2.26.2019

pensamentos catatónicos (349)

O rapaz caiu no meio da estrada. Estatelou-se no alcatrão ao mesmo tempo que gritou. Não percebi porquê. À partida não havia nada que o pudesse fazer cair, mas quando olhei já ele estava no chão, já a mãe corria na sua direcção deixando um saco de compras pelo caminho, já um carro travava a fundo para não o atropelar.
Foram dois segundos em que nada mais interessou para aquela gente. Só a vida.
Eu fechei os olhos para não ver, mas ainda vi mais. O carro não conseguiu parar a tempo e passou por cima do jovem do corpo do rapaz, que passou a ser cadáver. A mãe ajoelhou-se e abraçou a morte em silêncio. O condutor deixou-se estar com as mãos no volante e o olhar no infinito, em estado de choque.
Depois abri os olhos e nada disso tinha acontecido. O rapaz levantava-se devagar e sacudia a roupa com as próprias mãos, a mãe apanhava as compras do chão e o automóvel já passara por mim e desaparecera na primeira curva.
Fiquei parado por um momento. Os dois passaram por mim e pude reparar na força com que as mãos de mãe e filho se agarravam. Era a força de quem precisa de agarrar a vida a si mesmo a acabou de perceber que em alguns momentos não há força que chegue para o fazer.
Continuei a caminhar. Quando te vir de novo vou-te dar a mão com a mesma força, pensei. Só para que entre nós nada morra hoje.

2.20.2019

conversa 2197

Ela - Gostas das novas cortinas da sala?
Eu - Quais cortinas novas da sala?
Ela - As da janela, obviamente. Troquei-as a semana passada. As anteriores eram pretas e deixavam entrar pouca luz...
Eu - Ah! Gosto, gosto...
Ela - A sério que ainda não tinhas reparado?
Eu - Para ser sincero, não.
Ela -É bom saber que posso fazer o quiser em casa que tu nunca vais ficar chateado.

2.18.2019

coisas que fascinam (216)

O carrinho do supermercado está cheio de caixas de bolachas, algumas de limão e outras de laranja. Também tem algumas cotonetes de plástico e latas de tomate. Acabou de parar perto de mim, conduzido por uma mulher que analisa uma lista de compras num pequeno bloco de papel. Os nossos olhares encontram-se e prendem-se um ao outro por alguns segundos. O observado sou eu, que ela usa um véu islâmico e não posso ver mais do que isso mesmo, os olhos dela.
Ou posso. Na entrada reparei naquelas bolachas em promoção. Meia libra cada uma depois de cinquenta por cento de desconto. Também peguei numa caixa, no meu caso de limão, que está agora num cesto na minha mão esquerda junta com duas garrafas de vinho rosé português, um pacote de queijo fatiado e algumas bananas. Ela fixa as minhas compras e eu as dela.
Quero comprar fiambre, mas o carrinho dela não me permite chegar às embalagens que eu costumo consumir. Já lhe pedi em inglês para se afastar um pouco, mas ela não se moveu nem um milímetro.

- Could you, please, step aside so I can have a pack of ham?

Está ali parada a olhar para mim e a sorrir com a minha ginástica para chegar ao fiambre.Canso-me da situação e peço novamente, desta vez em português.

- Por favor, afaste-se. Preciso chegar ao fiambre.

Ela afasta-se, sorrindo ainda mais.

Lá fora estão seis graus, uma temperatura bastante amena para esta altura do ano mas, ainda assim, a precisar de agasalho. Ponho o meu saco de compras no chão para poder apertar o casaco e vejo-a novamente. Vai no banco de trás de um táxi e diz-me adeus com uma das mãos.
Quem é aquela mulher e como é que, pelo olhar, eu concluí que ela estava a sorrir?

