12.28.2012

pensamentos catatónicos (290)

preguiça

Sempre imaginei que as tardes de preguiça são o melhor para quem está apaixonado. Passar o tempo todo a deambular pela casa, acumulando louça suja na banca da cozinha, vendo filmes de histórias fáceis, lendo livros aos bocados e espreguiçando-me de tempos a tempos, ora na cama ora no sofá. A preguiça é excelente, mas regada com beijos espaçados é ainda melhor.
Assim, quando me apaixonei pela Cristina esperei ansiosamente pela primeira tarde de preguiça a dois. Lembro-me que acordei por volta do meio-dia com uma vontade enorme de sentir o aroma dum café quente. Ela já não estava na cama. Deambulava pela sala com ar de poucos amigos e, mal me viu entrar na cozinha, perguntou-me se eu ia passar o dia naquela ronha. Estava impaciente.
Uma semana depois já não estávamos juntos. Não se pode Amar quem não partilha a preguiça.

conversa 1979

Ela - Tenho que me deixar de bananas.
Eu - Vais deixar o teu namorado?
Ela - Credo! Achas que o meu namorado é um banana?
Eu - Não é bem isso. Desculpa, saiu-me.
Ela - Estava a falar do fruto chamado banana.
Eu - Ah! E porque é que tens que deixar as bananas?
Ela - Por causa dos meus intestinos...
Eu (silêncio)
Ela - Que cara é essa?!
Eu - Preferia não saber isso...
Ela - Não saber o quê?
Eu - Que tens que te deixar de bananas por causa dos intestinos...
Ela - Mas o que é que raio estás a pensar? Não sabes que as bananas prendem os intestinos?! Estou a falar de prisão de ventre, homem.
Eu - Ah!
Ela - Ah?!?! Mas o que é que tu estavas a pensar?
Eu - Em nada de especial. Mudemos de assunto.
Ela - Temos que voltar a essa de achares que o meu namorado é um banana.
Eu - Não acho nada disso. Foi apenas a primeira hipótese que pus, tu achares que ele é um banana. Eu cá não acho nada. Nem o conheço bem...
Ela - Não acredito em ti.

12.26.2012

conversa 1978

Ela - Tenho alguns amigos que fazem uma festa sempre que me vêem, a não ser que estejam com as respectivas namoradas ou mulheres. Aí, cumprimentam-me discretamente ou nem reparam em mim. Nunca percebi porque é que há tantos homens assim...
Eu - Não há muitos, de certeza. Tu é que deves ter amigos fora do normal.
Ela - É o que eu estou a dizer. Os homens são todos igualmente fora do normal.

outra pessoa acampada na nossa cabeça

O jornal Público traz hoje uma dissecação do Amor, feita pela antropóloga Helen Fischer. O Amor é uma intrusão, diz ela, explicando que "um grupo de neurónios localizados no mesencéfalo começa a produzir dopamina que se espalha a muitas partes do cérebro e nos dá aquela focalização, energia, possessividade, desejo, obsessão e motivação para ir ter com a pessoa". A intrusão dá-se porque, a a partir do momento que isto acontece, a outra pessoa está acampada na nossa cabeça.
Talvez a maior parte das pessoas não simpatize muita com esta fria interpretação científica do que é o calor do Amor, mas a própria Helen passa da sua observação cientifica para uma sua interpretação pessoal, pois também ela sabe o que é estar apaixonada. Dos processos químicos resulta que a outra pessoa acampa na nossa cabeça. Pois é.

12.24.2012

conversa 1977

(em minha casa)

Eu - Bebes um uísque ou um porto?
Ela - Não, obrigado. Não me posso meter no álcool já ao almoço...
Eu - Tudo bem. Era só por ser Natal.
Ela - Por falar nisso, qual é teu maior desejo para 2013?
Eu - Arranjar emprego.
Ela - O meu também. Gostava de arranjar emprego.
Eu - Estamos na mesma...
Ela - E já agora também queria que o meu marido arranjasse emprego. E o meu irmão... e o meu filho...
Eu - Eu também já perdi a conta a familiares e amigos desempregados.
Ela - Afinal sempre aceito o tal uísque.
Eu (dando-lhe um copo) - Bem... feliz Natal.
Ela - Feliz Natal.

12.23.2012

conversa 1976

Ela - Agora no Natal é uma confusão ser casada.
Eu - Porquê?
Ela - O meu marido quer que passemos a noite de Natal na casa da mãe dele, eu quero passar na casa dos meus pais... enfim, é sempre a mesma luta todos os anos.
Eu - Porque é que não alternam de ano em ano? Um ano na casa dos teus pais, outro ano na casa da mãe dele...
Ela - Ele já propôs isso, mas eu não posso aceitar.
Eu - Porquê?
Ela - Porque quero todos os anos na casa dos meus pais e depois, o almoço do dia seguinte, já pode ser na casa do pai dele.
Eu - Ah! Pronto... tudo bem.
Ela - Tudo bem?!
Eu - Sim, para mim está tudo bem. Não tenho nada a ver com isso...
Ela - Pareces o meu marido. Também não discute, abana os ombros e aceita as coisas, mas depois amua e eu é que tenho que o aturar...

12.21.2012

a segunda impressão

De vez em quando acontece interessar-me muito por uma mulher. Utilizo o verbo interessar sempre que conheço alguém por quem não me apaixono de maneira nenhuma mas por quem, de forma muito regular, me vou imaginando apaixonado. Normalmente isto acontece-me por um facto muito concreto, uma característica específica da mulher que pode ser física ou psicológica, e adoro que me aconteça porque, na verdade, é muito confortável estar interessado por alguém sem qualquer paixão envolvida.
Apaixonado, perco muitas vezes o discernimento. O coração bate mais depressa e os pensamentos tropeçam nas palavras que me vão saindo da boca. Há uma sensação de euforia que se vai misturando com a de frustração, o que pode dar um cocktail emocional explosivo. Assim, apenas interessado, consigo apreciar a coisa com a Razão e, em abono da verdade, adoro isso. Adoro isso, claro, quando já estou apaixonado de forma correspondida e por isso não tenho a necessidade de me apaixonar mais.
Uma vez interessei-me por uma mulher sem estar apaixonado por ninguém. Vivia sozinho e, para ser muito sincero, acho que foi a única vez que me aconteceu. Foi estranho porque o que me interessou nela foi perceber que era uma mulher desprendida de tudo. Conheci-a numa festa em casa de uns amigos comuns, enquanto abria o frigorífico para tirar uma bebida e, como ela estava logo atrás de mim, lhe perguntei se queria cerveja ou vinho branco.

- Qualquer coisa! - disse estendendo-me um copo vazio de plástico.

Servi vinho branco aos dois e passámos o resto da noite a conversar numa enorme varanda que a casa tinha. Para além de desprendida, ela tinha uma surpreendente resistência ao álcool, de tal forma que bebemos uma garrafa de vinho cada um e ela, pelo menos aparentemente, ficou na mesma. Enquanto bebíamos e conversávamos, reparei que ela conhecia quase toda a gente naquela festa, onde deviam estar umas cinquenta pessoas, enquanto eu conhecia apenas três ou quatro.
Foi esse facto que fez com que ficássemos amigos. Quando lhe disse que ela era muito popular, ela respondeu que tinha tantos amigos que apenas costumava ficar sozinha na noite de Natal, o que achava óptimo. Ora, por essa altura também eu passava todas as noites de Natal sozinho, normalmente a jogar computador até de manhã.
Na noite de Natal, todas os nossos amigos estão com as suas famílias. Eu e ela, por assim dizer, estávamos divorciados e não tínhamos família para isso, por isso acabámos por combinar passar juntos a noite de vinte e quatro de Dezembro, que seria daí a três ou quatro dias. Passei assim, nesse ano, o Natal com uma mulher que mal conhecia.
Para além dum bacalhau assado com batatas e couves cozidas, enchi o frigorífico de vinho branco e esperei que ela chegasse para jantar, o que aconteceu à hora prevista. Abri a porta, ela entrou, cumprimentou-me e entregou-me uma prenda que me fez sentir um bocado envergonhado, pois eu não lhe tinha comprado nada.  Era um moleskine.
Durante o jantar reparei em coisas dela em que não tinha reparado na festa. Por exemplo, que tinha um sinal no queixo e que uma das suas orelhas estava rasgada na parte inferior, como se alguém tivesse ali chegado e cortado a pele como se fosse uma folha de papel. Era magra e bastante bonita, de cabelos curtos muito pretos que contrastavam com a pele muito branca.
Quando acabámos a sobremesa ela fez-me um pedido muito estranho. Pediu-me que lhe indicasse uma cama, pois estava muito cansada e precisava dormir, e que escrevesse no moleskine, durante o sono, tudo o que pensava dela. Obedeci sem perguntar porquê.
Quando ela acordou já eu estava com o livro fechado e a caneta no bolso, bebericando um pequeno copo de uísque. Ela sorriu-me.

- Escreveste alguma coisa?
- Sim... como te conheço mal, chamei ao texto "a segunda impressão". A primeira impressão foi a que tive quando te conheci. Queres ler?
- Não! - respondeu ela sem hesitar.
- Não?!
- Não. Pedi-te que escrevesses sobre mim para que um dia mais tarde haja a possibilidade de leres isso e de te lembrares desta noite. Convenhamos que passar o Natal com uma mulher acabada de conhecer é estranho, e é essa a minha prenda para ti: uma memória única. Nunca fizeste isso com mais ninguém, pois não?

