - Não. Se eu for aí já não estás sozinha.
Ela - Bem visto. É melhor não vires.

9.25.2015

respostas a perguntas inexistentes (339)

A mulher e a arte

Quando lemos livros, vemos filmes ou ouvimos músicas aprendemos sempre alguma coisa. Não obrigatoriamente o que os livros nos dizem, os filmes nos mostram ou as músicas nos fazem sentir, mas sim o simples facto de percebermos o que é a diversidade.
Tudo o que a arte nos mostra é que somos pequenos demais no tempo para tudo o que existe. A nossa vida não chega para tudo. Se não fizéssemos mais nada senão ler, ver filmes e ouvir músicas, mesmo assim a nossa vida não chegava para conhecer uma ínfima parte do que já se fez neste ínfimo planeta com a nossa ínfima espécie.
É por isso que existem pessoas ou obras famosas. De entre tudo o que existe, sem nos apercebermos disso, escolhemos uma pequena parte de tudo o que se faz e chamamos-lhe "tudo o que vale a pena conhecer". É uma forma de minimizar o nosso esforço para conhecer tudo. "O Grito" do Munch, "O Código da Vinci" do Dan Brown ou o "Help" dos Beatles são apenas alguns exemplos do que integra esta ínfima selecção do falso tudo.
Quando um homem Ama uma mulher, passa-se exactamente o mesmo. Um homem pode Amar muitas mulheres, mas nem a vida nem a felicidade chegam para isso. Amar uma é o truque. Ela torna-se o único elemento de "tudo o que a pena Amar" e o resto torna-se dispensável.
É por isso que as mulheres são, elas mesmas, toda a diversidade. Uma mulher pode sempre ser "O Grito" do Munch, "O Código da Vinci" do Dan Brown ou o "Help" dos Beatles. Um homem é apenas quem tenta perceber o que lê, o que vê e o que o ouve. Não é fácil, mas vale a pena tentar.


9.24.2015

pensamentos catatónicos (334)

O Amor não chega, pois não?

Um dia vou-me apaixonar para sempre, nem que seja a última coisa que faço na vida. Um dia antes de morrer, por exemplo. Nesse dia será mais fácil porque já não será necessário discutir a vida nem as formas de nela ser feliz.
Sei que se me apaixonar nesse dia e olhar para trás, para os Amores passados, vou sorrir como se olhasse para uma pequena borboleta que enquadrei e perdi de vista logo a seguir. É assim que são os Amores, tão esvoaçantes e trémulos quanto um qualquer voo errante.
Aviso: este não é um texto triste. É um texto que me liberta na mais maravilhosa das minhas condições: a de homem, tão pouco e muito importante como outro qualquer. Chama-se materialismo ou, se preferirem, um café um bagaço.
Quanto é que custa ser feliz? Quanto custa dar um abraço a um amigo triste ou a mão na rua ao namorado? Quanto custa dizer que se Ama alguém ou, pelo menos, que esse alguém é importante para nós? Não custa nada.
Mas se é verdade que quem conta um conto acrescenta um conto, não é menos verdade que nunca se fala dos pontos que andamos a tirar aos contos da nossa vida. Acrescentamos os contos que custam alguma coisa, e esquecemos os pontos que não custam nada. Tudo o que é importante tem que ter um preço, porque desaprendemos a viver sem esse falso Deus que é o preço do que se tem. Ou não tem, claro.
Tudo o que vivi de feliz nos últimos cinco dias da minha vida foi saber que a minha filha existe, um jantar com um primo distante, uma praia com uma amiga próxima e um abraço musicado por uma lágrima. Adivinhem! O custo foi o tempo que passou, que foi também o lucro da coisa.
Talvez um dia destes o mundo acorde e perceba que o défice que todos temos é perdermos a vida por causa dum défice que não o é de facto e, nesse dia, nunca mais ninguém me diga que o Amor não chega. Mesmo que um dia antes de morrer.