2.15.2019

respostas a perguntas inexistentes (380)

Sempre tive este prazer com o café. Antes de o beber abraço a caneca fumegante com as duas mãos e aqueço-as. Pensando bem, talvez seja por isso que me habituei a gostar de países frios, pelo prazer de me aquecer.
Ela está a espreitar pela janela da cozinha na mesma posição de sempre. Tem os olhos grandes e abertos, que praticamente não piscam. Seja lá o que for que está ver não cabe em olhos semicerrados. Tenho até a sensação que olha sempre para o mesmo ponto lá fora, provavelmente a árvore do jardim.
Dou o primeiro gole e aqueço mais as mãos.

- É o nosso jardim. Está sempre igual. - digo-lhe.

Ela não desvia o olhar nem o pensamento.

- Não, não está. A árvore já foi verde, já foi vermelha e agora não tem folhas. Tudo mudou.

É então que me apercebo que ela não está a olhar para o espaço, mas sim para o tempo. É claro que não podia caber em olhos semicerrados. O tempo só entra em olhos bem abertos ou bem fechados.

- Queres que te faça um café? - Pergunto.

Alguns pássaros pousam na relva. Vêm comer o resto da comida que quase todos os dias damos a alguns gatos vadios que nos costumam visitar pela manhã. Ela não desvia  o olhar.

- Não, já sabes que não gosto do teu café instantâneo mas, por favor, nunca pares de me perguntar. - Sorri.

Dou outro gole. Fecho os olhos para procurar nesse tempo a improbabilidade que nos permitiu partilhar esta manhã. Não a encontro, mas sei que está lá e é tão esguia como a nossa história. Talvez tudo deva ser apenas exactamente assim: um mero acaso.

Ela sai e afasta-se. Eu termino o café. As minhas mãos estão quentes. É por isso que gosto de países frios.

2.14.2019

A memória é uma nuvem

A memória é uma nuvem. Sei o que digo por causa dos últimos três anos da minha vida, que se condensaram numa forma indefinida no céu. É como se às vezes olhasse para o meu passado da mesma forma que olho para o céu num dia qualquer. Sei que está tudo ali, mas sou incapaz de distinguir seja o que for.
Nessa nuvem sei que estão os dois países onde vivi. Sei que estão dois ou três empregos, algumas histórias improváveis, dias difíceis de solidão e de saudade, novos amigos e um Amor. Só um, como devem ser os Amores. No entanto, faltam-me normalmente os momentos. Quero lembrar-me de um beijo, de uma mão dada, de uma lágrima ou de um sorriso e não consigo. Cada dia da minha vida é apenas uma partícula de água suspensa entre tantas outras que, assim de longe, parecem todas iguais.
E foi assim que aprendi uma coisa nova. Não é importante lembrarmo-nos constantemente e ao detalhe de cada acaso importante da nossa vida. Quando precisamos, esses momentos vêm ter connosco. Desprendem-se do céu e chovem sobre nós. É bom.
Ao meu lado,  num velho pub inglês, um homem sem dentes ri-se sozinho enquanto bebe lentamente mais uma pint duma cerveja cuja marca desconheço. É um riso que me é familiar, essencialmente porque contém um choro escondido. Já me ri assim, a engolir a tristeza e a cuspir sabe-se lá o quê. Uma das vezes que o fiz estava num bar em Sófia e não me queria apaixonar. Fui bebendo, como se a bebida pudesse fazer alguma coisa por mim. Depois assumi a derrota e levantei-me, deixei algum dinheiro em cima da mesa e saí para a rua disposto ao que fosse. Eventualmente até a gostar de alguém outra vez.
Na noite anterior a S tinha-me tocado com os dedos dos pés dela nos meus, no meu corpo quase tão cansado como a minha solidão. E então veio a voz dela tapar-me como se fosse um lençol usado. Disse-me que estava tudo bem, mesmo que eu não quisesse voltar. Se o quisesse, melhor.
As ruas da capital búlgara mastigavam lentamente a luz do fim da tarde. As pessoas pareciam caminhar com pressa mas sem destino e os velhos eléctricos do tempo do comunismo transportavam-nas sem razão aparente. Então entrei num deles, cheio de passageiros embrulhados em silêncio e de mais um homem a rir-se para não chorar.
Voltei nesse instante.