Arrumei o moleskine num armário, entre vários livros esquecidos e confortados pelo pó. Hoje, alguns anos depois, abri-o de novo pela primeira vez. Li o texto e regressei a essa noite, que foi tão estranha quanto agradável. Depois tornei a fechá-lo e coloquei-o no mesmo sítio. Foi a minha prenda de Natal, essa memória. A segunda impressão.

12.20.2012

conversa 1975

Ela - Tens tantos filmes... não me emprestas um para eu ver hoje à noite.
Eu - Empresto. Qual é que queres?
Ela - Nem sei...
Eu - Queres um que dê para rir, um que dê para assustar ou um que dê para adormecer?
Ela - Chorar, quero um que dê para chorar.

12.19.2012

maria

É verdade que o menino Jesus cresceu e fez montes de milagres. Multiplicou pães e vinho, curou cegos e paralíticos. Depois disso, só o Pai Natal é que o conseguiu derrotar. Para além de ter renas voadoras, pôs milhões de pessoas, um pouco por todo o mundo, a gastar dinheiro que não têm para comprar coisas que não precisam, e bate-o aos pontos em popularidade.
Do milagre da Maria, mãe de Jesus, é que pouco se fala. Quer dizer, fala-se, mas ainda assim é um milagre secundário comparado com os do seu filho ou com os do gordo barbudo. A mulher engravidou mantendo-se virgem o que, convenhamos, é ainda mais incrível do que renas a voar, paralíticos a andar ou cegos a ver. Da multiplicação do pão e do vinho já não digo nada, porque quando a coisa mete vinho pelo meio é comum começar a ver a dobrar.
Serve este texto para dizer que eu considero que Maria conseguiu, de facto, um milagre enorme. Não através da acção do Espírito Santo no seu ventre, mas sim através da sua inteligência. Não é preciso muito para ver o que acontece a uma mulher adultera, ainda hoje, em alguns grupos sociais com maior fervor monoteísta. Na melhor das hipóteses, sobrevive depois de levar uma valente sova, mas o mais normal é acabar alguns palmos debaixo da terra.
Foi sempre assim que as coisas acabaram para as mulheres em regimes onde o poder político e a religião se confundem. Olhemos para a Inquisição ou para a recente introdução da Sharia na Nigéria. As mulheres saem sempre a perder, a não ser que se dê um milagre. Com a Maria deu, porque ela o soube criar.
Boas festas!

conversa 1974

- Quem é que acabou com quem?

A Madalena perguntou-me isto e eu não lhe respondi. Não que não soubesse a resposta, mas hesitei em dizê-la nem sei bem porquê. Tinha-me encontrado com ela num café da cidade para lhe devolver uns livros e receber de volta uns cd's emprestados e, assim como que não quer a coisa, disse-lhe que dois amigos comuns tinham entrado no processo de divórcio. Perguntou imediatamente quem tinha acabado com quem.
Eu tinha pedido um donut e uma bica. Não que eu costume comer donuts (na verdade, foi a primeira vez na vida que comi um donut comprado num café e não num supermercado), mas naquele momento, assim que os vi em exposição, fiquei com uma vontade inexplicável de dar uma dentada num. Ela, como se quisesse sustentar o seu aspecto frágil, tinha apenas um chá verde à frente.

- Nem sei bem. - respondi.  - Na verdade acho que isso é indiferente.

Sempre achei fantástica a forma meticulosa como a Madalena bebe chá. Consegue realizar todas as operações sem verter um único pingo, como se aquela operação de levantar a tampa do bule metálico e encher a chávena fosse uma coisa de todos os dias. Para mim, pelo menos, não é. Verto sempre uma parte significativa da infusão. Acho mesmo que é por isso que evito beber chá nos cafés. Ela deu um gole e olhou-me durante alguns segundos.

- Não é nada indiferente. - disse.
- Claro que é! - respondi. - Estão a divorciar-se um do outro, por isso ambos estão tristes. 

Ela tornou a dar um gole, desta vez mais curto. Pousou a chávena e sorriu-me complacente. Detesto quando ela me sorri assim. Fica ainda mais bonita do que já é normalmente, mas já sei que a seguir me vai explicar qualquer coisa como se estivesse a falar com um miúdo de dez anos. 

- Ambos estão tristes, é verdade, mas há um que está triste e a olhar para o futuro, enquanto outro está a olhar para o passado. É essa a diferença entre quem põe fim a uma relação e quem não põe, mesmo que ambos já se sentissem mal há algum tempo...
- Passado?! Futuro?! - Perguntei, começando a dar algum interesse à conversa.
- Sim. Quem tem a coragem de pôr fim a uma relação é porque está a olhar com algum optimismo para o futuro. Quer mudar de vida porque não se sente bem. Por outro lado, aquele que é rejeitado fica a olhar para o passado e a tentar descobrir o que é que correu mal. É um processo mais doloroso, normalmente.

Comi o donut todo antes de regressar às palavras. Sabia exactamente o que ela me ia responder quando eu lhe dissesse que tinha sido a mulher a pôr fim à relação, e que o homem estava em casa transformado num trapo velho. Ia fazer conjecturas de género, demonstrando por a mais b que a mulher é sempre quem toma a iniciativa precisamente porque é a mais inconformada. É ela quem pega o destino pelos cornos e o muda consoante a sua vontade. Sabia que ela o ia afirmar e dar-me a mim mesmo, e a ela, como exemplos.

- Foi ela que acabou com ele. - confessei.

Ela calou-se. Tornou a fazer aquele sorriso que eu Amo e detesto. 

- Gostei muito da tua música. - disse. - Gostaste dos livros?

Abanei a cabeça afirmativamente. Vi-a levantar-se, despedir-se de mim com um aperto de mão, deixar duas moedas em cima da mesa para pagar o chá e ser engolida pelo mundo lá fora. Também a admiro por isso, por fazer silêncio quando eu já sei o que ela vai dizer.

12.18.2012

conversa 1973

(em minha casa)

Ela - Tu não ligas o televisor?
Eu - Não tenho a antena ligada. Só vejo filmes em dvd...
Ela - Mas não gostas mesmo de televisão?
Eu - Há canais que gostava de ter, mas é muito caro. Mas quando estou na casa da minha namorada gosto de ver algumas coisas... ainda ontem vi um filme de boches.
Ela - Também só pensas em sexo...
Eu - Boches! Eu disse boches.
Ela - Boches?!
Eu - Sim. Não sabes o que é um boche?
Ela - Se não for sexo oral com papas de Nestum na boca, não sei.
Eu - Um boche é um militar alemão nazi... estava a falar de um documentário da segunda guerra mundial.
Ela - Ah! Nunca me passou pela cabeça que um nazi pudesse ter um nome tão... sei lá... tão apetitoso.

pensamentos catatónicos (289)

Já todos nós, em pelo menos um determinado momento da nossa vida, nos apercebemos da importância que pode ter o canto do olho. O canto do olho assume uma importância maior quando tudo o resto se torna desinteressante, mas também quando nele surge um ponto de interesse concreto. É essa a armadilha do canto do olho.
Pelo canto do olho podemos ler as notícias do jornal do passageiro que vai ao nosso lado no autocarro, podemos copiar num teste de condução, podemos perceber que alguém repete a dose num jantar de amigos. Podemos até dar conta de que alguém está bêbado num bar ou simplesmente a olhar para nós. Aquilo que nunca fazemos pelo canto do olho, com toda a certeza, é contemplar.
Contemplar exige a abertura total da íris e da sua comunicação com o exterior ou, pelo contrário, que se fechem os olhos. É que fechar os olhos pode ajudar-nos a ver para dentro. François Guizot, politico e historiador francês, dizia que "a consciência é a faculdade que o homem tem de contemplar quanto se passa no seu íntimo, assistir à própria existência. Ser, por assim dizer, espectador de si próprio.".
O canto do olho não é senão uma forma de intrujice. Uma forma de, eventualmente, nos enganarmos numa paixão. Pelo canto do olho descontextualizamos o que queremos ver do que vemos realmente, e o que vemos realmente do mundo inteiro. O canto do olho é um lugar fechado, para fora e para dentro de nós.
Estava há bocado numa estação de metro da cidade do Porto, à espera de vir a apanhar um comboio em direcção a Aveiro. Estou, por vários motivos, um pouco triste, e apercebi-me de que estava a olhar para tudo e para todos pelo canto do olho. Agora vou fechar os olhos.

12.17.2012

conversa 1972

-Lembras-te de mim? - Perguntou-me ela.

Lembrava mas, tal como ela, também eu tinha dúvidas que ela se lembrasse de mim. As memórias são apenas a paisagem dum caminho estreito, que percorremos sós. Assim, por um momento, fiquei a olhar para o meu passado sem lhe ver o horizonte.

- Claro que lembro. Que patetice, então não me havia de lembrar? - Mas não era uma patetice.

Ela calou-se e fitou-me nos olhos, como se procurasse alguma coisa escondida em mim. Acho que sempre que perdemos alguma coisa noutra pessoa, os olhos são o primeiro sítio onde a vamos procurar. Deixei-me estar quieto, a ver o primeiro sinal de desilusão no seu rosto. O que quer que fosse que ela queria ver, não viu. Depois veio o silêncio.

- E então, que fazes? - Perguntei.
- Estou desempregada. Trabalhei muitos anos em Setúbal, em várias coisas...
- Eu também estou desempregado. Trabalhei sempre cá por cima, com alguns intervalos para trabalhos no estrangeiro...

Mas as palavras iam morrendo pouco a pouco, como que intoxicadas pelo desinteresse da banalidade. Temos os dois mais de quarenta anos e não nos víamos desde a adolescência, numa noite qualquer de Verão. Na verdade, foi essa a única noite em que a vi, e só me lembro que ficámos para trás de um grupo de vários amigos comuns que iam a uma discoteca qualquer. Passámos horas numa praia qualquer do Alentejo, onde fizemos da areia a nossa cama e do som do mar a nossa conversa.
Ela tornou a fitar-me nos olhos.

