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5.15.2017

Yanka



A Yanka contou-me a vida dela enquanto bebia Guiness num bar irlandês em Sófia. Ë um dos bares mais conhecidos, mesmo no centro, mas ainda assim não sei o nome. Sei que, enquanto me contava tudo, eu ia bebendo cerveja em goles cada vez menos espaçados. Guiness também.
Mantive-me sempre em silêncio total. Não perguntei nada, não tossi e nem sequer a respirar fiz qualquer tipo de ruído. Fiquei a ver os riscos da espuma que iam ficando agarrados aos copos das minhas cervejas formando círculos que se assemelhavam a lama derretida. Ela não se chegou a aperceber disso, mas alguns desses riscos marcavam a mudança de episódios da sua vida.
Por algum motivo que não consigo explicar, desde o princípio que eu soube que toda a vida dela naquela noite equivaleria a quatro pints de cerveja negra e que a sua última frase coincidiria com o meu último gole. A voz dela desenhava-se no ar mesmo à minha frente, soltando um suave aroma de perfume de rosas em cada palavra, não porque ela cheirasse propriamente bem, mas sim porque eu estava apaixonado pela primeira vez desde a minha chegada à Bulgária. Estar com a Yanka em silêncio o dia todo tinha sido bom, mas ouvi-la era ainda melhor. A voz dela é o ponto-rebuçado da sua presença.
Nunca me sinto apaixonado quando não estou perto dela. Não sinto saudades nem vontade de lhe telefonar. Não a ressaco de forma nenhuma, mas assim que a tenho perto de mim não consigo afastar-me. A sua presença tem um enorme poder sedutor, muito provavelmente concentrado nos seus olhos. São pretos e são grandes. Aventurar-me neles dá-me medo. Posso perder-me para sempre. Daí preferir concentrar-me nos riscos de cerveja que decoravam os copos.
Há mulheres pelas quais um homem se apaixona uma vez e já está. Mesmo a distância nunca atenua essa paixão. No caso da Yanka, apaixono-me de novo cada vez que a vejo como se fosse sempre a primeira. Basta ela, por exemplo, ausentar-se de mim enquanto tomamos um café para ir falar ao telemóvel com alguma privacidade que, assim que regressa, tudo começa de novo. Apaixono-me.
Nessa noite ela nunca se ausentou, ou seja, quando a história da vida dela terminou a minha paixão por ela já ia em quarenta e seis minutos. Quase uma hora, portanto. Uma eternidade para uma paixão tão forte. Os nossos olhares encontraram-se mais ou menos a meio de nós e ela disse que quando voltou de Portugal o automóvel preto estava estacionado no mesmo sítio de sempre. Dei o último gole na minha quarta cerveja e ela sorriu.
Apeteceu-me beijá-la, mas não o fiz. Às vezes os beijos são apenas uma bomba. Explodem bem no centro de um Amor enorme e destroem-no para sempre. Acabam com tudo. Acho que ela percebeu a minha vontade e a minha hesitação. Sorriu, não sei se com alívio ou desilusão, mas sei que  ela foi sincera quando me pediu desculpa por ter estado tanto tempo a falar dela mesma.
- Gostei muito de te ouvir! – respondi.
Era verdade, mas também era verdade que a história do automóvel preto tinha-me interessado ainda mais do que tudo o resto.
A Yanka foi a primeira amiga que fiz na Bulgária por uma razão muito simples: fala português perfeitamente. Quando eu, como um náufrago perdido num imenso mar de solidão, abri um perfil num site de engate na internet, ela foi a primeira a responder-me. Foi também a única, mas valeu a pena. Entretanto já me apaixonei por ela tantas vezes quantas as que estivemos juntos.
Encontrámo-nos no Borisova Gradina, um dos maiores jardins da cidade, num dia de Primavera. Reparei que ela tinha uma face bonita e que todos os sorrisos lhe morriam à nascença. Olhos pretos, capazes de entrar dentro dos meus e de me revistar como faz um polícia a um prisioneiro algemado. Veio até mim.
- Olá! És o português, não és?
E eu imediatamente a tentar libertar-me sem o conseguir.
- Sim...
Acabámos sentados num dos bancos verdes de madeira que pontilham o parque, a comer milho cozido comprado na entrada que dá para o edifício principal da Universidade de Sófia. A maior parte das pessoas passava à nossa frente sem sequer reparar na nossa presença, mas a certa altura pareceu-me que as árvores segredavam algo sobre o nosso encontro. Olhei para cima e vi que algumas folhas abanavam no que me parecia ser um movimento controlado e consciente. Tentei apurar os sentidos, mas ela interrompeu-me.
- É o vento... – disse.
No bar irlandês não havia vento, mas ainda assim eu olhava para as marcas de cerveja como se elas contivessem um segredo qualquer sobre nós, nem que fosse o pequeno pormenor de saberem que eu me apaixono por ela sempre que a vejo e que só por isso conseguia ouvir toda a sua história sem pestanejar.
Fiquei a saber que, depois da queda do regime comunista, a Bulgária passou alguns anos muito difíceis, principalmente já a meio da década de noventa. A inflação galopante percorreu o país e a fome entrou sem avisar nos lares búlgaros. Nessa altura Yanka era estudante universitária e tinha perdido o seu primeiro grande Amor logo a seguir à queda do muro de Berlim, na primeira vaga de emigração que o país sofreu e que acabou por atingir quatro milhões de pessoas. Lembra-se, por exemplo, de juntar todo o dinheiro com alguns dos seus colegas de quarto para poder comprar um pão negro que dividiam entre si. Às vezes era o único alimento que tinham durante vários dias.
Ainda assim, Yanka tinha casa. O direito à habitação do regime comunista transformara-se automaticamente em títulos de propriedade para os moradores. Apesar da fome, quase ninguém dormia ao relento e ela contou-me que se deitou muitas vezes no conforto da sua cama, sem comer, à espera que a fome adormecesse com ela. Chegou a sonhar que a sua casa era um enorme estômago esfomeado e ela um pequeno pedaço de pão à deriva lá dentro.
Foi num desses momentos que o som seco de três pancadas a acordou e a trouxe de volta ao mundo real. Alguém forçara a porta da entrada e invadira o seu apartamento. Ouvia os passos dos invasores, que seriam dois ou três, e gastou os últimos recursos energéticos para se manter alerta. Agarrou-se às barras metálicas da cama com a força com que um petroleiro se amarra ao cais e fechou-se num manto de silêncio. Um fio de saliva fria escorreu-lhe dos lábios quando eles entraram no quarto.
- Não me violaram! – disse olhando-me como se esperasse uma reacção de alívio.
Os quatro homens encostaram-lhe uma pistola à cabeça e deram-lhe dois dias para ela decidir vender-lhes a casa por tuta e meia. Era a máfia búlgara a fazer os seus primeiros negócios. No dia seguinte emigrou. O último vizinho que viu foi um homem do rés-do-chão que estacionava o carro preto sempre no mesmo sítio, debaixo duma árvore centenária da altura de quatro andares. Tinha acabado de o fazer e sorriu-lhe. Não podia imaginar que ela ia andar várias semanas à boleia até acabar em Portugal, numa pequena aldeia algarvia.
Quando voltou, muitos anos depois, ao chegar a casa viu exactamente o mesmo homem a estacionar o mesmo carro no mesmo sítio. Para ela, o mundo tinha mudado radicalmente, mas para aquele senhor a vida continuava como sempre, estacionando o carro exactamente no mesmo local.

