Já fui a entrevistas para todo o tipo de trabalhos imaginários. Acho que é normalmente quando se procura emprego que se fica mais triste, é quando se percebe que há pessoas que não estão definitivamente na nossa linha de pensamento. Aconteceu-me isso na semana passada, a propósito duma entrevista para um emprego nos supermercados LIDL, emprego que até não desejava assim tanto (felizmente não estou desempregado de momento) e a cuja entrevista acabei por nem ir.
Telefonaram-me numa quinta-feira ao fim da tarde para estar na sexta seguinte em Famalicão para a entrevista. Eu perguntei porque é que não me tinham telefonado antes, que ir de Aveiro a Famalicão num dia de semana pode não ser assim muito simples. Do outro lado respondeu-me uma voz fria: - “É uma entrevista de trabalho para chefe de secção. Quer, quer. Não quer, não quer. Sobre tudo o mais terá que conseguir falar directamente com o director”. Estava na estação de Espinho nesta altura, entre inúmeras pessoas com o olhar acentuado pelo cansaço do dia, à espera dum comboio que as levasse ao conforto de casa. Fechei os olhos e respondi: - “Olha, eu não quero trabalhar no LIDL”, e desliguei.
Na viagem de 36 minutos até Aveiro vim a pensar como até sou uma pessoa com sorte. A falta de emprego encarnou duma forma fria a lei da oferta e da procura, e as pessoas acham que podem dizer tudo o que lhes apetece às outras, mesmo que nem as conheçam. Trabalhar não é só um dever, é também um direito, e temo que a nossa sociedade se tenha esquecido disso. Até sou uma pessoa com sorte. Vou conhecendo e fazendo amigos que escapam a esta lógica mercantilista da vida, com quem consigo falar um pouco de tudo sem ter que me sentir analiticamente observado ou a minha privacidade invadida. Com os meus amigos posso falar do Beira-Mar, dos problemas do meu objecto cardíaco, da mulher que eu mais gosto no mundo, dos chocolates Toblerone, dos filmes que já vi e dos livros que já li, da minha cor preferida para as paredes da casa de banho. Sempre com um sorriso nos lábios. São os meus amigos.
No último fim de semana senti que algumas coisas não andam pelo melhor com alguns deles, principalmente pelos mesmos motivos que me fazem a mim sentir o homem mais feliz do mundo ou também o mais infeliz. Quando andamos com o nosso objecto cardíaco cheio de questões por resolver, não anda mais nada bem. É normal. É assim comigo e, naturalmente, também é assim com eles. Os problemas de emprego, burocracias, dinheiro ou outra merda qualquer não interessam nada comparados com o facto de, por exemplo, sentirmos carência emocional. Por isso é que que queria mandar um abraço a todos e todas os que vão rodeando os meus dias. Acho que tenho sorte por os conhecer, por estar sempre a organizar jantares, noites de copos e idas ao cinema. Tenho sorte, pronto. Só lhes queria dizer que desejo mesmo que a vida lhes corra bem. Neste momento eles sabem quem são...
Quanto ao resto, já fui operário numa fábrica de cerâmica em Aveiro, já fui cobrador, já montei cinemas em vários países do mundo, já estive desempregado, já fiz filmes e publiquei um livro, já escrevi para jornais, já joguei andebol, já pratiquei karaté, já chorei e muito por causa de mulheres, já fiz arroz doce, já comprei uma t-shirt do Calvin, já fiz uma aposta sobre futebol com um grupo de prostitutas checas, já fiz karaoke na em Hong-Kong duma música chinesa, já adormeci ao relento em Barcelona, já tomei banho à noite no Algarve, já vi um filho nascer, já vi amigos morrer, já andei seiscentos quilómetros para poder ver uma pessoa durante vinte minutos. É assim: a vida renova-se todos os dias, para todas as pessoas do mundo. Tenho pena que nem toda a gente consiga perceber isto. Neste momento só sei que não vou trabalhar para o LIDL. Não quero.
Talvez este texto não esteja muito bem escrito, mas estou doente e não me apetece revê-lo, está bem? Fiquem todos bem!