- Apaixonaste-te muitas vezes, desde então?
- Duas ou três. - respondi.
- Duas ou três?! Tens sorte.
- Sorte?! Porquê?!
- Eu já lhe perdi a conta...

12.14.2012

respostas a perguntas inexistentes (240)

eu tenho dois amores, dizia ele

No ensino básico, em Matemática, ensinaram-me que um mais um é igual a dois. Deram-me como exemplo qualquer coisa tão estúpida como uma peça de fruta, creio que uma banana da Madeira, e explicaram-me que uma banana mais uma banana é igual a duas bananas. Erro crasso, passei a acreditar piamente nisso.
A Matemática, ou pelo menos a Álgebra, tem esta mania estúpida de escrever a vida sem a perceber. Até pode ser que uma banana mais uma banana seja igual a duas bananas, mas certamente que uma gota de água da chuva mais outra gota de água da chuva não é igual a duas gotas de água da chuva. Basta ver chover para perceber que o resultado é uma pequena poça de água.
Para piorar a coisa, o Marco Paulo veio cantar aos portugueses, creio que no princípio dos anos oitenta, que tinha dois Amores. Quem o ouvia dava conta de uma morena e de uma loira, deduzindo assim que um Amor mais outro Amor é igual a dois Amores. Pura mentira. Um Amor mais outro Amor é quase sempre igual a menos do que dois Amores. É uma questão de tempo. Mas a equação da soma ou subtracção do Amor é inócua de sentido, porque nela faltam sempre os factores que ninguém consegue entender.
Acredito que o Amor elevado à sua máxima potência é sempre igual a um. A partir do um, quanto mais se soma, menos se tem. Mesmo que a coisa não seja óbvia à primeira. O um é um número difícil de entender neste contexto, porque por ser o primeiro dos números inteiros nos parece sempre pouco. Um comparado com cem, por exemplo, assemelha-se a uma insignificância. No entanto, quando de Amor estamos a zero, buscamos o um como se fosse tudo. E é mesmo. Só que ninguém nos ensina isso na escola.

12.13.2012

está uma noite óptima para nos pormos a caminho de lugar nenhum.

Não sei bem o que é me levou a dizer-lhe aquilo. Se acreditar que as coisas podem sair do nada, então diria que foi isso mesmo que aconteceu: saiu-me do nada. De qualquer maneira não acredito nisso, por isso limito-me a assumir que não sei porque é que aquelas palavras me saíram da boca.
Estávamos de férias num parque de campismo há alguns dias, algures no norte do país, ambos hesitantes em começar um romance. Era de noite. Por um lado queríamos dormir juntos, por outro tínhamos medo de o fazer. Acho que é sempre assim quando se  gosta muito de alguém mas não se está apaixonado. Perguntei-me muitas vezes sobre o que devia fazer naqueles momentos em que nos abraçávamos ou encostávamos a cabeça um no outro. E agora? Beijo-a? Digo-lhe que a Amo? Nunca me decidi por nada, a não ser por lhe dizer a coisa mais absurda do mundo. Do nada.

- Está uma noite óptima para nos pormos a caminho de lugar nenhum.

Ela olhou para mim e, ao contrário do que eu tinha imaginado, concordou com a minha ideia nonsense. Obrigou-me a desmontar a tenda, a arrumar a mochila e, depois de acordar um homem que dormia ao balcão da recepção, acabámos por nos pôr a caminho através das estradas sinuosas do distrito de Bragança, onde tínhamos chegado de autocarro e à boleia de um amigo.
Caminhámos a noite toda numa conversa amena, até a Lua se cansar de nos ouvir e se ir embora sem dizer adeus. Lembro-me que acabámos por montar a tenda junto a uma curva onde havia uma fonte e, a alguns metros, uma árvore com sombra suficiente para não morrermos com aquele calor abrasador próprio do Verão transmontano. A minha tenda montava-se em três segundos. Bastava atirá-la ao ar e já estava. Foi o que fizemos e, dado o cansaço, adormecemos imediatamente os dois.
Não me costumo lembrar dos meus sonhos, mas sei que nessa tarde sonhei com ela e com as histórias que ela tinha acabado de me contar nessa viagem a pé pela Via Láctea. Era uma história qualquer sem grande romance, mas que eu tinha ouvido com a maior das atenções. Era sobre coelhos.
Ela gostava muito de animais, particularmente de coelhos. Tanto, que fazia colecção de coelhos de toda a espécie e feitio: de peluche, de louça, de plástico e até um de arame, feito por um artesão boliviano qualquer com quem tinha namorado no passado. Quando o tal artesão voltou para a Bolívia ainda estavam apaixonados,. Ele prometeu-lhe fazer um coelho tão grande quando lá chegasse, que ela havia de o ver deste lado do Atlântico. Durante muito tempo, apesar de ela não acreditar que isso fosse possível, ia à janela todos os dias para procurar o tal coelho gigante.
Pois bem, eu sonhei que tinha construído esse coelho. Era tão grande que, quando estávamos em cima dele, podíamos praticamente tocar nas nuvens. Acho que acordei no momento em que lhe perguntei se ainda se lembrava do boliviano e ela me respondeu que tinha esperança que ele, da janela de casa dele, visse aquela minha construção e se lembrasse dela.
Quando lhe contei o sonho, que ao fim e ao cabo não passava dum sonho estúpido, ela riu-se e deu-me um beijo furtivo nos lábios. Depois tirou duas maçãs dum saco de plástico, limpou-as à própria camisola e deu-me uma enquanto trincou a outra de forma a prendê-la na boca.
Esse foi o único beijo que demos, mas a verdade é que sinto que gostei realmente dela, sem nunca me ter apaixonado. É uma sensação difícil de explicar porque nunca foi clara para mim próprio. Para ela, aliás, também não. De tal forma que quando acabámos por ter uma conversa séria sobre o assunto, sobre a nossa proximidade tão pouco consumada fisicamente, ela respondeu-me que o melhor, quando estivéssemos a sentir que íamos passar uma certa barreira, era começarmos a caminhar para lugar nenhum.
Percebi-a imediatamente e, apesar da minha ideia ter vindo do nada, acabou por encontrar o seu próprio contexto.

12.12.2012

conversa 1971

Ela - Em doze anos de casamento, o meu marido ainda não percebeu como é que sou na cama.
Eu - Já lho disseste?
Ela - Não. Doze anos deviam dar para ele perceber ou adivinhar.
Eu - Isso de que os companheiros sexuais têm que adivinhar os desejos dos outros é um mito urbano. O melhor é dizeres-lhe.
Ela - Dizer-lhe, dizer-lhe... não posso fazer isso.
Eu - Porquê?
Ela - Agora é tarde demais.
Eu - Tarde demais?
Ela - Sim, se eu lhe dissesse agora algumas coisas, ele ia perguntar porque é que eu não lhe disse antes.

12.11.2012

conversa 1970

(ao telefone)

Eu - Até que enfim que te apanho. Preciso falar contigo.
Ela - Apanhaste-me na casa de banho.
Eu - Okay, desculpa. Ligo-te daqui a cinco minutos.
Ela - Não, não. Diz agora, que é o momento certo.
Eu - Não estás na casa de banho?
Ela - Estou. É na casa de banho que aproveito para fazer os meus telefonemas todos, ler revistas e livros, etc. Além disso, não saio daqui a cinco minutos, mas sim daqui a uma hora, mais ou menos.

12.10.2012

coisas que fascinam (156)

Qualquer dia repito...

Passei este fim de semana fechado em casa. Desde sexta-feira à noite até segunda de manhã, apenas saí uma vez para uma rápida refeição de fast food. De resto, não falei com ninguém a não ser pelo telefone. Em pouco mais de sessenta horas entre paredes vi oito filmes (documentários e ficção), li dois romances, ouvi alguns (não sei quantos) discos de música e joguei computador. Deitei-me duas vezes às seis da manhã e levantei-me por volta do meio-dia.
A minha alimentação, para além duma refeição pobre no Burguer King que não tenciono repetir nos próximos anos, passou por duas garrafas de vinho, umas fatias de presunto comidas directamente da embalagem, algumas fatias de queijo, pão, quatro ou cinco dióspiros, mousse de chocolate caseira e uma alface. Na única vez que cozinhei fiz arroz de peixe com tomate e coentros. Também bebi dois cafés sem açúcar e três ou quatro uísques Bushmills. Alguma louça suja acumulou-se na banca da cozinha e o mesmo aconteceu com a roupa num canto do quarto.
Tirei um fim de semana para viver sem regras, como se não existisse ninguém no mundo a quem a minha vida dissesse respeito, totalmente entregue às minhas vontades pontuais. Fiquei a conhecer melhor o sofá da minha sala e as minhas estantes onde guardo livros e discos.
Vivi satisfeito, como se não precisasse de mais ninguém à minha volta, nem sequer dessa coisa que já tanta falta me fez e que dá pelo nome de Amor. E, no entanto, só o consegui fazer porque a tenho, mesmo ao meu lado e à distância duma chamada telefónica ou dum pensamento fugaz. Para conseguir estar sozinho é preciso não estar só. Essa é apenas umas das maiores vantagens de estarmos apaixonados.
Qualquer dia repito...