4.18.2017

depósito

É quase pornográfico, isto que eu vou dizer, mas em certa medida um bar é como um banco. Num banco depositamos o nosso dinheiro, num bar depositamos a nossa vida. E agora que disse isto, sem dúvida que um bar é muito mais importante do que um banco qualquer.
E então decobri o meu banco preferido pouco tempo depois de chegar a este país. Chama-se Elite e fica numa esquina esquecida dum bairro em Mladost. É frequentado maioritariamente por pessoas de idade avançada que nunca souberam parar de beber, basicamente porque também nunca souberam como parar de viver. Esse é um dos problemas da vida, disse-me uma vez um velhote a tentar manter-se em pé com a ajuda do balcão. O que fazer da vida quando a idade no corpo fugiu à juventude da alma? E riu-se. Depois brindou comigo e calou-se, como se o silêncio fosse quem o melhor podia compreender naquele momento. E então pus-lhe a mão no ombro, porque também eu o compreendia.
O primeiro depósito que fiz foi sobre a saudade, essa palavra tão portuguesa e tão minha. A dona abriu conta em meu nome e ouviu-me a falar sobre a minha filha, a minha mãe e alguns amigos. Como é que vai pagar? Perguntou-me ela. Bebendo um uísque, respondi. E pagámos a meias, com um copo de Bushmills cada um.
Talvez seja difícil explicar a fininha lâminha de dor que corta continuamente a alma de quem decidiu emigrar, mas isso não é importante. Também há coisas boas, tão boas que não precisamos de juros pelos depósitos que vamos fazendo aqui e ali. Uma delas chama-se descoberta. Partimos do zero e vamo-nos descobrindo a nós mesmos à medida que fazemos novos amigos. É como se tivéssemos feito um reset à vida e nascido de novo. Podemos caminhar na avenida mais movimentada da cidade sem sermos reconhecidos por ninguém, parar para procurar a Lua entre o topo dos edifícios e inspirar fundo para absorver tudo duma vez. É o tempo à nossa disposição. Totalmente.
E então sentei-me sozinho na esplanada do banco. Do outro lado da rua, alguns homens bêbados urinavam entre os contentores do lixo, observados pelos velhos e grandes edifícios que ameaçavam ruir a qualquer momento. Um homem caiu no meio da rua e corri para o ajudar a levantar-se. Com a ajuda de mais alguns transeuntes, sentei-o numa cadeira. Quando voltei ao meu lugar a S. encostou a cabeça no meu ombro. Perdi o contacto visual com ela, mas sentia os seus cabelos longos a beijar-me o queixo.
Não lhe disse nada. Tal como numa bebedeira, o silêncio era quem melhor me podia compreender. É assim que se vive, depositando os dias num ou noutro copo até alguém encostar a cabeça no nosso ombro. Tão fácil... e eu nunca o tinha percebido.

4.04.2017

bombardeamento

Subo as longas escadas rolantes da estação de metro do Levski Stadium, quieto e em fila indiana, engolido pelo emaranhado novelo de silêncio dos passageiros. À minha frente, uma mulher leva uma mochila às costas com a imagem duma banda qualquer de metal. São quatro homens com a face pintada de branco, os lábios e os olhos de negro e, por fim, um sorriso largo a lembrar-me o do Joker. Por causa do desnível dos degraus, essa imagem está mesmo à frente dos meus olhos.
No topo da escada está um polícia, com o habitual fato de macaco azul que os polícias búlgaros usam. Também sorri, mas não tanto, para cada uma das pessoas que a escada vai cuspindo. Sei que, de um momento para o outro, vai chamar alguém à sorte e pedir a documentação. Uma vez, há alguns meses atrás, calhou-me a mim. Fitou o meu cartão de cidadão português e o visa búlgaro durante mais tempo do que o necessário. Depois pôs um olhar inquisidor e disse: "Portugalsko...". Eu assenti com a cabeça e ele devolveu-me tudo para a mão. Hoje não. Será a vez de outro.
Assim que as grandes portas de vidro da estação se abrem, uma sirene e um aviso mecânico de que a cidade vai ser bombardeada enchem o espaço. Por um segundo acredito, mas depois percebo que a cidade continua a respirar como de costume, sem acreditar que vêm aí bombardeiros. Um homem percebe o meu susto e acalma-me dizendo que é apenas um teste. Ainda bem. Se eu morresse hoje, os últimos sorrisos que tinha visto seriam o de uma banda de metal e o de um polícia inquisidor.
Respiro fundo e enfrento de novo a cidade.  O nosso ritmo cardíaco é agora igual. Caminho pelas suas ruas à mesma velocidade que ela caminha por mim. Uma mulher refugiada disputa alguns pedaços de pão com uma dezena de pombos. Não sei como é o pão foi ali parar, muito menos os pombos, mas imagino o percurso dela. Talvez a Turquia, talvez o mares Mediterrâneo e Egeu num barco improvisado. Sei lá...
Sei que um grupo de ciganos toca guitarra e dança no meio do passeio. A maior parte das pessoas contorna-o mantendo pelo menos dois metros de distância. Quase todos os passageiros dos eléctricos que passam olham com curiosidade, como se estivessem a olhar para animais numa jaula sem perceberem que são eles mesmos que estão enjaulados. Há um homem branco, de idade avançada, que atira a mala para o chão e se põe a dançar com eles. Tenta manter-se na vertical com apenas um dos pés, o que consegue dificilmente. Uma cigana que tem vários cigarros na mão aproxima-se e pede-me mais um. Que não fumo, respondo. Ela aperta-me a bochecha e diz qualquer coisa incompreensível. Regressa ao grupo e entrega todos os cigarros a um homem que olha para mim e me agradece num gesto. Pensa que fui que lhos dei.
Enjaulo-me num desses eléctricos também. Uma mulher sem pernas pede-me ajuda com a cadeira de rodas. É pesada como a vida, pelo menos custa-me bastante colocá-la dentro do vagão. A mulher sobe fazendo dos joelhos os pés. Como será ver o mundo àquela altura? Não sei, mas sei que ela me devolve o melhor sorriso do dia. Apenas uma paragem depois, ajudo-a a sair.
Eu não queria sair já aqui. Na verdade, nem sei muito bem onde queria sair. Só o fiz para ajudar a tirar a cadeira de rodas do eléctrico. Volto para trás. Tudo o que posso e devo fazer hoje, já que não morri debaixo de nenhum bombardeamento, é oferecer uma refeição quente a quem anda a disputar comida com pombos.
Encontro a mulher. Encostou-se a um canto de mão estendida. Percebo que ela ainda nem sequer sabe pedir. Tem vergonha e faltam-lhe as forças. Todos os meus problemas se diluem num vazio incompreensível.
Esta cidade é louca. É por isso que estou apaixonado por ela. Até um dia estoirar. Até um dia...

1.20.2017

coisas que fascinam (214)

Talvez duas mulheres que dividiam uma música na estação de metro de Musagenitsa tenha sido o que vi hoje de mais bonito. Uma delas segurava um telemóvel de onde saía um par de auscultadores. Um deles estava no ouvido esquerdo duma delas, o outro no direito da outra. Sorriam. Não ouvi a música, mas imaginei que era a Ayo a cantar.
Vinham na minha direcção, no meio de um mar de gente que acabara de sair do mesmo metro que elas. Algumas das pessoas faziam um ar zangado porque as duas andavam mais devagar e atrapalhavam o movimento normal dos passageiros que entravam e saíam da estação naquela hora de ponta. Um homem deu-lhes um encontrão com o ombro e uma mulher gritou-lhes qualquer coisa em búlgaro.
Eu parei e a multidão passou por mim como lama viva. Aconteceu-me o mesmo. Levei um encontrão e tenho a sensação que alguém me disse alguma coisa desagradável do tipo "mexe-te!". Quando, finalmente, todos já se tinham ido embora, percebi que elas eram as únicas que sorriam. Então sorri também. Estava sozinho no cais.
Não sei quando é que a normalidade dos dias se torna tão cinzenta que acaba por ser agressiva para quem tem o bonito gesto de dividir uma música, mas senti-me bem por perceber que lhe escapei. A essa normalidade cinzenta, digo.
Estou aqui longe, entre uma dor e uma alegria constantes. É duro, mas é vida mesmo. E em vez de dar encontrões em mulheres que sorriem, sorrio-lhes também.

