Nunca fui bom em nada. Quando era miúdo não jogava bem futebol nem era bom aluno na escola. Pior do que isso: também não era mau aluno. Para se ter algum sucesso quando se é miúdo tem que se ser bom ou mau aluno. Eu era daqueles em que ninguém reparava, mediano e silencioso quanto baste para ser sempre o último a integrar um grupo daqueles que às vezes se formam para fazer trabalhos estúpidos de grupo, que não são muito mais do que colar coisas estúpidas em cartolinas grandes e coloridas. E eu era sempre o último porque ninguém me escolhia. Era sempre a professora que, quando dava por mim num canto da sala, me integrava à força. De facto, a única coisa que me lembro de gostar na escola primária foi de ter uma namorada chamada Helena com quem brincava no baloiço do parque municipal de Aveiro. Os outros chamavam-nos 'namorados' como se isso fosse mau e atiravam-nos pedras.
A adolescência, a que eu ainda chamo a terrível fase Clearasil, não melhorou nada. Para além de continuar a jogar mal futebol e não ser bom nem mau na escola, a coisa agravou-se porque as exigências por cumprir passaram a ser mais. Com dezasseis anos veio o trauma das sapatilhas de marca que eu nunca tinha apesar de todos terem, as borbulhas e pontos negros, os penteados que eu não era capaz de fazer e, claro, a Samantha Fox. Nunca tive umas sapatilhas que não fossem Sanjo (e que saudades tenho eu agora delas) ou Chute, nunca tive coragem de comprar Clearasil (que era um creminho de sucesso entre a adolescência portuguesa) e nunca admiti o meu fetiche pelas mamas enormes da Samantha Fox. Claro que, se em miúdo a única vantagem era eu ser o único a ter namorada, essa vantagem desvaneceu-se na adolescência porque passei a ser o único que não tinha. É que entretanto, todos os gajos que me atiravam pedras na escola primária por eu ter namorada, descobriram para que é que servia a pila.
Tudo podia ter-se resolvido na minha passagem para jovem adulto, até porque aí já não interessava muito jogar bem futebol nem ser bom ou mau aluno. Além disso, eu já usava botas ou sapatos e as borbulhas tinham desaparecido. Mesmo a fixação pela Samatha Fox diluíra-se lentamente nos sonhos húmidos de toda a adolescência. Estava tudo pronto para, à primeira oportunidade, arranjar uma namorada e ter uma vida mais ou menos normal. E foi esse o problema, eu pensava que ao ter uma namorada se conseguia ter uma vida normal mas não, ao ter uma namorada quando se é jovem adulto, a vida é tudo menos normal. Da fase Clearasil passei à fase 'oh caraças, ela amuou outra vez'. Nunca mais tive umas férias sem amuos por causa do lugar onde a tenda ficou instalada; nunca mais consegui ir ao cinema sem discutir meia hora a escolha do filme e, mesmo assim, ela amuar porque afinal era outro que devíamos ter ido ver; nunca mais consegui ir ao restaurante sem aturar um amuo porque comi uma sobremesa e ela, porque achava sempre que estava com uns quilinhos a mais, não podia comer açúcar; nem nunca mais consegui superar o nervosismo por ter que adivinhar se ela tinha ido ou não ao cabeleireiro, senão era porque não reparava nela e era um egoísta de todo o tamanho.
Menos mal, em conversas com amigos percebi que a fase 'oh caraças, ela amuou outra vez' era mais ou menos comum a todos. Convenci-me que a vida era assim e tentei ser feliz com esses amuos. Bastou-me treinar o suficiente para rir para dentro e não para fora com alguns deles. Foi aí que se deu o terramoto. Um gajo passa anos a habituar-se a viver com uma mulher, abdicando dos filmes preferidos, sobremesas preferidas, restaurantes preferidos, e mais, a dizer todos os domingos de manhã: "bom dia, estás diferente... foste ao cabeleireiro?" para o caso de ela ter ido mesmo, e ela diz-nos de repente que a vida toda dela foi uma merda por nossa causa.
Tudo bem, se foi por nossa causa, então bazamos. Não faz mal...