12.07.2012

conversa 1969

(na minha casa)

Ela - Ainda tens um televisor destes antigos?
Eu - Tenho e vou continuar a ter durante algum tempo.
Ela - Porque é que não compras um plasma?
Eu - Não tenho dinheiro para isso agora.
Ela - Eu também não tinha e comprei na mesma...

pelo dedo mindinho do pé

Existem as pessoas que dizem frequentemente asneiras, as que só as dizem de vez em quando e as que quase nunca as dizem. As caralhadas estão longe de ser uma questão transversal à sociedade e, suspeito eu, são também uma questão de género.
Os homens são, em geral, mais asneirentos do que as mulheres. Nunca fiz essa conta, claro, mas estou convencido que sim. É que as mulheres, embora também as digam, fazem-no menos vezes e apenas quando estão chateadas. É preciso ser mulher para conseguir tratar bem um palavrão, de forma a dar-lhe delicadeza suficiente para a transformar num aromático voo de borboleta.
Nas mulheres, assim, as asneiras são para ser levadas a sério. Quando o vocabulário vernáculo mais pesadão ultrapassa os lábios femininos é porque alguma coisa está realmente mal. É por isso, e só por isso, que um homem não deve dizer muito asneiredo quando está acompanhado por uma mulher. Descredibiliza o palavrão. Retira-lhe substância e torna-o ordinário. É uma espécie de história do Pedro e do Lobo: se um gajo diz asneiredo a mais, chegará o dia em que quer dizê-lo porque está realmente fodido chateado com a vida e ela não o leva a sério.
Aliás, quando um homem chega a esse intenso nível obscurantista do vocabulário, é quando uma mulher começa a fazer contas e a pensar que escolheu como companheiro para a vida, não um homem, mas sim um martelo pneumático com pénis. É também quando ela, para se distanciar de tal alarvidade, passa ao nível zero de asneiredo.
É claro que uma mulher que afirma nunca ter dito nenhum palavrão na vida mente descaradamente, a não ser que nunca tenha batido com o dedo mindinho de um pé na esquina de um móvel, percalço que já aconteceu a todos os habitantes deste planeta que vivem em casas ou apartamentos. Portanto é essa a forma de fazer uma mulher entender o armazém interminável de palavrões que existe dentro de cada homem.  Pelo dedo mindinho do pé. Aí, garanto eu, somos todos iguais.

12.06.2012

respostas a perguntas inexistentes (239)

Nunca morri num sonho

Nunca morri num sonho. Não sei se se passa o mesmo com todos os outros, mas sempre que estou a sonhar, ou melhor, a ter um pesadelo e chego a uma situação em que a minha morte é eminente, acordo uma fracção de segundo antes de morrer e já não morro. Às vezes abro imediatamente os olhos e percebo que estive a sonhar, outras vezes tenho o corpo inundado pelo meu próprio suor e passo algum tempo numa espécie de limbo, em que não sei bem onde estou.
O que eu sei é que nunca morri num sonho.
Uma destas noites estive com um amigo e uma amiga que são, vá lá, pelo menos um bocadinho misteriosos. Acreditam no ocultismo, na existência de espíritos maus e bons e em mais uma série de coisas que eu nem sei identificar. Eu não acredito em absolutamente nada disso, de tal forma que eles ficaram a falar a dois e eu apenas a ouvir enquanto bebia uísque.
A certa altura começaram uma discussão sobre pessoas que tiveram, supostamente, experiências de morte, ou seja, pessoas que morreram durante algum tempo e depois regressaram à vida. Foi então que tive este pensamento para mim mesmo e para um copo já quase vazio: nunca morri num sonho.
Sei que já tive algumas quase mortes bastante dolorosas, como ser enterrado vivo, ser esfaqueado por uma faca de cozinha ou cair do trigésimo andar dum prédio. São momentos em que sofro bastante e tenho a noção que vou morrer, mas depois acordo mesmo antes do momento final.
Acordar num momento destes acaba por ser uma enorme sensação de alívio. A última vez que me aconteceu, fiquei tão surpreendido por estar vivo que tive que tocar em várias coisas à minha volta, como os lençóis, o candeeiro da mesa de cabeceira ou o despertador, apenas para ter a certeza que no meu corpo ainda existia vida. Era precisamente numa queda vertiginosa que ia morrer. Acordei quando atingi o chão.
Tornei a servir-me de uísque e contei isto aos dois, até para que não pudessem dizer que eu tinha passado a noite toda calado que nem um rato, que não gosto de fazer apenas figura de corpo presente quando estou entre amigos. A Sandra fez silêncio e, para meu espanto, ficou a pensar no que eu lhe tinha dito. Acabou por concluir que o mesmo se passa com ela: nunca morreu num sonho.
Apesar desta certeza, a verdade é que raramente me consigo lembrar dum sonho do princípio ao fim. Mal acordo, ele torna-se tão pouco presente como uma qualquer memória de infância. A única coisa que guardo são esses momentos de pânico, mesmo antes de morrer e, portanto, de acordar.
Ficámos a falar a noite toda sobre este aparente contra-senso, que é conseguir acordar depois de morrer, e encontrámos várias metáforas da vida em que é possível fazê-lo. No Amor, por exemplo, quantos vezes acordamos depois de morrer? Aí, já nós os três o tínhamos feito.
Estava agora aqui a tomar café e a pensar como é bom ter amigos com quem consigo conversar assim, de forma desprendida e em que nos compreendemos tanto nos debates terra a terra como em contextos mais absurdos.

- É um sonho! - disse ela.

E eu nunca morri num sonho.

12.05.2012

imprudence

tirando a roupa dela, sem o consentimento dela... 190 Cal
A Prudence, uma marca de contraceptivos sexuais do Brasil, foi obrigada a retirar uma publicidade aos seus preservativos onde era suposto fazer humor. A ideia da Dieta do Sexo era que cada um soubesse quantas calorias se perdem durante o acto sexual, mas uma das suas alíneas (logo a segunda) é tirar a roupa dela sem o seu consentimento.
Digamos que a Prudence devia ser mais prudente com a escolha dos seus publicitários, aos quais lhes fugiu a boca para o absurdo. À ideia do abuso sexual soma-se a de que o prazer no coito é todo do género masculino. 
Olhem que não... olhem que não...


respostas a perguntas inexistentes (238)

ao Diabo e à mulher nunca falta que fazer

É uma pena que Deus não exista. Só a  sua existência é que sustentaria a também existência do Diabo e, tal como acabei de ouvir numa conversa de homens envelhecidos pela solidão, ao Diabo e à mulher nunca falta que fazer. É um provérbio, como tantos outros, que explica como alguns homens jogam às escondidas com Deus.
Enquanto uma vida triste se torna feliz com uma paixão, uma vida feliz torna-se triste sem ela. Os homens que não sabem Amar escondem-se na tristeza de Deus, e empurram o seu enorme falhanço na vida para essa dupla conspiradora formada pela mulher e pelo Diabo.
Eu, se fosse um falhado no Amor, rezaria ao Diabo que me ajudasse. Nunca a Deus. É que fiquei ali a ver aqueles dois, de olhar triste espetado no chão, numa mesa de café despovoada, sem nada mais que fazer ou dizer. Se pudessem optar, diria eu, era melhor irem ter com o Diabo e, consequentemente, algumas mulheres. Sempre teriam que fazer.
Já percebi onde é que surgiu a ideia judaico-cristã do Diabo. É uma luz ao fundo do túnel para a felicidade e para o Amor. Às escondidas, é certo, mas ainda assim uma alternativa à submissão e à tristeza contínua. É por isso que ainda há homens que dizem isto...

12.04.2012

conversa 1968

Ela - Estás cheio de cieiro nos lábios.
Eu - Eu sei. Foi de andar muitas noites seguidas ao frio, à procura da minha cadela...
Ela - Então se sabes, porque é que não pões nada?
Eu - O que é que hei-de pôr?
Ela - Batom de cieiro, claro.
Eu - Nunca me lembro dessas coisas...
Ela - Eu tenho aqui um novinho em folha. Dou-to e tu pagas-me o café. Pode ser?
Eu - Tu tens cieiro agora?
Ela - Não.
Eu - Então porque é que andas com um batom de cieiro na carteira?
Ela - É uma coisa que pode ser precisa a qualquer altura.
Eu - Não acredito nisto...
Ela - Não acreditas em quê?
Eu - Que andas com um batom de cieiro na carteira sem teres cieiro, só porque pode ser preciso. Por acaso não tens papel higiénico?
Ela - Tenho, mas só tenho um bocadinho. Precisas?
Eu - Não. Dou-me por vencido...

respostas a perguntas inexistentes (237)

Acho que não tínhamos mais do que três meses juntos. Eu estava na cozinha, a fazer uns desenhos infantis nos vidros embaciados das janelas, quando ela entrou. Não olhei para trás, que não queria deixar o galho saliente duma árvore gorda sem um baloiço pendurado, e ela tossiu. Sei que ela tossiu apenas para anunciar a sua presença. Foi uma tosse forçada, daquelas que substituem um cumprimento qualquer.
Quando andamos felizes, costumamos dizer um "Olá! Tudo bem?" ao chegar a casa. Quando andamos tristes também dizemos sempre qualquer coisa, embora normalmente em tom mais amorfo. Só quando não estamos nem uma coisa nem outra é que tossimos, para assim não termos que dizer nada.

- Esta chuva não pára... - disse eu, finalmente.
- Pois não. É Inverno. - e ela tossiu novamente.

Do que falamos quando falamos do tempo? Falamos disso mesmo: de não estarmos felizes nem tristes, nem quentes nem frios. Não estamos nada. Lá fora os guarda-chuvas amontoavam-se numa rua qualquer de Lisboa e eram todos da mesma cor, como se nenhum tivesse direcção ou soubesse para onde se dirigia. Numa das montras, alguns manequins nus observavam o dia sem o compreender.