12.06.2016

foguete

Quando era criança tinha uma pista com um comboio a que chamava Foguete. Chamava-lhe assim porque era esse o nome do comboio em que o meu pai regressava a Aveiro e, portanto, a casa sempre que a vida militar lhe permitia fazê-lo. O meu pai sempre foi bom, mas pouco dado à demonstração de sentimentos. Talvez por isso fossem esses os únicos momentos em que sentia o seu abraço e o via chorar, mesmo que sem lágrimas. Chegava, chamava-me filho, abraçava-me e ia pendurar o casaco castanho axadrezado no armário do quarto.
No entanto, quanto partia de novo nunca se manifestava. Fazia as malas e despedia-se como se fosse apenas ao outro lado da rua comprar cigarros. Eu ficava no meu quarto a dar voltas à triste miniatura do Foguete. Lembro-me que ele me fazia falta e de pensar que ele sofria mais quando chegava do que quando partia, ou seja, gostava mais de partir do que chegar.
Para mim, criança, a tristeza era ainda uma coisa a preto e branco. As pessoas choravam se estavam mal e não choravam se estavam bem. Ponto final. Foi preciso crescer, tornar-me adulto e partir para a Bulgária para o entender. Quando me despedi da minha filha também chorei sem lágrimas. Apenas por dentro. Aliás, até sorri. É quando partimos que precisamos de ser fortes e é quando regressamos que podemos fraquejar. Foi assim que aprendi que o choro não é óbvio. Podemos chorar quando estamos felizes e não o fazer quando estamos tristes.
Passou-se meio ano de Sófia, a cidade com nome de mulher a que passei a chamar minha. Fiz amigos, criei uma rede social, todavia sem lhe perceber os segredos. É incrível o poder de síntese da memória. Um dia que deixe esta cidade, não é da catedral Alexander Nevsky que me vou lembrar. Nem da montanha, nem dos edifícios. É da felicidade e da tristeza que caminham comigo pelas ruas da urbe e que nunca me deixam estar ausente de mim mesmo.
É assim, aliás, que me lembro da minha vida, independentemente dos lugares onde estive. As pessoas são como as cidades. Têm ruas e avenidas, jardins e subúrbios, cantos escondidos e um céu onde passam aviões. Vale a pena caminhá-las e conhecê-las.

10.21.2016

coisas que fascinam (213)

a sombra de um abraço

Existem histórias de Amor e da falta dele, histórias de vitória e de derrota, histórias de esperança e de desesperança. De certa forma, existem histórias de tudo, cada uma com vários momentos mais ou menos importantes. Esta é uma história ao contrário porque só tem um momento: o do primeiro abraço que dei na Bulgária. Na verdade, talvez nem seja bem uma história. É mais uma marca que me ficou no corpo como uma impressão digital, mas sobretudo na alma como um doce que se prolonga no tempo.
Numa das mesas do café estava um homem que não fumara um cigarro. Esquecera-se de o fazer e o tempo fizera-o por ele, deixando um longo e frágil pau de cinza preso entre os seus dedos. O seu olhar também estava preso na janela do bar. Do outro lado passavam sombras irrequietas e a luz do Sol colara-se ao vidro como o olhar curioso duma criança. Apesar disso, pareceu-me que o olhar dele ia mais longe, talvez para o infinito, como se tivesse posto debaixo da língua um pequeno selo de LSD e agora pudesse mesmo ver a criança de luz que nos espreitava.
As sombras das pessoas apressadas sempre me pareceram loucas. Se eu fosse uma sombra, não ia acompanhar alguém que corre na cidade por ter pressa de chegar a mais um dia ou momento efémero. Compreendo as sombras que vão para a cama com os seus donos, que fazem Amor com eles e que os acompanham preguiçosas deitadas na relva de um jardim. Nunca aceitei a fidelidade canina que faz uma sombra seguir um tipo stressado para o emprego, por exemplo.
Foi com este pensamento que ela chegou e se sentou à minha frente sem me beijar. Na Bulgária, uma mulher e um homem não se beijam se não se conhecerem muito bem. Por isso limitámo-nos a cruzar olhares e a dizer olá. Tive a breve sensação, no entanto, que a sombra dela me acariciou. Soube-me bem. Entretanto olhei para o homem na outra mesa do bar. O pau de cinza ainda lá estava.
Não percebi o que ela me estava a dizer. Os olhos dela eram negros como um poço sem fundo e eu mergulhei neles. Tentava tocar esse fundo com a ponta dos meus dedos, mas não conseguia. Era a solidão a empurrar-me para baixo e a voz dela abstracta à superfície. Quando finalmente me senti a afogar, esbracejei rapidamente para voltar à superfície. Respirei sôfrego e a voz dela penetrou-me como um gigante a penetrar uma virgem. Sangrei da alma, talvez por a voz vir acompanhada de um sorriso constante.

-  Estás a gostar da Bulgária?

O que é que eu ira responder a uma mulher de quem não fazia a mínima ideia de nada, para além da profundidade dos seus olhos? Nada. Era uma pergunta de circunstância e eu não me sentia pronto para retórica e banalidades. Mudei de assunto.

- A clientela deste bar é só pedintes e pessoas sem-abrigo, não é? - Perguntei, enquanto olhava para o cigarro queimado pela terceira vez.
- É, por isso é que achei estranho quereres encontrar-te aqui com uma mulher que conheceste na internet...
- Senti-me bem quando aqui entrei a primeira vez. Também sou um pedinte, de certa forma...
- Por isso é que imigraste?
- Não. Primeiro imigrei para aqui, depois transformei-me num pedinte. Ainda não abracei uma mulher desde que cheguei...

Finalmente a cinza caiu como o galho duma árvore apodrecida. O homem acordou do que me pareceu ser uma espécie de hipnotismo, pousou a cabeça nos seus braços sobre a mesa e adormeceu de novo. A S. levantou-se e contornou a mesa num percurso de cinco segundos que me pareceram meia-hora. Abraçou-me e eu morri.
Quando ressuscitei ainda estava nos braços dela. Tenho esta sensação de que pedir, ser sem abrigo ou marginal numa cidade é muito mais do que precisar de comer. É também, talvez antes de tudo, precisar da sombra de um abraço.
Eu avisei que isto não era uma história. Era apenas um momento.
Ainda vou a este bar de vez em quando, ainda vejo a cinza a queimar lentamente nos cigarros dos pedintes, ainda me perco na profundidade do poço de solidão em que mergulhei antes desse dia. Sobretudo, ainda mantenho o esse abraço como um hábito regular.

10.12.2016

mongólia e cova da piedade

A esta hora da noite a cidade parece abandonada. Caminho com a sensação de que todos os habitantes fugiram por causa duma súbita ameaça qualquer de que eu não me apercebi. Só ficaram as sombras. Há uma fininha lâmina de frio no ar a tocar-me as bochechas e sinto os meus sapatos a quererem deslizar nas pedras pequenas do passeio. Sinto-me frágil, tanto pelo desequilíbrio iminente como pelo eco dos meus passos ao fundo da rua.
Quando finalmente chego ao local combinado com um amigo croata que fiz uns dias antes, a lua surge cheia no céu. Veio espreitar, claro. Está curiosa com o facto de eu estar em frente a um bar de engate onde o sexo se paga a cada meia-hora. O porteiro é tão grande que me parece estar trilhado na porta. O seu corpo ocupa literalmente toda a entrada. Se fosse o guarda-redes duma baliza, eu não saberia por onde tentar meter a bola.
Recebo uma mensagem do Branimir a dizer que já está lá dentro. Não esperou por mim por causa do frio. O porteiro olha desconfiado para mim. Por cima dele, escritas em letras latinas pintadas por um fraco néon vermelho, as palavras "NON STOP". Não sei se isso quer dizer que o bar nunca fecha ou que o sexo nunca pára. A piada é estúpida. Ainda bem que a pensei mas não a disse a ninguém.
Afinal o porteiro não estava trilhado. Afasta-se e deixa-me passar.
O ambiente é escuro. Distingo nas paredes algumas pinturas eróticas e reparo que a maior parte das mesas estão vazias. Algumas delas estão em pequenos cúbiculos que se podem isolar facilmente com uma cortina preta. São iguais a algumas cabinas para experimentar roupa em lojas de pronto-a-vestir. Enquanto me interrogo como é que alguém consegue ter sexo ali dentro vejo alguém a acenar-me. É o Branimir. Está ao balcão e tem a mão esquerda no rabo duma mulher sentada ao lado esquerdo dele. Vou ter com ele o mais devagar possível para ter tempo de decidir o que devo fazer.
A música pára. Um som horrível e agudo que me lembra um ovni avariado fere-me os ouvidos. Do outro lado do balcão uma mulher dá uma pancada num leitor de cds e volto a ouvir os Duran Duran. O meu mais recente amigo cumprimenta-me e apresenta-me à mesma mulher que acabara de esmurrar a aparelhagem. É a dona. Diz-lhe que eu posso fazer tudo o que quiser e ele paga. No dia anterior ganhei-lhe uma aposta que eu próprio não levara a sério. Pensei ser apenas uma piada, mas quando o Manchester United chegou ao fim do jogo empatado com o Stoke ele mandou vir mais duas cervejas e prometeu-me a noite da minha vida.