9.23.2015

tá de chuva

O mundo era mais fácil se as mulheres tivessem boletim meteorológico, porque é maravilhoso habitá-las quando o tempo está bom. O problema está todo nas tempestades e na forma imprevisível como surgem, principalmente porque os homens raramente andam de guarda-chuva.
Para hoje prevê-se céu limpo ou pouco nublado, temperatura amena e vento fraco. Quando lhe ligar a perguntar se ela está bem, no entanto, o telefonema pode começar com aguaceiros fracos e períodos de muito nublado, ventos fortes e possibilidades de chuva.
Ou ainda mais fácil: tá de chuva.

conversa 2161

Ela - Os homens são mesmo palermas...
Eu - Porquê?
Ela - Porque sim. Acreditas que fui para a cama com um tipo esta semana e ele me perguntou o que é que eu achei do pénis dele?
Eu -  E o que é que respondeste?
Ela - Que é jeitosinho.
Eu - E ele?
Ela - Amuou.

9.22.2015

respostas a perguntas inexistentes (338)

Ama-me sem favor

A maior crueldade do Amor é que não podemos Amar por favor. Ou Amamos ou não Amamos, ou somos Amados ou não, mas nunca ninguém ninguém cai no erro de pedir a outra pessoa que, por favor, a Ame. A não ser eu, talvez. Peço baixinho, sem ninguém ouvir, mas peço-o. É a minha guerrilha silenciosa contra a insensibilidade que está presente em cada um de nós.
O mundo era muito melhor se o Amor fosse outra coisa, claro. Eu tocava à tua campainha e esperava que abrisses a porta. Depois pedia-te que me Amasses. Por favor, pode ser? E tu Amavas. Mandavas-me entrar e fazias-me o obséquio.
A bem dizer, é um lugar comum dizermos que o Amor é a coisa mais bonita do mundo, mas não é. Na verdade, é a coisa mais egoísta do mundo. Só Amamos quando Amar nos traz felicidade. Os outros, aqueles que não Amamos, que se lixem. Podemos fazer-lhes o favor de lhes dar uma boleia para o emprego, emprestar dinheiro para beber um copo ou lavar-lhes a roupa quando a máquina está avariada. O que não fazemos é Amá-los.
 É claro que se fossemos capazes de Amar por favor, o Amor não era importante. Não era, pelo menos tão importante. Assim, cada vez que Amamos, não sabemos porquê e conseguimos viver, eventualmente, uma vida inteira sustentados nessa ignorância.
Sempre que eu disse a uma mulher que a Amava, disse-o a sério e parei por aí. Nunca me expliquei porque nunca o soube fazer. A pior coisa que me podia ter acontecido era ser Amado por favor e, no fim, agradecer, fechar a porta devagar sem fazer barulho e ir para casa fazer o jantar.
O mundo do Amor não é o melhor dos mundos, mas é o único que nos surpreende pela nossa ignorância.

9.21.2015

conversa 2160

Ela - Preciso sair contigo esta noite até tarde.
Eu - Até tarde?!
Ela - Sim... podemos ir beber um copo, ao cinema, qualquer coisa. Se não quiseres sair, até podemos ficar em tua casa, mas preciso que fiques comigo até tarde.
Eu - Mas o que é que se passa?
Ela - O meu marido saiu com os amigos e não me deixou ir com ele.
Eu - E o que é que eu tenho a ver com isso?
Ela - Nada, mas quero chegar a casa depois dele. 

9.19.2015

conversa 2159

(na minha casa)

Ela - Acho que fiz aqui uma asneira. Desculpa...
Eu - Que asneira?
Ela - Estraguei-te este interruptor do exaustor...
Eu - Não foste tu. Já estava... isso foi uma amiga minha num jantar há muito tempo...
Ela - São umas brutas, as tuas amigas.
Eu - Se tivesses sido tu, não te chamavas bruta, pois não?
Ela - No fundo sempre soube que não tinha sido eu...