- Vou hoje para Aveiro, está bem? - continuei o meu desenho infantil.
- Talvez seja melhor. - respondeu ela - dizemos "adeus" ou "até um dia destes"?
- Por uma mera questão de conforto, podemos optar por dizer "até um dia destes"... - conclui.

A viagem de comboio que fiz nesse fim de tarde não foi triste nem feliz. Fartei-me de tossir para mim mesmo, de forma a perceber que eu próprio ainda estava ali, algures numa viagem de regresso duma aventura que não cheguei a perceber. Do lado de fora da janela, a paisagem desfilava fingindo que não me via.

12.03.2012

conversa 1967

Ela - Já encontraste a tua cadela?
Eu - Já. Estou tão feliz...
Ela - Como é que a encontraste?
Eu - Não fui eu. Foi uma vizinha, quando a cadela andava a rondar a casa.
Ela - Então foi a cadela que vos encontrou a vocês...
Eu - Sim, pode dizer-se que sim... mas demorou uma semana.
Ela - Coitadinha, teve uma semana de cão.
Eu - Hum... hum...
Ela - Que foi?
Eu - Ela é um cão. Dito assim não parece grave.
Ela - Pronto, teve uma semana de mulher. Está melhor assim?
Eu - Nem sei bem...
Ela - Sei eu. Ser mulher, às vezes, é a mesma coisa que andar perdida por aí.

pensamentos catatónicos (288)

Christmas truce ou Weihnachtsfrieden

Li nos jornais que um adepto do Braga morreu atropelado quando fugia de alguns adeptos do Porto.
O problema do ódio é ser estúpido. Não fazia mal nenhum odiarmos uma ideia, uma cor, um quadro ou um estado do tempo. Odiávamos isso e pronto, estava odiado. Só que por qualquer motivo imperceptível, o ódio é sempre pessoal e egoísta. Odeia-se uma pessoa, um grupo de pessoas ou, uma vez por outra, até um cão ou um gato.
Se odiássemos o vermelho, por exemplo, bastava-nos pintá-lo de outra cor, estivesse ele numa parede da nossa casa, numa camisola ou num gadget qualquer. Como odiamos sempre um ser vivo, ou rangemos os dentes quando passamos por ele, ou então tornamo-nos violentos. É por isso que há quem bata em animais, é por isso que há adeptos de equipas de futebol a morrer durante fugas de outros adeptos. Nunca há uma verdadeira razão para odiar, há apenas uma emoção inócua de sentido, porque o ódio é estúpido.
Mais estúpido é dizer que o Amor é o contrário do ódio. O ódio, para ser o contrário do Amor, tinha que ter inteligência. Nunca tem. O contrário do Amor é o vazio, o vácuo emocional. Somos capazes nos perguntarmos porque é que Amamos tanto alguém, mas nunca nos perguntamos porque é que odiamos. O ódio é uma certeza sem conteúdo.
Em 1914, durante a primeira Guerra Mundial, soldados britânicos e alemães fizeram uma semana de tréguas durante o Natal e saíram das suas trincheiras para trocar saudações e até presentes. Esse momento ficou conhecido Christmas truce ou Weihnachtsfrieden. Depois recomeçaram os tiros.
Talvez alguns adeptos de futebol devessem ler e perceber esse período da História. É que o ódio é uma trincheira, seja ela no terreno ou em nós mesmos.
Só quem é capaz de Amar é que percebe isto, porque o Amor é uma inteligência

12.02.2012

a Luna apareceu!

partilhas no facebook
A nossa Luna apareceu hoje perto de casa, magra e suja mas de boa saúde. Demorou exactamente uma semana a fazer os cerca de dois quilómetros que separam o sítio de onde desapareceu até ao seu lar. Suponho, portanto, que foi dar uma grande volta. Não imagino por onde ela terá andado, o que terá passado, mas tenho a certeza que fez um esforço enorme para encontrar o caminho de volta.
Agora, com mais calma, sei que não vou conseguir a todos os que nos ajudaram, a mim e à Raquel, nesta questão, mas vou tentar. Colámos mais de duzentos cartazes pelo Porto e por Matosinhos (chegámos a oferecer recompensa), cada vez que eu punha um anúncio no meu facebook as partilhas eram imediatas e atingiam milhares, recebi centenas de emails de leitores deste blogue e perdi a conta às chamadas telefónicas de todo o género e feitio. Eu, a pé, fiz uma média de doze horas por dia, perdendo conta aos quilómetros que percorri.
Por isso obrigado a todas as pessoas com quem falei na rua, a todos os que me telefonaram a dar pistas; a todos os que partilharam e participaram em buscas mesmo sem eu saber; ao encontra-me.org e ao sítio dos cães; aos meus incansáveis camaradas do Bloco de Esquerda de Aveiro, que me tiraram todo o trabalho das mãos para eu poder procurá-la; à Sara do Porto, que me mostrou todos os sítios mais recônditos entre a Lapa, a Cedofeita e o Palácio de Cristal; à Fernanda de Matosinhos, que perdeu uma tarde inteira comigo a andar a pé dum lado para o outro; à senhora que vende farturas nas Sete Bicas, que foi falando com os seus clientes sobre o caso; às senhoras que distribuem comida aos animais na Fonte do Cuco; aos senhores que apanham o lixo na zona da Senhora da Hora.
Por fim, também, à Raquel, por nunca perder a esperança.
Agora vou andar mais duas ou três tardes a arrancar os cartazes que coloquei. Acabou.

p.s.: eu sei que faltam aqui muitos agradecimentos, mas é mesmo impossível referir todos.

12.01.2012

pensamentos catatónicos (287)

somos únicos

Estou tentado a acreditar que é mais aquilo que nos une do que aquilo que nos separa. O pouco que nos separa, no entanto, é um pequeno machado capaz de destruir essa grande árvore que é a nossa união. E sim, falo de nós, pessoas comuns que procuram pelo preço mais barato dum produto no supermercado, que gostam de aquecer as mãos frias numa chávena de café fumegante, que choram, que riem ou ficam a leste das emoções uma vez por outra.
Não estou a falar do grandes conflitos entre classes e nações, como aquele que opõe israelitas a palestinianos, trabalhadores a accionistas ou direitosos a esquerdistas. Esses são os conflitos concebidos por interesses escondidos ou por ideias de como o mundo se deve organizar. São problemas fabricados e fazem parte doutra luta.
Estou a falar dos conflitos mais mesquinhos, entre duas pessoas que se Amam e que põem esse Amor em risco por causa de nada. É a mania que temos de acreditar que somos únicos, que os outros não pensam nem sentem como nós. Somos únicos, porque é por nós que passam todo esse cocktail que mistura inexplicavelmente emoção e razão.
Só nos falta perceber que, se formos por aí, somos tão únicos quanto outra pessoa qualquer.

11.30.2012

não desisto!



Esta semana não fiz muito mais do que procurar a Luna, a minha cadela que desapareceu no passado dia 25. A pé, já percorri uns cinquenta quilómetros ou mais. Na verdade perdi a conta. São cerca de doze horas a caminhar todos os dias, embora ontem e hoje não tenha conseguido manter o ritmo dos primeiros dias.
Já conheci várias pessoas que, admito, me revelaram um mundo novo: o daqueles que fazem tudo o que podem por um animal. A S., por exemplo, que encontrei numa das ruas do Porto exactamente à procura da minha cadela, e que me reconheceu pelo canto do olho. Mais ainda, hoje parei para beber umas cervejas num café perto da estação de metro do Viso, onde deixei um cartaz, e os donos prometeram fazer uma busca na zona de Custóias. São apenas exemplos duma solidariedade que eu desconhecia.
A Luna tem cinco cachorros em casa, que serão entregues aos donos prometidos em breve. Têm sido tratados da melhor forma possível por mãos humanas, as minhas e as da Raquel. Vou fazer todos os possíveis para que passem alguns dias com a mãe.
Este post é só para dizer obrigado a toda essa gente, incluindo aqueles a quem não consegui responder nem cheguei a conhecer. Obrigado. Eu não desisto!

pensamentos catatónicos (286)

agarra-me senão eu mato-o

As mulheres tiveram a inteligência de nunca se armarem em fortes. Nunca se metem à frente de um homem para o proteger de falsas ameaças, nunca contam histórias em que salvaram gatinhos indefesos das garras de  enormes lutadores asiáticos, nunca se oferecem para levar um tipo a casa ao fim da noite. São inteligentes, de facto, e têm uma vida mais fácil no que diz respeito às lágrimas. Nunca ninguém ouviu dizer que uma mulher não chora.
Quando uma mulher chora apenas se torna mais sensual, mais delicada e sensível. Enfim, mais mulher. Já os homens, por serem estúpidos, têm uma vida difícil. Quando um gajo chora perde toda a sua masculinidade. Passa a ser um totó, um menino da cidade, um ser que habita no limbo dos géneros. Nem sequer é bem homem.
Se uma mulher se afasta duma zaragata de rua, é por ser calculista e por pôr a razão à frente da emoção. Um homem, no entanto, é sempre cobarde. Assim, quando um tipo não se quer meter em confusão, o mínimo que pode fazer é pedir o clássico "agarra-me senão eu mato-o!", na esperança de que realmente alguém o agarre. 
O mais extraordinário de tudo isto é que ontem vi uma cena destas: um homem a pedir para ser agarrado antes que desse uma sova noutro. Quem o agarrou foi uma mulher, esse ser frágil que chora por tudo e por nada, que não tem força nenhuma e, imagine-se, precisa constantemente de ser defendido por terceiros. Para meu espanto, conseguiu. Eu olhei para o homem agarrado e acho que não conseguiria.

conversa 1966

Ela - O meu marido, cada vez que vê um homem muito simpático, pensa logo que é um gay a tentar engatá-lo.
Eu - Isso é preconceito a mais. Ainda pensa que eu ando a tentar engatar-te a ti, só porque sou simpático contigo.
Ela - Não, isso não é um problema. Ele diz que tu és dos gajos mais antipáticos que já conheceu.