- Nunca pensei que o Mourinho não ganhasse este jogo! - disse
- Nem eu. Na verdade só disse que não ia ganhar por dizer. Podia ter dito outra coisa qualquer...

Ele riu-se.
Pois bem. Pelos vistos a noite da minha vida é neste bar de miúdas, enquanto ele mantém a mão no rabo duma mulher com metade do tamanho dele e eu não faço a mínima ideia de como me hei-de comportar. A boa notícia é que há uma prateleira cheia de garrafas com marcas de uísque, algumas das quais nunca ouvi falar.

- Quais são os teus gostos? - Pergunta a dona.
- Bushmills, mas acho que hoje vou beber Hakushu. Nunca ouvi falar em Hakushu antes.
- Falo de mulheres... quais são os teus gostos?

Raios. Nunca na vida me tinham feito uma pergunta tão absurda. Sei lá quais são os meus gostos por mulheres. Só costumo gostar daquelas com quem consigo ter longas conversas e, mesmo intimamente, só me envolvi com mulheres depois de as conhecer e de ter gostado de partilhar algum tempo a falar seja do que for.

- Gosto de mulheres da Mongólia.

Na verdade, às vezes digo coisas só porque sim. Não sei bem porque é que me saem, mas sei que até ao momento nunca tinha pensado sequer em mulheres da Mongólia. Disse-o exactamente com a mesma certeza que tinha dito um dia antes ao meu amigo croata, durante o almoço, que o Manchester não ia ganhar. Quando digo coisas absurdas, penso sempre que ninguém me vai levar a sério, mas às vezes levam.
Estou a dar o segundo ou terceiro gole no uísque japonês quando uma mulher de olhos em bico me abraça e beija na face.

- Olá. Sou da Mongólia. De onde é que tu és?

É bastante baixa e muito bonita. O sorriso chega-lhe de orelha a orelha e puxa-me o braço como se me quisesse tirar dali.

- Sou de Portugal, duma terra chamada Cova da Piedade.

Mais uma vez digo uma coisa absurda, não sei bem porquê. Explico-lhe o que quer dizer Cova da Piedade, mas ela não parece nada interessada no assunto. Senta-me numa mesa daqueles cubículos pequenos e fecha o cortinado. Senta-se ao meu colo e beija-me a boca. Com jeito, afasto-a um pouco e sento-a ao meu lado. Dou mais um gole no uísque japonês. Não sei muito bem como, mas ela também tem uma bebida qualquer na mesa. Não vi ninguém trazê-la, mas o facto é que está ali.

- Quanto tempo é suposto estares aqui comigo? - Pergunto.

Os olhos dela abrem como se fossem ameijoas. São pretos, profundos e bonitos, mas também inquisitivos.

- Até meia-hora... meia-hora está bem.
- Okay. Eu não vou ter sexo contigo porque não me apetece. És muito bonita, mas eu nunca faço isto, percebes?
 - Sim...
 - Podemos ficar aqui meia-hora a falar?
- Sim...

9.22.2016

coisas que fascinam (212)

agasalho

A temperatura média baixou. De vez em quando chove, ainda que raramente, e o vento passeia devagar pelas ruas da cidade. Não tem nome, porque não cabe em nenhuma outra, mas é esta a minha estação preferida. Uma mistura de Outono e de Primavera. É a minha preferida porque, apesar do Sol, as pessoas precisam de agasalho.
Um abraço também é isso: um agasalho. Se não o for, não chega a ser um abraço. E passeei-me com o vento que me parecia tão só. Fui para onde ele ia sem sequer lhe perguntar porquê. Desde o dia anterior que uma frase não me saía da cabeça. "Devias ter cuidado. Estás a ficar demasiado búlgaro!". Foi uma mulher que ma disse, já eu me tinha despedido. Tomámos café e eu informei-a que precisava ficar sozinho o resto do dia. Antes de me afastar, ela atirou-a como se fosse uma lança qualquer. Uma frase pode ser uma lança? Pode.
O recreio duma escola que eu me habituara a ver deserto estava agora cheio de vida. Algumas crianças corriam e gritavam numa brincadeira que me pareceu sem sentido, outras jogavam futebol com uma bola barata e duas raparigas analisavam as raízes duma árvore que deve estar ali há mais de cinquenta anos. Curvaram-se e depois gritaram. Era um bicho qualquer que as assustou. Vi-as abraçarem-se enquanto o grito se apagava lentamente. Agasalharam-se uma à outra, concluí.
Não sei quanto tempo fiquei ali, a olhar para o pátio da escola através das grades, prisioneiro das minhas memórias de há quarenta anos atrás noutra escola, mas com os mesmos gritos sem sentido e as mesmas bolas baratas. Sei que o vento ficou comigo e percebeu-me. Somos todos tão o mesmo.
Dentro de um carro vermelho escuro, um puto qualquer fitava-me curioso não sei há quanto tempo. Fechei a mão em punho e estiquei apenas o dedo polegar. Fixe! Ele respondeu-me com um gesto igual, riu-se e escondeu-se no banco de trás.
O Chucky's Coffee House é o melhor sítio da cidade para tomar café ou, no mínimo, aquele que é mais parecido com um café português. Descobri-o num abraço há uns meses atrás durante uma visita que tive. Foi lá que o vento me levou sem eu pedir. Costuma ser assim. Quando não tenho destino, agasalho-me na memória dum abraço.
A frase foi-se.

