2.27.2015

há coisas que não vão mudar

A Santa Casa da Misericórdia tem uma publicidade onde diz que há coisas que não vão mudar. Um homem feio que acertou no Euromilhões apresenta a namorada à mãe, uma mulher que já foi Miss Universo, e a mãe acha-a magrinha. Há, realmente, coisas que não mudam. A estupidez é uma delas. Misericórdia, por favor.
As mulheres bonitas e magras só estão ao alcance dum homem milionário. Já os homens têm mais sorte, podem ser sempre feios, ter um bigode mal cortado e barriga de cerveja. Enfim, a vida deles é muito mais simples do que a delas, que têm que estar sempre em forma e bem tratadas.
Claro que eles só podem ser feios se forem ricos e elas só devem ser bonitas se forem compráveis. Tudo o resto foge a uma normalidade que me escapa totalmente.
Hoje é sexta e eu não joguei no Euromilhões, apesar do meu sonho de dar a volta ao planeta de mochila às costas. Quando um dia destes jogar, se vir uma mulher na fila, dir-lhe-ei que é um jogo só para homens. O melhor que lhe pode acontecer é ser mulher dum gajo rico ou, em última análise, mãe incomodada desse mesmo excêntrico.

2.26.2015

respostas a perguntas inexistentes (297)

o mais pequeno Amor

Ainda ontem ouvi alguém falar do grande Amor da sua vida. É claro que o tamanho importa, por isso é que todos procuram esse grande Amor. Nunca ninguém deseja um Amor pequeno, porque à falta de mais conhecimento sobre o assunto, sobra o tamanho. O tamanho é o primeiro objecto de análise. Vivam os grandes Amores.
Eu também sempre quis um grande Amor, até ao dia em que percebi que os melhores Amores são os pequenos que, por serem menores, também são difíceis de encontrar. No dia em que decidi que precisava de um pequeno Amor vivia um grande, enormíssimo, Amor. Tão grande que ocupava o espaço todo, incluindo o de uma praia invernosa e deserta onde eu tinha caminhado sozinho toda uma tarde, apenas porque a solidão também é uma necessidade.

- Onde é que andaste o dia todo? - Perguntou-me.

Voltei a essa praia já a pensar em como desejava um Amor mais pequeno, daqueles que não são óbvios e que, para termos a certeza que existem, precisam de uma lupa ou até de um microscópio. São os Amores de pormenor, que por serem pequenos não exigem nada. Dão é tudo. É o pormenor de uma mão dada, de um segredo ao ouvido ou de um abraço. Ninguém vê, a não ser quem o sente.
Há alguns anos que vivo o mais pequeno Amor da minha vida. Assim, porque não quero outro.

2.15.2015

conversa 2117

(ao telefone)

Ela - Se não sou eu a ligar-te nem te vejo. Nunca dizes nada...
Eu - Tenho estado doente.
Ela - Desculpas!
Eu - Não são desculpas. Tenho estado mesmo com muita febre e má disposição.
Ela - Muita febre?! Quanta?
Eu - Isso não sei.
Ela - Não sabes?!
Eu - Não.
Ela - Tiveste muita febre e não sabes quanta febre tiveste, é isso?
Eu - É. Como não tenho termómetro em casa, nunca tirei a febre.
Ela - Como é que é possível não teres um termómetro em casa?!
Eu - Não tenho. Não costumo ter febre, então nunca me lembro de comprar um...
Ela - Pois, os homens nunca se lembram das coisas essenciais, a não ser quando precisam delas.
Eu - Não gozes. Já me aconteceu ir jantar a tua casa e não teres um simples saca-rolhas para abrir uma garrafa de vinho.
Ela - Estás a querer comparar um saca-rolhas a um termómetro?
Eu - Estou. Um saca-rolhas é de uso diário, um termómetro nem por isso. É mais grave não ter saca-rolhas em casa.
Ela - É de uso diário para ti. Eu só bebo vinho ao fim de semana.
Eu - E eu só tenho febre uma vez por ano.
Ela - Aposto que vais chegar ao próximo ano sem termómetro.
Eu - É possível. Aposto que vais chegar ao próximo jantar sem saca-rolhas.
Ela - É possível.

2.13.2015

respostas a perguntas inexistentes (296)

um brinde

Lembro-me da primeira vez que tentei matar por interesse. Com excepção do curso que tirei no Politécnico do Porto, nunca fui um aluno propriamente brilhante. Desde cedo revelei alguma incompatibilidade com a escola, tão incompatível que, para ser sincero, eu próprio não me apercebia que era um aluno à parte.
Um dos miúdos que eu conhecia e que também era um mau aluno vivia mesmo ao meu lado. Não dava nada para os estudos, mas dava para o negócio. Com doze anos já vendia de tudo aos colegas, desde relógios a doces e também ratos brancos. Nunca fomos grandes amigos, mas foi a ele que eu comprei um rato para levar para a aula de Ciências da Natureza, com o intuito de ser aberto. O rato ia morrer, mas era uma rara oportunidade que eu tinha de fazer qualquer coisa de positivo naquela disciplina.
O Filipe, sim, era um bom amigo. Também era um excelente aluno. Depois de termos estado todos a fazer festinhas ao rato, ele emocionou-se, pegou na caixa com o animal e fugiu. Soltou o bicho pela rede de arame para uns terrenos onde, na altura, apenas crescia milho. Enfureci-me e bati-lhe. Ele também me bateu. Ficámos os dois bastante marcados e chorámos bastante tempo. Menos mal, foi desde esse dia que nos tornámos amigos inseparáveis.
Talvez o Filipe, que já não está entre nós, tenha sido o meu grande amigo de infância. Foi a ele que confessei o meu primeiro Amor falhado. E o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto e o sexto. Na verdade perdi-lhe a conta. Era criança e apaixonava-me todos os dias porque nem sequer sabia o que era o Amor. Bons tempos, esses, em que não sabemos o que é o Amor mas sabemos o que é a Amizade.
Hoje o movimento na minha loja esteve parado. Fiquei um bocado de tempo a olhar, surpreendido, para duas crianças que faziam equilibrismo no muro do outro lado da avenida. Tocavam-se a medo para tentar fazer o outro cair. Tantas vezes que eu brinquei assim com o Filipe. Se ele estivesse ali, provavelmente tínhamos bebido e brindado com uma cerveja. Como não está, é este o meu brinde para ele.