11.29.2012

conversa 1965

Ela - O meu marido está sempre a queixar-se que não temos sexo suficiente.
Eu - E não têm?
Ela - Para mim chega o que temos. Acho que não vemos o sexo da mesma forma...
Eu - Da mesma forma?!
Ela - Sim, da mesma forma. Para mim o sexo é luxúria, só faz sentido se eu estiver nos píncaros da libido  Para ele, e acho que para os homens em geral, é uma sensação de conforto. Mesmo que não estejam muito entusiasmados, precisam duma certa regularidade sexual.
Eu - Ah! Compreendo.
Ela - Ele não, não compreende...

respostas a perguntas inexistentes (236)

talvez amanhã

Sem perceber como, a Ana já perdeu a conta aos dias em que espera ansiosamente por um dia melhor. O seguinte, se possível. Agora tornou a dizer-me que talvez amanhã. Talvez amanhã consiga dormir até mais tarde, talvez amanhã tenha um dia no emprego sem pressões, talvez amanhã consiga dez minutos para ir ver o Sol pôr-se na praia, talvez amanhã encontre alguém.
"Alguém" é um pronome indefinido, digo-lhe eu. Tão indefinido quanto esse "talvez amanhã". Termos a vida indefinida pode ser uma de duas coisas: ou uma maravilha ou um pesadelo. A indefinição nunca é assim assim. A indefinição no trabalho, no Amor e nos nossos pequenos vícios é apenas a vida a dizer-nos que está viva. Que ainda não morreu.
Quando estamos sós, lutamos todos os dias para definir a nossa solidão, se possível terminando com ela. Quando estamos apaixonados e Amamos alguém, lutamos para que o Amor não se defina com o tempo que passa. O amor não se pode definir nem passar a ser corriqueiro. É um snobe, o sacana, e quer sempre ser a coisa mais importante da vida de cada um.
Talvez amanhã.

11.28.2012

respostas a perguntas inexistentes (235)

trata-me aí dum assunto

Aqui há uns dias uma amiga pediu-me para fazer um trabalhinho por ela. Nada de especial. Ela não tinha coragem de devolver um ferro de passar a roupa que se avariou logo nos primeiros quinze dias de uso, deu-me o papel da garantia e pediu-me para ir eu. Nada mais fácil, mas compreendo que em determinadas alturas da vida nos falte forças até para as coisas mais simples, por isso fui.
O assunto ficou rapidamente resolvido e voltei para casa feliz da vida com o dinheiro no bolso para lhe entregar. Entretanto decidi tomar um café, daqueles que se tomam não por causa do café em sim, mas sim porque sabe bem estar numa mesa rodeado de pessoas que não nos conhecem de lado nenhum, durante algum tempo e sem pensar em nada. É nesses momentos que algumas ideias nos assaltam abruptamente.
Era bom que o Amor funcionasse assim, através de terceiros, mas não funciona. Imagino-me a pedir a uma amiga que fosse ali falar com o objecto da minha paixão para lhe dizer que eu a Amava. Imagino-a a voltar com o assunto tratado. Não é assim.
Podemos pedir a um amigo que nos trate do IRS, que nos vá devolver a uma loja uma compra da qual nos arrependemos, que nos compre bilhetes para um jogo de futebol ou que vá pagar a conta da água. Não lhe podemos pedir que transmita a alguém, por nós, que estamos apaixonados.
Essa é barreira que só a vida nos ensina a ultrapassar, transformar o verbo Amar num assunto que se vai tratar porque tem que ser tratado. A mim, por exemplo, custou-me bastante a aprender, mas a verdade é que nunca fui bom aluno em nada.
Paguei o café e fui entregar o dinheiro à minha amiga, que não vive assim muito longe de mim. Ela agradeceu-me e ofereceu-me um café, que eu recusei porque já tinha tomado. Acabámos os dois a beber umas cervejas numa esplanada da Costa Nova. Ela contou-me todos os seus avanços e recuos no Amor. Não me pediu para tratar de nada.

11.27.2012

conversa 1964

(ao telefone)

Ela - Boa tarde. Vi um anúncio num poste de electricidade sobre uma cadela desaparecida.
Eu - E?
Ela - Era para saber se me dá um dos cães pequeninos.
Eu - Já estão prometidos.
Ela - Todos?
Eu - Sim.
Ela - E aceita reservas, caso haja alguma desistência?
Eu - Não. Agora não ando com cabeça para isso...
Ela - Podia ao menos apontar o meu nome...
Eu - Não vale a pena. Se houver uma desistência, já tenho lista de espera.
Ela - Caramba! (desliga)

11.26.2012

respostas a perguntas inexistentes (234)

Por causa da minha cadela ter desaparecido, ontem andei entre as nove e meia da manhã e as onze da noite à procura dela. Com um cartaz na mão, ia perguntando às pessoas que passavam por mim na rua se a tinham visto. Quase todas as pessoas que pararam para realmente olhar para a fotografia, que me pediram o número de telefone para o caso de encontrarem a cadela e me desejaram sorte, eram pessoas que levavam um cão a passear.
Nunca tinha reparado que as pessoas que têm cães formam um grupo com um denominador comum tão forte. Não gostam apenas do seu cão, gostam de todos os cães. Assim, a partir do meio da tarde comecei a perguntar apenas a pessoas que tinham cães. Na Senhora da Hora não são poucas, aquelas que andam com o seu companheiro canino na rua.
Obviamente não estou a dizer mal das pessoas que não têm animais. Eu próprio nunca tive até há bem pouco tempo. Estou a dizer que descobri recentemente esta ligação entre pessoas e que a percebo bem. Perceber bem um certo tipo de ligação entre uns e outros, não é para todos. Houve pessoas que me disseram apenas que não tinham visto a minha cadela, mas todos os que levavam cães pela trela me desejaram sorte. É uma espécie de pancadinha nas costas ou um "eu sei o que estás a sentir".
De facto estou a sentir-me profundamente triste e ainda bem que há pessoas que entendem isso. No Amor, a coisa não é muito diferente. Quando alguém está deprimido porque, por algum motivo, o seu Amor acabou, uns entendem o que se passa, outros não.

11.25.2012

urgente

A Luna, a minha cadela, assustou-se hoje com uma mulher que passou por ela. Penso que deve ter apanhado bastante dos donos anteriores porque tem pânico de tudo o que é pau, vassoura ou guarda-chuva. Escapou-se à própria trela e fugiu. Foi perto da estação da Senhora da Hora, em Matosinhos e eu estou um bocado desesperado porque ela tem cinco filhotes em casa à espera dela.
Se alguém a vir, agradeço que me telefone, por favor. O meu telefone é o 934168870. 

11.24.2012

respostas a perguntas inexistentes (233)

às compras

Estou numa longa fila de carrinhos de compras a pensar que não deve ser nada fácil ser caixa de supermercado. É uma mulher ainda jovem que está ali, provavelmente há horas, a passar o código de barras de milhares de produtos. De vez em quando olha disfarçadamente para todos os que esperam a sua vez. Alguns olhares de clientes mais impacientes mantêm-se fixos na direcção dela, como que a culpá-la pela demora, e ela defende-se desse ataque permanente com um sorriso forçado.
À minha frente, duas mulheres retiraram a Nova Gente do expositor de pastilhas elásticas, chocolates e revistas. Vão folheando páginas de notícias inúteis para não terem que folhear mentalmente a própria vida. É o que os seus maridos fazem e por isso estão em silêncio. Um deles começa já a pôr as suas compras no tapete rolante e ela interrompe a leitura, mantendo os dedos a marcar a página.

- Olha que as coisas pesadas vão primeiro. Os legumes são no fim. - diz.
- Se ajudasses em vez de ler essa merda. - resmunga ele.

Ela não liga. É fácil perceber que há muito tempo que aquele casal não tem uma conversa decente. Estão juntos fisicamente, separados em tudo o resto. E ele vai atirando as coisas para o tapete como se as quisesse aleijar.
Mais atrás, outro homem acordou do que parecia ser um sono profundo. A mulher mostra-lhe uma página qualquer e ouço-a falar sobre um bebé que é lindo.

- É escura e tem o cabelo loiro. Que linda!
- O pai dela é aquele jogador de futebol, não é? - Pergunta ele.
- É. Gostava de ter uma menina assim.
- Não temos dinheiro.

Faz-se de novo silêncio. Ela fecha a revista e coloca-a com precisão onde a tinha deixado. Os seus dedos percorrem todos os chocolates e agarram uma embalagem de Snickers

- Isso é para emagreceres? - Pergunta ele.
- Preciso dum chocolatinho. - responde ela e atira a embalagem para dentro do carrinho.

Ir às compras é uma tarefa deprimente, penso eu. Os meus olhos desviam-se e voam sobre aquele espaço fechado como um pássaro tonto, ansioso por sair dali. Pousam alguns segundos depois numa mulher da fila ao lado da minha. Deve ter uns trinta e cinco anos, mais coisa, menos coisa. As compras dela têm, entre embalagens de cereais, fruta e carne, algumas garrafas de vinho, uma de uísque e uma caixa de preservativos. Vejo-a sorrir e é o primeiro sorriso a sério que vejo nesta tarde. Um homem aproxima-se e abraça-a. Depois beija-a prolongadamente. Talvez tenha ido à casa de banho.
A vida é uma coisa estranha, penso. Se não nos damos ao trabalho de passar por ela, é ela que passa por nós a uma velocidade estonteante. Quero ser dos que seguem pela primeira opção. Procuro a minha companheira. Beijo-a. Começo a pôr as compras no tapete rolante.