9.14.2016

as fracas luzes da cidade indicar-me-ão o caminho

Os candeeiros públicos parecem ter frio. É a sensação que tenho quando reparo na forma como a luz de cada um se encolhe na escuridão da noite. Não iluminam quase nada, mas fazem-se notar como se fossem pequenos pirilampos envergonhados. É por isso que tenho a sensação de estar numa cidade fantasma, onde as pessoas já se foram deitar e fiquei apenas eu, sentado numa paragem de autocarro a tentar perceber como se movem as sombras.
Entre mim e a Lua há dois números vermelhos a desafiar a noite. Um nove e um doze. Faltam doze minutos para o autocarro da linha nove chegar. É isso. Não é a linha que me pode levar ao pequeno e velho rés do chão onde vivo, mas optei por passar na casa duma mulher que não está na cidade.
É claro que, se não está, não a vou poder ver. Ainda assim, conto que a viagem me traga uma certa normalidade. É um trajecto que já fiz várias vezes a esta hora para ir ter com ela, por isso optei por fazê-lo mais uma vez. Distraio-me sempre com as luzes enfraquecidas e pergunto-me o que é que estão ali a fazer. Às vezes lembro-me da cidade de Londres num tempo em que eu não vivi, e de funcionários municipais a acenderem todas as noites os candeeiros a petróleo que iluminaram, por exemplo, os crimes de Jack O Estripador. Talvez os tenha visto num filme qualquer e nunca mais me esqueci.
Uma das sombras da cidade senta-se ao meu lado. Também está só e, mesmo que não a possa ver, percebo que é duma mulher que aperta as golas do casaco numa vã tentativa de se aquecer. Sentou-se exageradamente perto de mim e posso ouvi-la respirar. Talvez tenha medo de estar sozinha e partiu do princípio que eu, por estar à espera de um autocarro, não seja alguém perigoso como foi Jack. Procura, também ela, alguma normalidade. Gostava de lhe perguntar se alguma vez viu um filme em que homens acendem candeeiros a petróleo nas ruas de Londres, mas seria tão bizarro que não o faço.
Para ela, também eu sou apenas uma sombra. Talvez por isso me pergunte agora qualquer coisa que eu não consigo entender. Não falo búlgaro, digo-lhe. Ela cala-se. Provavelmente só queria ouvir a minha voz. Eu, pelo menos, fiquei contente por ouvir a dela.
Tenho a certeza que é bonita. Imagino-a magra, com a pele exageradamente branca e o nariz de cerâmica a ameaçar  partir-se. Os lábios marcados pelo frio e alguns sinais no queixo. Talvez tenha o cabelo pintado de ruivo e olhos pretos. 
O som característico do autocarro ouve-se no fundo da noite. Os faróis aproximam-se devagar como se fossem de um animal qualquer que, de tão cansado que está, pára mesmo à nossa frente respirando de forma sôfrega. Vem vazio.
Olho uma última vez para a Lua. Tenho a certeza que esteve a ler os meus pensamentos. A mulher senta-se duas filas à minha frente e vira-se durante dois segundos para me ver. Não é nada do que eu imaginei. Muito provavelmente eu também não sou nada do que ela imaginou.
Encosto a cabeça ao vidro da janela como se quisesse ouvir algum segredo vindo lá de fora. Daqui a nada saio num bairro dos subúrbios, olho para as janelas fechadas de um apartamento que pertence a uma mulher que não está e depois faço cerca de três quilómetros a pé até minha casa. As fracas luzes da cidade indicar-me-ão o caminho. Não era preciso, mas é esta a minha normalidade.

9.07.2016

a pele é uma estrada

E eu ali, de cerveja já quente na mão a olhar para o alcatrão, com algumas feridas que me lembravam rugas próprias da velhice. Foi a primeira vez que me veio à ideia comparar o piso duma estrada com a pele de alguém mas, de facto, ambas tinham uma coisa em comum: a idade.
E ela a perguntar-me em que é que eu estava a pensar. Nada, respondi. Só então reparei que não falávamos há pelo menos meia hora. Enquanto eu me perdia no labirinto dos meus pensamentos, ela não disse uma única palavra. Manteve-se em silêncio, ao meu lado, creio que com os olhos pousados em mim.
Em alguma coisa estavas pensar, disse. Depois sorriu sem eu ver, que ainda estava concentrado numa das feridas abertas no alcatrão, a maior de todas e de onde sangravam algumas ervas daninhas.
Os meus olhos voaram pelo espaço à procura de um caixote do lixo onde pudesse colocar a garrafa e ela adivinhou. Pegou-lhe, verteu o líquido amarelo para dentro da ferida como se a quisesse desinfectar e afastou-se.
As mulheres sabem sempre onde estão as coisas que os homens não conseguem ver. Um caixote do lixo, por exemplo, que estava ali a uns dez metros. Ouvi os passos dela, depois o som do vidro a bater no plástico e os passos de novo, a regressarem, tão certos que mais pareciam o ritmo de um piano. Ainda estás a olhar para o chão, concluiu assim que voltou. E estava, agora era a espuma da cerveja que me lembrava uma onda de mar.
Não lhe quis dizer que eu sabia que dali, seguindo por aquela estrada e depois por inúmeras outras, podia chegar ao meu país, à minha praia, ao meu lugar. Se ela entendesse que eu estava a propor fazer quase quatro mil quilómetros a pé, pareceria algo absurdo. Ainda assim, senti um certo conforto com esse pensamento final.
Levantei os olhos e ela ainda sorria. Dás-me a mão? Perguntei. E ela deu. Começámos a caminhar. Nunca percebi porque é que duas pessoas que se estão a apaixonar começam a caminhar assim que dão as mãos, mas creio que é porque se pararem a tendência é abraçarem-se. E então parei e ela abraçou-me. Estava o chão, eu, ela e as nuvens. Não sei bem quanto durou esse abraço porque deixei de contar o tempo... talvez uns dez segundos ou uns quinze minutos. Só sei que foi o primeiro.
Depois a pele é uma estrada. Percorremo-la os dois, um no outro, até chegarmos a nós. Pelas nossas rugas, a alguns milhares de quilómetros de onde tínhamos começado. Emigra para mim, mandou-me. Mas eu não esqueço de onde vim.

8.19.2016

pensamentos catatónicos (348)


Caminho por Sófia. A cidade conta-me histórias do futuro. De quem, em nome dele, abdicou do presente e pôs a vista num ponto distante lá mais à frente, que ainda não se via muito bem, à espera de o poder tocar. Mas o futuro nunca se toca. Quando lá chegamos, já ele nos enganou e se transformou no presente.
É o presente que tocamos, porra. No Amor também, na luz que entra pelas frinchas da persiana e se deita com a mesma mulher que eu, lhe segreda o mesmo silêncio e agradece o momento. É o presente que nos pode abraçar. O passado é da saudade e o futuro é da solidão, esse ponto lá à frente continuamente desfocado.
Cruzo-me com um homem que o sabe, mas engole a sabedoria toda num estranho olhar silencioso. É o presente mesmo à frente dele e ele nunca o tinha visto. É o Amor, pá! Que não se pode adiar.


fotografia do blogue fotográfico Love You Sófia

8.15.2016

tolices

Está ali um rapaz a brincar sozinho. Deve ter uns seis ou sete anos de idade e só ele entende o que está a fazer. Tem um pau partido numa mão e uma pedra suja na outra, com que vai fazendo fricção como se fosse possível fazer fogo assim. Ri-se. É tolo. O avô, que o olha a cerca de dez metros de distância, sentado num banco do jardim, também o acha tolo. Também se ri, embora menos.
O meu avô também me vigiava assim, a alguns metros de distância e sentado num banco de jardim enquanto eu brincava de forma tola. Não me lembro de o ouvir a chamar-me tolo ou a censurar de alguma forma as minhas brincadeiras, a não ser uma vez quando decidi trepar um dos pilares do coreto do parque. Tarde demais. Rasguei as calças e abri um ferida enorme no joelho. Chorei baba e ranho. Ele comprou-me rebuçados para acalmar a minha dor.
Tenho saudades dos passeios que dava com o meu avô no jardim em Aveiro e o facto de estar num jardim em Sófia não atenua essa saudade. Pelo contrário, aumenta-a. E, no entanto, os nossos passeios eram só isso. Eu a fazer tolices e ele a guardar-me como um pastor guarda o gado, para que ninguém o roube nem lhe faça mal.
As crianças são tolas e deve ser disso que eu mais tenho saudades. De ser uma criança tola. A maior tolice das crianças é acreditarem que o mundo vai ser sempre assim, com elas a brincarem num parque com um avô a vigiar, como se uma pessoa com noventa anos de idade pudesse ficar ali mais cem anos a olhar para elas.
É uma tolice inteligente, esta das crianças. Nunca mais somos tolos assim durante a vida. A não ser, talvez, no Amor. Quando nos apaixonamos também acreditamos que vai ser sempre assim, connosco a fazer tolices enquanto nos vigiamos mutuamente. Como se um Amor com dez anos pudesse ficar ali mais cem.
Não pode, mas por um Amor vale sempre a pena voltar a ser criança. E então ouço o rapaz a chorar e o avô a dizer-lhe qualquer coisa. Deve ter caído e aleijou-se. Espero que aquele velho com um ar gentil, que agora o ajuda a levantar-se, lhe compre um doce qualquer para lhe acalmar a dor. Afinal de contas, o miúdo não pode fazer ideia onde é que vai estar daqui a quarenta anos, quando tiver saudades deste momento.
Não faço a mínima ideia quando é que o Amor me passou a perna, mas sei que foi sempre uma mulher que me ajudou a levantar, a oferecer-me um doce e a fazer-me acreditar que o Amor e a vida são tão imutáveis quanto a nossa infância. É uma tolice, mas é uma tolice inteligente. Deixá-lo.
O avô e a criança desaparecem numa curva do jardim. Alivia-me o facto de perceber que o choro do menor já passou. Faltam cerca de vinte minutos para me encontrar com uma mulher que conheci ontem num bar. Tinha um copo de gin numa mão e uma garrafa de água tónica na outra. Só as mulheres é que bebem coisas assim, tão complexas que precisam de duas mãos. Foi o que eu lhe disse enquanto pedia uma cerveja junto a ela, num balcão deserto. Estava sozinha, ficámos a falar toda a noite. Perguntou-me do que é que eu tinha mais saudades em Portugal e eu respondi-lhe que era dos passeios no jardim com o meu avô. Convidou-me para vir aqui hoje, a um sítio parecido onde se passam coisas também parecidas. E eu vim. Estou à espera dela. É uma tolice, mas é uma tolice inteligente.

