só para eu poder entrar
Fiquei parado alguns segundos na porta de entrada do edifício. A mulher que acabara de passar por mim, de alguma forma fora-me
familiar. Foi como se a conhecesse há muito tempo de vista, apesar dos seus
olhos claros e o tom de pele primaveril deixarem perceber que era inglesa e, por
isso, o mais provável era nunca nos termos visto antes.
Ela olhou-me durante dois segundos, mas depois escondeu os
olhos no chão enquanto segurava a porta para eu poder entrar. Obrigado,
disse-lhe. Acontece-me frequentemente ter a sensação que conheço pessoas de vista
mas que, depois quando penso melhor, o mais provável é nunca me ter cruzado com
elas.
Nunca encontrei uma explicação para tal nem, em abono da
verdade, me preocupei com isso, mas uma vez uma amiga disse-me que acredita que
isso acontece por transferências de energia entre as pessoas. Não percebi bem o
que ela queria dizer, mas lembro-me que concordei só porque não me apeteceu
discutir um assunto que me fugia do controle.
A verdade é que estava pela primeira vez na minha vida
naquela zona de Manchester e, como tal, essa sensação de conhecer alguém de
vista não podia ser muito mais do que uma criação do meu cérebro, mais provavelmente
do meu subconsciente.
Só estava ali para comprar uma miniatura automóvel em
segunda mão que vira num anúncio de internet. Como tinha a vontade de conhecer
uma cidade que, mesmo assim, ainda hoje me é estranha, dispus-me durante as
trocas de emails com o vendedor a ir pessoalmente a casa dele comprá-la.
O edifício era velho por fora e novo por dentro, como se fosse
um homem de muita idade com uma enorme vontade de viver mais uns anos. As rugas
podem chegar, mas por dentro nunca ninguém sabe o nosso verdadeiro estado. Pelo
menos foi esse o meu pensamento, que também surgiu porque alguém me disse que
eu era como uma criança, assim que soube que eu ia fazer uma deslocação de 70
quilómetros para comprar um brinquedo.
Quando finalmente entrei no elevador, carreguei três ou quatro
vezes seguidas no quinto andar, como se assim pudesse subir mais depressa. Mas não
pude. Nunca se pode. Os elevadores andam sempre à mesma velocidade e não
obedecem à nossa vontade. É uma boa lição, esta que os elevadores nos dão. Se nos
queremos manter joviais por dentro, há que não ter pressa de viver.
Um homem com uma barriga desproporcional e uma t-shirt suja,
provavelmente da minha idade, abriu a porta do apartamento C. Perguntou-me se
eu estava pelo hot wheel ou pelo Transformer. Hot Wheel, respondi. Dei-lhe cinco
libras e ele passou-me para a mão uma miniatura que examinei minuciosamente só
para fingir que percebia alguma coisa do assunto. Okay, disse-lhe, e virei
costas.
Outra lição que os elevadores nos costumam dar é a da lei
das probabilidades poder estar contra nós. Assim que me preparava para abrir a
porta alguém o chamou nos rés do chão e perdi a boleia. Não tive outro remédio
senão esperar que ele subisse de novo. Desta vez só carreguei uma vez para o
chamar.
O vendedor ainda estava à porta a olhar para mim. Não nos
conhecemos de algum lugar? Perguntou. Não, sou português. Foi o que lhe
respondi enquanto tentei perceber se ele me era familiar a mim. Não era.
Passeei uma tarde inteira pela cidade, sem pressa de chegar
a lado nenhum nem vontade de ter chegado. Falei de futebol com um desconhecido
num pub de esquina enquanto bebi duas pints de Guiness. Depois passei o resto
da tarde a trocar impressões com os edifícios que me iam observando de soslaio
enquanto caminhava no meu segredo.
Dou-me conta de que não sou ninguém enquanto me perco nos
outros. Os outros, aqueles com quem me cruzo agora como se já alguma vez me
tivesse cruzado no passado para poder acreditar que, talvez num futuro
distante, me torne a cruzar da mesma forma e, por pura sorte, uma mulher bonita
segure numa porta durante dois segundos só para eu poder entrar.