11.23.2012

conversa 1963

Ela - Esta vai ser a primeira passagem de ano em que estou divorciada.
Eu - Isso preocupa-te?
Ela - Preocupa-me passá-la sem os meus filhos...
Eu - Compreendo. Eu telefono sempre à minha filha nessa noite, quando não estou com ela.
Ela - Eles não têm telefone e tenho quase a certeza que o meu ex-marido não vai atender.
Eu - Não vai atender?! Porquê?
Ela - Porque me quer irritar.
Eu - Ele não faz isso de certeza. Eu conheço-o e sei que não faz. É um gajo porreiro.
Ela - Eu também sou porreira e fazia-o sem problema nenhum.

pensamentos catatónicos (285)

O capitalismo é a antítese do Amor.
As pessoas casam-se para pagarem a conta da luz, da água e do gás a meias. Dizem que a vida vai mais ou menos quando conseguem manter a prestação do carro e da casa.  Sorriem quando lhes é perguntado se têm as contas em dia, abanam os ombros descontentes quando lhes és perguntado se ainda estão apaixonados um pelo outro.  Do Amor pode-se abdicar, do pagamento das contas não.
O Amor até é dispensável, a contabilidade é que não. Somos geridos com falta de Amor e é com ele que pagamos a factura dessa asneira. O problema é que é mesmo assim porque escolhemos viver assim.
Os Amantes deixaram de perceber que a forma como decidimos distribuir a riqueza que um país produz é uma concepção. O Amor, pelo contrário, é um impulso natural. Apaixonamo-nos e pronto. Nem sequer sabemos porquê.
Pelo contrário, sabemos muito bem porque é que pagar as contas é difícil. Decidimos que nesta vida é cada um por si e outros que se fodam. A não ser, claro, que o outro esteja casado connosco.  Mas aí não é um Amante, é um sócio de capital. Podíamos ter uma lógica em que todos pagavam as contas de todos. Pelo menos aquelas que são essenciais: a da água, a do gás, a da electricidade, a da saúde, a da educação e a da mobilidade. Ficávamos todos com disponibilidade para nos apaixonarmos. Mas não.
Cada um por si significa que ninguém é por ninguém, e que um destes dias ninguém consegue pagar contas. Quando esse dia chegar, também ninguém conseguirá Amar.

11.22.2012

conversa 1962

Ela - Diz-me sinceramente, achas que eu ainda sou minimamente atraente?
Eu - Não.
Ela - Eu sabia.
Eu - Quer dizer, não és minimamente. És muito atraente, era o que eu queria dizer.
Ela - Ah! É que estava quase, mas mesmo quase, a despejar este caldo verde a ferver por ti abaixo.
Eu - Então e o "sinceramente"? Não me pediste para ser sincero?! E se eu achasse mesmo que não?
Ela - A sinceridade é uma coisa muito relativa.

conversa 1961 e respostas a perguntas inexistentes (232)

Não sou, por norma, muito falador. Pelo menos é o que eu acho. Como costumo dizer a mim mesmo, falo de menos e escrevo demais. Até me considero uma pessoa tendencialmente tímida. Há, no entanto, uma excepção: as conversas a dois.
Na verdade, considero que a minha sanidade mental depende muito das conversas a dois. Prefiro conversas a dois do que a três, quatro ou cinco. Não sei porquê, mas a capacidade que eu tenho de me concentrar numa conversa e, portanto, de me interessar por ela, é muito maior quando tenho apenas um interlocutor.
É por isso que adoro receber uma visita em casa ou, por outro lado, tendo a visitar mais os meus amigos que vivem sozinhos. Um amigo, uma garrafa de vinho ou de uísque e algum pão ou chocolate, e tenho uma noite por bem dada.
É verdade que esta minha característica, que não é boa nem má, também teve sempre uma enorme importância nos meus relacionamentos amorosos. Uma relação com uma mulher que gosta de falar a dois, por mim, é normalmente mais fácil do que com uma que até pode ser mais social e, por isso, não dispensa uma noite sem um grande grupo de amigos à sua volta. Acreditem, sei-o por experiência própria.
Isto quer dizer também que, na idade que atravesso, considero-me um privilegiado por ter feito e mantido alguns amigos que são exactamente como eu neste aspecto. Não são muitos, mas são os suficientes para eu manter equilibrada a balança da solidão e do convívio. Há uns dias, por exemplo, visitei uma amiga minha que quase nunca sai de casa por opção própria. Visito-a mais a ela do que ela a mim, talvez por isso mesmo. Depois duma noite inteira a conversar, deviam ser umas três da manhã quando ela me pediu silêncio.
No princípio até pus a hipótese dela se estar a sentir mal. Observei-a com atenção enquanto ela dividia irmãmente o que restava duma garrafa de Vila Ruiva Reserva 2010 (ela só bebe vinho alentejano) e cheguei à conclusão que não. Dei um gole no copo e encostei-me para trás no sofá.

- Eu acabei de te explicar porque é que me divorciei do meu marido. - disse ela.
- Acabaste, sim. - confirmei.
- Disse-te que passámos quatro anos, eu e ele, a tentar apaixonarmo-nos um pelo outro e que, passado esse tempo, chegámos à conclusão que não tínhamos conseguido.
- Eu percebi. - confirmei de novo.
- És a primeira pessoa a quem conto isto e que não faz nenhuma observação parva, do género: "tanto tempo para perceber que não estavam apaixonados?!".
- Não acho que seja assim tanto tempo. Além disso, acho perfeitamente normal insistirmos em tentar uma paixão com aqueles de quem gostamos muito. Já aconteceu a todos... - observei, numa tentativa de tornar o mais normal possível a coisa.
- Eu acho que só nos entendemos assim tão bem porque nunca há mais ninguém quando conversamos. - concluiu.

Fiquei a pensar naquilo para além daquela noite, até agora, momento em que escrevo este texto. É que às vezes, para alinhavar o meu pensamento, tenho que o escrever. Senão não sou capaz. Acho que ela tem razão e, sem o saber, explicou-me uma característica que eu tinha como minha.

11.21.2012

conversa 1960

(na casa dela, uma mosca a bater insistentemente no vidro da janela)

Eu - Às vezes apetecia-me ser mosca.
Ela - A mim também, para conseguir ouvir todas as conversas.
Eu - Eu estava mais a pensar em ser capaz de voar.
Ela - Ah! Não tens piadinha nenhuma.

11.20.2012

conversa 1959

(na casa dela)

Eu - Ena! Tens este vinil?! Não acredito!
Ela - Não acreditas, porquê?
Eu - Este disco é raríssimo. "10000 anos depois entre Vénus e Marte", do José Cid... espectacular. Consegues vender isto por uns cem euros...
Ela - Não é meu, é do meu ex-marido e ele está farto de mo pedir.
Eu - Ah! Então e não lho dás? Se eu fosse o teu ex-marido já tinha cá vindo buscá-lo.
Ela - Eu até dava, mas estou com medo.
Eu - Medo de quê?
Ela - Há uns tempos precisava duma base para a mesa, para pousar a panela quente do jantar, e usei esse disco. Ficou um bocado estragado...
Eu - Fizeste o quê?!?!?!?!
Ela - Eu sabia lá... um disco do José Cid... pensei que fosse mais uma porcaria dessas que ele se esqueceu cá em casa quando se foi embora.
Eu - Fizeste o quê?!?!?!?!
Ela - Estás a ver? É dessa reacção que eu tenho medo...

música

Às vezes passo música em minha casa para mim mesmo. Sento-me no sofá, ligo dois leitores de cd's à mesa de mistura e esta à minha amplificação doméstica. Normalmente acompanho este hobby com uma garrafa de vinho ou algumas cervejas.
Uma vez uma amiga minha apareceu em minha casa sem avisar, estava eu com todos os meus cd's espalhados à minha volta e a passar música para mim mesmo. Ela ficou surpreendida e perguntou-me se eu estava maluco.

- Talvez esteja mas, como gosto desta maluquice, não abdico dela! - respondi.

Nessa altura eu costumava passar música em alguns bares de Aveiro, normalmente o Clandestino Bar ou o Mercado Negro, mas uma vez por outra também no Riff. Nunca fui músico e nunca tive jeito nenhum para a música, para ser sincero. Apenas adoro ouvir. Por isso é que me faz impressão a forma como a maior parte das pessoas ouve música, ou seja, como um apêndice de outra actividade qualquer. Enquanto se lava a loiça, se conduz um automóvel ou se lê uma revista, por exemplo. É muito raro ver alguém que dedica parte do seu tempo apenas para ouvir música. Mais nada. É isso que eu gosto de fazer e é por isso que passo música para mim mesmo.
Nessa noite expliquei isto mesmo a essa amiga minha. Ela foi à cozinha buscar um copo e dividimos o vinho que bebíamos e a música que eu passava. Estivemos a noite quase toda nisto, com ela em silêncio a folhear as capas de alguns cd's que eu ia passando. Nunca lho disse, mas foi das melhores noites que tive na minha vida. Tanto, que nunca mais a esqueci.
A música é um pouco como o Amor. É para ser dividida por dois, mas em exclusivo e sem actividades paralelas. Hoje lembrei-me dela. Como infelizmente já não está entre nós, nunca lhe vou poder dizer que essa foi uma noite especial. Devia ter dito na altura. De qualquer maneira sinto uma necessidade enorme de passar os meus cd's. Vou fazê-lo no Clandestino, a partir das 22:30, tanto para mim como para quem lá quiser passar. É uma necessidade. Mais nada.