8.10.2016

vinte e quatro

Primeiro há uma casa. É aquela onde eu vivo e é velha. Tão velha que até o relógio do corredor se cansou de contar o tempo que passa. Talvez, simplesmente, se tenha fartado dos dias sempre iguais, com o pó a acumular-se nas mobílias como neve em câmara lenta. Durante anos, as únicas visitas que a casa teve foram as sombras das árvores encostadas à janela da cozinha. Vinham esconder-se do Sol e ao fim da tarde tornavam a sair. Ainda o fazem hoje em dia, aliás, e não querem saber se agora eu vivo lá. Ignoram-me da mesma forma que a cidade o faz.
É um rés do chão no bairro de Darvenitsa, no bloco treze, um quase cadáver de cimento e betão igual a muitos outros espalhados pelos subúrbios de Sófia. Parecem animais gigantescos que se cansaram de migrar e pararam de repente, como se quisessem desistir de viver e esperassem agora calmamente a morte.
A palavra conforto desapareceu do meu dia-a-dia. Não tenho um sofá, uma cadeira decente ou uma cama. Às vezes recordo-me do meu pequeno apartamento em Aveiro e pergunto-me o que estou aqui a fazer. Costumo abrir uma lata de cerveja ou encher um copo de vinho para encontrar a resposta. Escavo a minha vida da mesma forma que um cão esfomeado esgravata o chão e não encontro. Limito-me a beber, então.
Não encontro, mas sei que ela existe. Aliás, existem várias. Uma delas é que nesta casa de que falo nunca Amei ninguém. É velha, mas também é leve. Não me recorda constantemente da lição que o Amor me deu, que foi aprender a desconfiar dele mesmo. Acho até que, numa certa altura da vida, todos aprendemos essa mesma lição e que ela muda qualquer coisa em nós. Muda tanto quanto o momento em que decidimos pegar numa pequena parte da nossa vida e mudar de sítio. Pelo menos.
É com essa leveza que vou vivendo e sinto-me bem. Normalmente, quando a vida mo permite, saio de casa, caminho sete minutos até à estação de Musagenitsa e apanho o metro até uma das cinco estações mais centrais. Tenho sempre três opções: ficar sozinho, beber um copo com um dos cinco ou seis amigos que já fiz na cidade, telefonar a uma mulher de quem decidi gostar.
Há uns dias escolhi a estação de Opalchenska e ficar sozinho. As luzes dos candeeiros públicos encolhiam perante a imensidão da noite e cintilavam de frio. Junto a um pronto-a-vestir barato, duas prostitutas estavam tão quietas quanto os manequins sem rosto da montra. Uma delas deu quatro ou cinco passos na minha direcção e perguntou-me o que eu não precisei perceber para entender. Falava espanhol com sotaque sul americano e convidei-a para uma cerveja numa vinte e quatro. Não para uma cama nem para um canto escuro da cidade.
Uma vinte e quatro é uma loja que vende álcool vinte e quatro horas por dia. Não é propriamente um bar porque não se pode ficar lá dentro muito tempo (algumas nem permitem a entrada), por isso bebe-se na rua ou num dos muitos jardins que também existem.
A noite estava parada e ela disse-me para subir ao apartamento dela. Num saco de plástico muito usado levava seis cervejas de meio litro. Ela colocou quatro num pequeno frigorífico e abrimos as outras duas. Eu tirei o meu casaco e pousei-o num sofá amarelo e gasto, ela foi buscar uma camisola e vestiu-a. Perguntou-me se podia fumar. Claro que sim.
Falámos da vida. De onde somos e como fomos ali parar os dois naquele momento exacto, a uma pequena e insignificante esquina da capital da Bulgária. Como nos sentimos e o que queremos ou não da vida. Falámos de coisas de que não me lembro, apenas por falar. Depois ela parou por um momento, fitou-me nos olhos como se procurasse qualquer coisa que não tinha ainda conseguido encontrar. Apagou o cigarro numa lata de atum transformada em cinzeiro e levantou-se.

- Estou cansada. Vais-te embora ou queres dormir aqui?

Quando abri os olhos de manhã, as sombras das árvores lá fora tinham entrado em casa dela para se esconderem do Sol. Com os meus olhos ainda em esforço, procurei um relógio qualquer para saber que horas eram. Havia um de plástico numa das paredes, mas estava parado.

7.23.2016

coisas que fascinam (211)

Jardins

Uma das coisas que eu mais gosto em Sófia são os jardins. Alguns deles são bastante grandes, todos a tender para o selvagem. Normalmente com muitas pessoas, algumas a beber cerveja, outras a andar de bicicleta ou de skate, outras a namorar e algumas a pedir esmola. Nunca gostei de jardins demasiado cuidados, com as árvores sempre podadas e os arbustos a delimitarem áreas como se fossem linhas de soldados incapazes de pensar. No que se refere às mulheres também sou assim. Gosto das desarranjadas e digo-o assim por também gostar de pensar em mulheres como jardins.
Talvez por isso me tenha passeado bastantes vezes por eles, tão sozinho quanto o que se pode estar num cidade com três milhões de habitantes em que não se conhece nenhum. Normalmente em Borisova, com uma garrafa de litro de cerveja na mão e o tempo a passar devagar pela minha pele. Uma vez sentei-me num dos velhos bancos a beber e conheci uma mulher que se sentou propositadamente ao meu lado. Ao contrário do jardim, estava bem arranjada. Falámos um pouco e senti-me ainda mais só.
Podemos pensar que é a conhecer pessoas que se combate a solidão, mas não é verdade. É quase isso, ou seja, conhecendo algumas pessoas. As pessoas são como peças de um puzzle. Algumas encaixam em nós, outras não. E é assim que se começa uma história a dois. Encaixando.
Uns dias mais tarde voltei lá e deitei-me na relva. Foi a primeira vez que reparei que as árvores contavam segredos entre elas sobre as pessoas que passavam. Sobre dois velhos, por exemplo, discutiam sobre há quanto tempo eles vão ali passear abraçados. Sobre um adolescente que patinava num skate colorido, apostavam sobre quando ia ser a sua primeira queda. Acho que as árvores sabem tudo sobre nós. É por isso que não falam. Segredam.
E então segredaram-me sobre uma mulher que passava sozinha. Disseram-me que encaixaria em mim e eu levantei-me e fui falar com ela. Primeiro ignorou-me e depois pediu-me que me afastasse. Depois eu disse-lhe onde ia estar deitado na próxima hora, se ela quisesse voltar. E ela voltou. As árvores tinham razão.
Nesse dia dei-lhe a mão e deixei de ouvir os seus segredos.