9.18.2015

coisas que fascinam (190)

Nunca a vi senão bonita. E eu, sempre feio, fechado num silêncio de quem contempla o mar pela primeira vez. Às vezes via-a a sorrir, outras vezes com ar de quem se zangara com o mundo. E foi assim, nesse segredo, que lhe aprendi as marés.
Uma vez parei na grande escadaria do liceu, entre o formigueiro de alunos que corria para as aulas, porque ela vinha lá, entre todas as formigas. Contornou-me e continuou, até desaparecer na curva de um imenso corredor. Nem sequer olhou para mim e eu, perdido no ruído daquela imensa selva, voltei para trás como um predador falhado.

- Não vai à aula? - Ouvi a voz da contínua atrás de mim.
- Não.
- Tem que ir...
- Dói-me o coração.

Nunca a imaginei senão brilhante. E eu, sempre apagado, à deriva por um estrondo Amor adolescente, percorria sozinho as ruas da cidade na vã esperança de me cruzar com ela. Talvez pudesse acontecer o milagre de a ver deixar cair a carteira e correr atrás dela para, como quem não quer a coisa, devolver-lha num sorriso. Estranho! Nunca aconteceu.
Ninguém sabia disto, para além de um amigo que nunca mais vi e das árvores das ruas que me viam a deambular entre elas para a encontrar a ela. Acho que às vezes me tentavam avisar que não valia a pena, mas eu nunca lhes liguei nenhuma.
Talvez eu seja um dos poucos sortudos deste mundo que encontrou em adulto o grande Amor da adolescência. Serei mesmo, mas a maior sorte foi não o ter encontrado antes. Só isso me permitiu Amá-la com esta história de mar.

9.17.2015

respostas a perguntas inexistentes (337)

das promessas que nos fazemos

Passo a vida a quebrar promessas que faço a mim mesmo. Na verdade não me importo. Sei que vida é isso mesmo, uma constante quebra de promessas e de objectivos. Ainda assim, continuo a prometer-me muitas coisas, principalmente quando estou metido no emaranhado dos meus silêncios. Propor-me a fazer alguma coisa que depois não faço dá-me vida no momento. É por isso que propor é importante.
Hoje propus-me a limpar a minha casa de banho com lixívia assim que chegasse a casa. Não o fiz, mas no momento em que me propus a tal acreditei que ia mesmo fazê-lo. Soube-me bem tanta determinação, mas falhei a promessa. Não faz mal.
Às vezes prometo-me a concretizar projectos um pouco mais ambiciosos, como tirar do papel tudo o que já preparei para fazer uma sessão de stand up comedy e subir a um pequeno palco qualquer. Não sei se o vou fazer ou não. Espero que sim. Para já, o mais importante é que acredito que o vou fazer.
Na verdade, a única coisa a que nunca me propus foi a Amar uma mulher e, apesar de nunca o ter feito, passei a vida a fazê-lo. O facto de nunca me ter prometido Amar alguém não quer dizer que o Amor não seja uma promessa. É, apenas nunca a fiz. Com a vida, cheguei até à conclusão que me custa muito mais quebrar as promessas que não me faço do que aquelas que me faço. As que não me faço já moram dentro de mim. As outras não e é por isso que podem falhar.
Talvez o Amor seja isso, uma promessa inadiável desde o momento em que nos apaixonamos pela primeira vez. Tão inadiável que nunca nos atrevemos a prometermo-nos tal coisa para um dia distante.