7.04.2016

creme Nívea

O taxista estava descalço, sentado no banco do condutor com as pernas fora do carro. Cada uma das suas meias esverdeadas a espreitar dos sapatos como se fossem cobras indianas encantadas com o som duma flauta mágica. Com os dedos das mãos limpava os dedos dos pés, tão concentrado que demorou a perceber a minha presença. Tossi, sem ter tosse para o fazer, e ele olhou para cima semicerrando os olhos como se eu fosse o Sol. Mandou-me entrar e calçou-se apressadamente.
O cheiro do creme Nivea que acabara de passar pela cara, para combater a secura da pele, lembrou-me uma praia portuguesa, uma mão dada à minha namorada e um abraço com a pele tostada. Lembrei-me dos seus cabelos negros misturados com areia e dela a pedir-me que levasse o guarda-sol  amarelo e o abrisse no sítio do costume. Que ingenuidade, sempre pensei que aquele aroma era da praia e afinal é apenas de um creme.
O pára-brisas do táxi amarelo enquadrava uma paisagem de edifícios envergonhados que contrasta com essa memória. Estão degradados e só se mantêm de pé porque é essa a dignidade que lhes resta, manterem-se de pé como velhos equilibrados na ponta de uma bengala, num esforço titânico de quem já passou pela vida toda. Ouvi qualquer coisa em búlgaro que não percebi, mas que supus ser a pergunta normal sobre para onde queria eu ir. Sorri, tirei o meu telemóvel do bolso e mostrei-lhe uma mensagem que recebera antes com a morada dela, em cirílico, e um convite em inglês para aparecer. Preparava-me para me deitar, apesar de serem oito da manhã, pois tinha feito direta a trabalhar.
Tenho que descansar, disse-lhe. Podes descansar comigo, respondeu. E eu tornei-me a vestir e saí de casa à procura de um táxi.
O carro arrancou devagar. No rádio fanhoso ouvia uma música qualquer de chalga que conheço mas da qual não sei o nome. Os edifícios observavam-me em silêncio, como se se perguntassem para onde é que eu ia àquela hora matinal de um Domingo. Tentei recordar-me do cheiro verdadeiro da praia, mas não consegui fugir da memória daquele abraço e do aroma intenso do creme Nivea. Parámos num semáforo, olhei pela janela e decidi falar com eles. Com os edifícios, digo.
É que o Amor não me passa nem quando me falta, disse-lhes.
Atiraram com as bengalas ao chão e disseram-me adeus. Todos eles, até àquele em que eu parei para mandar mais uma mensagem pelo telemóvel. Estou aqui à porta, escrevi. Ela desceu e abraçámo-nos. E de dois que éramos passámos a ser só um, mais um aroma qualquer a uma cidade que cada vez é mais minha.
Talvez daqui a uns anos me lembre deste abraço noutro táxi, noutra cidade, noutro Amor. Que o Amor nunca me passe nem quando me faltar, pensei. E subi.

7.02.2016

olhos

Quando partimos para outro país choramos sempre. Às vezes não em lágrimas, mas quase sempre em silêncio. No princípio o truque é reparar em tudo o que acontece à nossa volta: na criança que vai ao nosso lado no autocarro a abraçar uma boneca, na hospedeira do avião que nos pergunta se queremos mais um copo de vinho ou no polícia de fronteira que nos pede a identificação a sorrir. E nós também sorrimos. Sorrimos com tudo aquilo em que reparamos porque estamos órfãos do resto. E o resto é o mundo.
Ao contrário do que se possa pensar, não se chora por tristeza. Chora-se pelo choque do que a vida é e nunca foi tanto: uma mudança. Sentimo-nos vivos pela primeira vez e isso confunde-nos. E quando não há nada em que reparar perguntamo-nos onde é que estivemos até agora. O que é que andámos cobardemente a fazer na nossa vidinha do dia-a-dia. E encontramos uma resposta escrita no tempo, que não queremos ler mas sabemos que está lá. A adiar a vida. Foi isso. Procuramos algumas moedas no bolso das calças e bebemos um café na máquina automatica de um aeroporto. Olhamos para os outros e perguntamo-nos quem são, de onde vêm e para onde vão. O mundo é para conhecer.
Depois damos por nós verdadeiramente sozinhos. Sem conseguir ler os letreiros das lojas nem os jornais dos quiosques, sem ter o amigo do costume para falar de futebol ou de cinema, sem o calor da família e sem que alguém saiba o nosso nome. Mergulhámos no meio da indiferença e percebemos que não é o mundo que vamos conhecer, mas sim nós mesmos.
A felicidade esgravata-se nessa indiferença da mesma forma que se plantam sementes num terreno árido. Marcam-se encontros através da internet, sentamo-nos sozinhos no balcão de um café e metemos conversa com quem passa, caminhamos quilómetros seguidos pela cidade e delineamos estratégias no fundo de um copo de uísque. Faz-se um amigo num dia, uma amiga noutro, e nada nos que se seguem.
As primeiras pessoas que conhecemos são exactamente como nós. Vieram de algum sítio distante e andam no mesmo exercício de se conhecerem melhor. À procura sabe-se lá do quê e para quê. Brindamos com cerveja ao futuro, mas nesse momento é o passado que nos vem à memória. Os brindes que fizemos e os abraços que demos e que já não existem.  Vem-nos à memória e aos olhos. E tornamos a reparar em coisas pequenas para disfarçar.
Os dias alternam entre o frio e o quente. Nunca estão mornos e isso deve ser bom. Arranjamos um tecto que não é muito mais do que apenas isso mesmo e lavamos a cara várias vezes por dia com água fria. Procuramo-nos por trás da ferrugem do espelho, antes de saírmos de casa todas as manhãs, e esculpimos a face para que ela não mude. Temos seis ou sete números de telefone para convidar alguém para uma cerveja e essa foi a maior conquista que se fez até ao momento.
Depois há uma mulher, porque tem que haver sempre uma mulher para que a vida seja vida. É o quarto número da nossa pequena lista e mandamos-lhe uma mensagem ansiosa por um café a dois. Talvez ela apareça, talvez não. Se aparecer, talvez a coisa se repita, talvez não. Se se repetir, talvez se transforme em água e se dilua também ela nos nos nossos olhos.


 

6.17.2016

respostas a perguntas inexistentes (373)



café

Coloco duas colheres de café numa cafeteira de vidro antiga, fervo um pouco de água e misturo. Tenho que esperar cerca de um minuto para que o filtro humedeça e possa descer pelo vidro suavemente, caso contrário fará um movimento abrupto e desperdiçarei café.
São cerca de dois a três minutos para preparar a bebida e, sempre que o faço, lembro-me da minha máquina de pastilhas em Portugal. Não com saudade, mas porque essa é mais uma memória que me ajuda a entender-me a mim mesmo. É o tempo, pá. Do que me lembro é de estar impaciente durante os vinte segundos que demorava a tirar um café nessa máquina e então reparo como estou a ganhá-lo. Ao tempo, repito.
Sento-me a ver a mistura a fazer-se e contemplo-a ao mesmo ritmo da vida. É sempre assim. Ainda ontem me sentei num bar no centro da cidade e pedi uma Kamenitza de meio litro. Não sei quanto tempo estive a ver o desfile de transeuntes lá fora, através duma janela empoeirada, como se o tempo estivesse a contar apenas para eles. Depois duas mulheres pararam a conversar e uma delas olhou para mim duas vezes. Trocámos um sorriso e o barulho do antigo relógio de cuco do bar tornou a fazer-se ouvir.
Pensamos que a solidão se dá quando estamos sós, mas não é verdade. A solidão dá-se quando não sabemos estar connosco, mesmo que estejamos rodeados de pessoas. É uma cobra, essa gaja. Até no Amor mais intenso pode aparecer a deslizar, se não aprendemos a fazer um café de três minutos aproveitando a vida.

6.16.2016

nuvens

Não, não é só dinheiro. Às vezes nem dinheiro é. É o choque, é o Amor, é a vida. Enfim, é o sangue que nos corre nas veias. É por tudo isso que um dia se fecha a porta de casa com duas voltas à chave e não se olha para trás. Para não morrer antes que a morte chegue. E sim, há muito sofrimento à mistura que se pode beber num cocktail de lágrimas, sorrisos e abraços. Também há muita saudade, muita hesitação e, acima de tudo, muito coração.
Os lugares são importantes, porra. Por isso mudar de lugar pode sê-lo ainda mais. Relativiza-nos tudo, estar noutro sítio, menos o Amor que temos por um filho, por uma mãe ou por um irmão. Partimos de novo do ponto do ponto zero e caminhamos pela rua como quem acabou de nascer outra vez. Sabemos que tudo o que nos rodeia é novo, menos as nuvens. Talvez essas tenham passado pelo nosso país de origem e alguém de quem gostamos as tenha visto. É uma ligação qualquer, daquelas que não entendemos mas que sabemos que está lá. E choramos e rimos Rimos e choramos.
A primeira sensação é a de desamparo. Estamos sozinhos no que para nós é o fim do mundo e damos um novo significado às palavras fome e frio. Sobretudo à palavra Amor. Arrendamos uma casa velha num bairro degradado, dormimos no chão duas semanas e depois improvisamos uma cama com tábuas velhas. Com o primeiro salário compramos um fervedor de água e um bico de um fogão. De repente, uma lata de feijão e meio chouriço cozido é a melhor refeição que tivemos na vida. Sorrimos de novo, enquanto lemos pela enésima vez o único livro em português que trouxemos de casa. Adormecemos com ele sobre o peito, os pés nos velhos tacos de madeira e a cabeça numa esponja. Enroscamo-nos com o vazio e contamos segredos à noite infinita. Está tudo bem, dizemos.
Durante o dia somos mendigos, não de uma moeda nem de um bocado de pão. Apenas de bondade. Um sorriso que apareça, por exemplo, e ajude a curar um velho Amor que ainda sangra. A bondade, como todos sabem, não se pede de mão estendida. Tem que vir com dignidade. Então estendemos as palavras. Falamos com todos os que nos querem ouvir, mesmo que não nos percebam bem, até um sábado à tarde em que alguém nos devolve o sorriso e nos dá a mão. Então tudo é novo. Menos as nuvens, claro.
Depois há a violência, aquela que é inerente à própria condição de respirar. Estar vivo significa sofrer quase sempre, menos quando temos Amor. Ainda assim é tão bom. É o melhor que nos pode acontecer, estarmos vivos e podermos fazer alguma coisa por nós, nem que seja olhar para a merda duma nuvem e ver nela, com saudade, a única coisa que nos resta do passado. É quando digo isto a alguém e esse alguém me responde com um abraço que, apesar de não estar em casa, sei que estou novamente em casa.

5.12.2016

O fim do mundo

Acho que muitas vezes escrevi sobre um bar em que nunca entrei. Um bar do fim do mundo, tão agressivo quanto convidativo, tal como a vida que nos calhou a cada um de nós. Como se caminhássemos sozinhos durante quilómetros, num ambiente agreste, e nos doessem os pés e a alma. Depois um bar pequeno, com uma lareira, uma puta simpática, um dono enlouquecido pela solidão serôdia e uma mulher imperceptível.
Pois esse bar conheci-o aqui, num bairro pobre em Mladost. É tudo o que eu escrevi no parágrafo anterior mais um piloto de aviões que só está às vezes, quando não voa. Isso e uma decoração vermelha e decadente. Passam músicas búlgaras do youtube e um televisor mostra o boletim meteorológico da Bulgária. Talvez o elemento comum mais absurdo entre países diferentes seja esse: o boletim meteorológigo ter sempre uma apresentadora sexy.
O dono, que me reconhece de visitas anteriores, grita “Ronaldo” quando entro. A puta, que já sabe que não estou ali para lhe pagar meia hora de sexo triste, abraça-me e segreda-me algum aroma de gin tónico. A mulher imperceptível sorri-me e vira a cara para lugar nenhum, desprezando-me. Não há melhor desprezo do que esse, o que vai dar a lugar nenhum.
Peço uma Ariana, que é a cerveja mais barata neste fim do mundo e parto para uma discussão sobre aviões com o piloto, que também bebe cerveja, mas mais cara do que a minha. O F-16 americano e o SU- russo voam entre as nossas bocas numa solidão cada vez maior.
É só um bar escondido numa esquina de um bairro pobre de Sófia, onde por uma noite escondo  todos os meus medos e receios, todas as minhas inseguranças e os meus desejos biológicos. É para isso que servem os bares, mesmo que no fim do mundo, para aprendermos a rejeitar a merda da Biologia que se mostra tão intensa em cada copo que bebemos.
Depois saio e a mulher imperceptível dá-me a mão direita, a puta dá-me outro abraço e o dono grita de novo “Ronaldo”. Despeço-me com a sensação que faço um bocadinho parte deste fim do mundo, tão agressivo e convidativo tal como a vida que me calhou.

5.08.2016

O caminho de caracóis

Da estação de metro de Sofiska Sveta Gora até ao edifício onde trabalho há uma ferida de cimento que rasga alguns terrenos onde as plantas crescem de forma caótica e aleatória. À medida que o metro vai passando e vomitando trabalhadores sem rosto, vêem-se pessoas a percorrer essa ferida em fila indiana, como se fossem manadas isoladas de elefantes.
Às vezes eu sou um desses elefantes. Olho sempre para o chão, para não pisar nenhum dos caracóis que procuram escapar à humidade matinal. Nem todos têm o mesmo cuidado e é normal ouvir a casca de um ou outro a rachar. São cerca de doze minutos em que converso com todas as pessoas de quem tenho saudades, num silêncio interior que só me pertence a mim e a elas.
Quando tiramos um bilhete só de ida para outro país, não é apenas pelo espaço que viajamos, mas também e principalmente por nós mesmos. Conheço-me hoje melhor do que me conhecia há dois meses atrás. Sei como reajo à solidão e à saudade, sei como enfrento a hostilidade pontual de um desconhecido e como me aqueço na bondade de um sorriso alheio. Sei como choro sem chorar e como rio sem rir e sei, sobretudo, quem são aqueles que formam o pedaço de mim que ficou em Portugal.
De alguma forma, o corpo é tão importante quanto a energia, e é por isso que uma conversa ao telefone ou no messenger não apaga a saudade. Ajuda, mas não apaga. O corpo, aqui, é o dos outros. A voz, os gestos e os cheiros são sempre dos outros, porque a Bulgária ainda é um país em que as pessoas são outras. As outras.
Quando eu era criança, num tempo em que me era inimaginável vir um dia viver para a Bulgária, brincava à carica com as outras crianças da rua num piso de cimento parecido com este, num pátio traseiro de um prédio solitário em Aveiro. Uma vez o João pôs-se a esmagar caracóis enquanto cantava qualquer coisa. Eu bati-lhe. Depois ele bateu-me a mim. Nunca mais o vi, mas ainda assim sei que ele não pertence a esse grupo de outros de que falo aqui. É dos meus, e é a primeira vez que tenho este sentimento absurdo de pertença a um país.
Também o terei com a Bulgária, mais tarde ou mais cedo. Soube-o quando recebi um telefonema de um desconhecido a oferecer-me um quarto quando me encontrava economicamente mais frágil, soube-o no primeiro abraço de uma mulher num dos parques centrais da cidade e no sorriso da funcionária do Ministério do Interior que me ajudou a preencher os papéis da imigração.
Quando estamos sozinhos cada gesto de bondade é uma pepita de ouro que encontramos e, por pequeno que seja, nunca mas nos esquecemos dele.
Penso nisto de manhã, enquanto me desvio de mais um caracol ao qual desejo sorte com os passos dos elefantes que vêm atrás de mim. Somos todos tão pequenos e é tão fácil sermos pisados que, às tantas, devíamos perceber que é isso que nos une a todos.

Obs: só tenho net no telefone e por isso não tenho escrito neste blogue. Se dei erros, peço desculpa. Não me é fácil teclar. Vou tentar ser mais assíduo.