9.16.2015

respostas a perguntas inexistentes (336)

O Amor é uma civilização

O Amor não é só sexo, dizem. Pois não, mas quem nunca ganhou tesão enquanto andava de autocarro e se lembrou da namorada não sabe o que é o Amor. Até porque nunca teve que se sentar num banco desse autocarro e olhar pela janela à procura de coisas tristes, a ver se a saudade amolecia um pouco e lhe permitia sair na paragem programada sem dar muito mau aspecto.
Por falar em paragem programada, o Amor é a única coisa na vida em que ela não existe. É o tesão total e contínuo, a não ser que deixe de o ser. É por isso que saindo dele, a paragem é sempre errada e não sabemos onde estamos nem quem vamos encontrar. Talvez um amigo que goste de comer umas bifanas com mostarda, talvez uma amiga que nos convide para dormir num abraço prolongado, talvez uma meretriz envelhecida por uma só noite. De facto, talvez eu não saiba perder-me por aí, à procura de nada, e tente voltar a casa, nem que seja a pé e demore uma eternidade.
Estou sempre apaixonado pela mesma mulher porque não sei mudar de Amor. Aliás, de Amor não se muda. Se se mudasse, não era Amor. Era um pequeno flirt. Mudar de Amor é como uma mudança civilizacional. É a História da Mesopotâmia e a vontade de querer ficar com a necessidade de partir.
Acho que é por isso que há tantos homens estúpidos com as mulheres. Os homens vivem oitenta anos em média e não percebem que o Amor é uma civilização secular. Nunca percebi a inteligência que leva um homem a intrometer-se na vida de uma mulher com um piropo brejeiro. O que é que ele espera em troca? Não pode esperar nada. Ela é uma civilização de quinhentos anos e ele uma moda esquecida.
E eu espero pela civilização toda. Se não for uma, por outra. Depois do caos.
Amo sempre, até que a civilização nos separe.

9.15.2015

pensamentos catatónicos (333)

Tenho esta estranha sensação de que o Amor se transformou numa coisa banal do mundo. Como outra coisa qualquer, quero eu dizer. E isso é estranho, porque eu sempre dividi o Amor e o mundo. O mundo era o sítio onde eu me podia apaixonar e Amar, o Amor era o que me permitia esquecer o mundo.
Agora apaixonamo-nos como compramos um automóvel. Calculamos a relação entre o benefício e o custo e optamos ou não por nos apaixonarmos. Se possível, apaixonamo-nos pouco. Não vá o Diabo tecê-las e pregar-nos a rasteira de sermos deixados.
O Amor passou a ser uma quantidade numa receita de culinária. Quanto baste, por favor, e olhe que não gosto da comida muito temperada. Encaixarmo-nos um no outro passou a ter a ver com o estrato social e económico de cada um, quando dantes tinha a ver com o primeiro abraço.
O que mudou foi a utilidade. Dantes o Amor era inútil, agora é estrategicamente útil, porque a vida deixou de ser o que ela é de facto. A inutilidade do Amor é o doce sabor duma maçã e a beleza fugitiva de um copo de vinho. Não comemos dinheiro nem nos embebedamos com ele. Com o Amor sim... até ver.


9.14.2015

respostas a perguntas inexistentes (335)

quatro minutos!

Quem tem dificuldades em apaixonar-se a sério deve apaixonar-se a brincar todos os dias desta vida. E eu apaixono-me. Tenho Amores platónicos de quatro minutos, enquanto tomo o café, espero o sinal verde para peões numa passadeira qualquer ou compro tomates na loja da avenida.
Os Amores nunca devem ser de duração média. Que durem quase uma vida ou que durem um momento. É nesses que há certeza sobre aquilo que são. Os outros são os Amores mais ou menos, os pântanos desta vida em que nos metemos e não sabemos sair.
Hoje apaixonei-me a sério por uma mulher. Eram seis e trinta e dois da tarde quando a vi brincar com os dedos, como se tocasse piano num instrumento invisível, cujos sons lhe saíam desafinados pela boca. Plim, plim plim! Morena, despenteada e sorridente, trocámos os olhares de quem entende a loucura mútua. Depois tornámos a sorrir.
Durante quatro minutos vivemos um Amor impossível e eu esqueci-me da vida, esta que adio um bocadinho todos os dias até não ter mais dias para adiar. Depois ela foi-se embora da pastelaria e disse-me adeus. O nosso Amor de quatro minutos terminou ali.
Obrigado. Será uma das mulheres desta vida que adio.