11.19.2012

respostas a perguntas inexistentes (231)

A Ana é uma mulher bonita. Como a conheço há alguns anos, já tinha reparado nisso muitas vezes. No entanto hoje, quando vi o seu reflexo na montra dum pronto-a-vestir, reparei duma forma diferente. Foi como se tivesse consciencializado pela primeira vez esse pensamento. Ali, do outro lado do vidro, a sua imagem misturava-se com a inquietante quietude dos manequins e ganhava vida. 
Por um momento percebi o motivo pelo qual me costumo apaixonar por aí, de vez em quando, como quem bebe uma cerveja ou acende um cigarro na rua. Uma mulher faz com que todos os outros se assemelhem, por um momento que seja, a manequins. É ela quem ri, é ela quem chora, é ela a única que provoca no nosso corpo uma resposta emocional. Todos os outros são apenas bonecos que vestem uma roupa qualquer.
Ela estava a vestir o casaco e o reflexo dos nossos olhares cruzou-se por uma fracção de segundo. Vi-a sorrir. Tínhamos acabado de tomar o pequeno-almoço e eu só estava à espera de me poder despedir dela, numa despedida que fosse mais do que um simples acenar de mão ou um "até à próxima". Acabou de vestir o casaco e abracei-a.

- Com que então achas que é uma trabalheira... - disse eu enquanto abria os braços para a deixar fugir como se fosse um pássaro a fugir da gaiola.

Ela tinha comido uma torrada e bebido um sumo de laranja natural, eu tinha-me ficado por um café expresso sem açúcar. Mesmo assim demorámos mais ou menos o mesmo tempo a ingerir os pedidos. Ela ainda come e fala tão depressa como quando a conheci, há alguns anos atrás, e saímos juntos durante duas ou três semanas.
Esteve a explicar-me porque é que nunca mais saiu com ninguém. É que dá uma trabalheira envolver-se emocionalmente com um homem. É o trabalho de lhe conhecer o passado, o trabalho de enfrentar tudo aquilo vai descobrindo que não se gosta nele, o trabalho de desenhar o futuro a dois.

- Sozinha é tudo tão mais fácil! - concluiu

Ia perguntar-lhe qualquer coisa, mas desisti. Perante a prenda que era estar a vê-la a vestir o casaco, não me ia dar ao trabalho...

11.18.2012

conversa 1958

(ao telefone)

Eu - Queres aproveitar o Sol e ir beber um fininho comigo?
Ela - Até gostava,, mas estou aqui com uma cena urgente.
Eu - Urgente?! Está tudo bem?
Ela - Sim, está tudo bem. É que estou a fazer um puzzle de quatro mil peças...

pelo fim da violência contra as mulheres

design: Catarina Leal

Sábado, 24 Novembro
MOB (travessa da Queimada, nº33 Bairro Alto)
18h workshop de defesa pessoal com Sakura Mónica
22h30 Rita Redshoes e dj Miss Sara

Domingo, 25 Novembro
15h Marcha pelo fim da violência contra as mulheres com:
Dança com Orchidaceae
Teatro com O Bando
Dj Soulflow

11.17.2012

casamento


Já não me lembro porque é que disse aquilo à minha mulher. Talvez o elevador do hotel me tenha dado a sensação de que o mundo não ouviria, que aquilo ficaria um segredo entre nós. Sei lá, que talvez aquela ideia absurda nem sequer ousasse sair dali, daquele pequeno compartimento que mais não faz do que transportar pessoas de um andar para outro. Sei que ela nem sequer respondeu e o silêncio que se fez a seguir foi, talvez, o silêncio mais pesado que senti na minha vida inteira.

-Talvez me venha a arrepender de ter casado contigo.

Admito que a minha primeira preocupação foi ter estragado, eventualmente, a noite de núpcias. Não que naquela altura andasse propriamente com a libido no máximo, mas sempre tinha tido essa ilusão de ter sexo num hotel caro com uma mulher vestida de noiva.
Na verdade, eu tinha casado com ela porque estava completamente apaixonado e porque tínhamos uma vida sexual bastante boa. Casei, portanto, sem a mínima dúvida sobre o que estava a fazer. Mas depois, durante o casamento, e por causa dum pequeno gesto que não me saiu mais do pensamento, pensei que talvez me pudesse arrepender.
Tinha chegado a hora de irmos falar com todos os convidados, um por um, mesa por mesa, e eu abracei-a como sempre tinha feito durante os anos de namoro. Ela tirou o meu braço dos ombros e cruzou-o com o dela. Em vez de irmos abraçados, fomos apenas de braço dado.

Há convidados respeitáveis. - disse – Portemo-nos como pessoas casadas.

Foi a primeira vez que pensei que não conhecia totalmente a mulher a quem tinha acabado de prometer passar o resto da minha com ela. Talvez houvesse uma mulher antes do casamento e outra depois do casamento, como muitos amigos meus já casados, alguns até já divorciados, me tinham avisado. Por um segundo não a reconheci nem no seu comportamento, nem sequer no seu timbre de voz.
Ela sentou-se num dos sofás da suite do hotel. Numa das paredes estava pendurado um quadro para o qual eu não conseguia deixar de olhar. Era uma pintura assumidamente abstracta mas que, pelo menos para mim, se assemelhava como figurativa. Um borrão que desde o primeiro momento me parecera um bando de pássaros a levantar voo numa floresta densa, talvez por ter havido um disparo duma arma.

Nem sequer vais olhar para mim? - Perguntou.
- Estou a contar fazer mais do que olhar. - respondi sem tirar os olhos do quadro.

Ela não se riu. Pelos visto, o segredo que eu lhe contara no elevador tinha passado para o nosso quarto de hotel, talvez até para a nossa vida. Achei melhor enfrentar a situação que eu próprio tinha criado, em vez de contorná-la como era meu hábito.

Estou com medo de não saber com quem casei.

Enfrentei-a olhos nos olhos. Ela tinha uma expressão nova, como se de repente se tivesse transformado numa estátua zangada. Eu próprio me assustei e decidi mudar de estratégia. Lancei-lhe um anzol, algo a que ela pudesse responder facilmente, para ver se aquele momento de tensão acabava. Dizendo-lhe o que sentia duma forma mais suave do que a realidade.

Não sei o que se passou comigo. Fiquei com medo que tu mudes. Na verdade fiquei com medo de te perder de repente. Nem sei bem porquê.

A estátua voltou a ser pessoa. Aproximou-se, segredou-me que eu era um tolinho e fizemos Amor. A paz tinha voltado. No entanto, cinco minutos depois de ter casado, já me sentia preso a algo maior que o próprio casamento. 

11.16.2012

respostas a perguntas inexistentes (230)

Lembrei-me hoje duma história que uma vez um quase amigo me contou. Digo quase amigo sem querer ser irónico. É que era isso que ele era de facto. Nunca falei com ele a não ser num dos cafés de Aveiro que eu frequentava quando era novo, e por isso sempre o considerei uma companhia de circunstância. Enfim, um quase amigo. 
Bem, mas a história que ele me contou, há já muito anos, tinha a ver com um pesadelo de que ele nunca mais se esquecera. Estava a morrer de sede e desidratação no meio dum deserto qualquer, deitado sobre a areia quente que lhe queimava a pele. Em desespero, mesmo sendo ateu, pôs-se a pedir a Deus que o ajudasse e fizesse chover, o que veio a acontecer. Só que choveu tanto que ele acordou desse pesadelo quando estava prestes a morrer afogado.
Lembro-me que não tive nenhuma reacção quando ele me contou isto. Devo ter dito apenas qualquer coisa como "fixe!" e pedido mais duas cervejas, uma para mim, outra para ele. A verdade é que nunca mais me esqueci da história. Isto é, não é que me lembre dela todos os dias, mas de vez em quando lá me vem à cabeça como se tivesse sido contada ontem e, normalmente, por causa de situações que têm a ver com mulheres, Amores e desAmores.
Hoje, como comecei por dizer, foi um desses dias e contei-a a um velho amigo que encontrei no Porto por acaso. Eu já tinha andado a pé uns sete ou oito quilómetros e estava ansioso por uma cerveja quando o vi, pelo que o convidei imediatamente para entrar no café mais próximo. Fiquei calado a saborear e decidi dar-lhe espaço para dizer o que quisesse.

- Então, como vai a vida? - Perguntei.

Foi como se ele estivesse à espera que alguém lhe fizesse esta pergunta há anos. Começou a falar ininterruptamente e eu fui ouvindo enquanto dava goles na minha Sagres preta. A certa altura disse-me que se tinha casado e divorciado, no espaço de três meses, com uma mulher alemã que conheceu durante o Verão numa praia qualquer. Apaixonou-se muito por ela, mas como ela fazia tudo o que ele queria fartou-se num instante e pediu-lhe o divórcio. Eu fiquei sem saber o que dizer, mas para preencher o silêncio que entretanto, e de forma inesperada, surgiu, contei-lhe este pesadelo do meu quase amigo.

- Fixe! - disse ele. 

E pediu duas cervejas. Uma para mim, outra para ele.

11.15.2012

um mundo de palhaços


Que me lembre, usei gravata duas vezes na vida. A primeira foi quando me casei e, entretanto, já estou divorciado. A segunda foi quando fui a um jantar duma grande empresa para a qual ia começar a trabalhar e, entretanto, já estou desempregado.
Nunca me dei bem com gravatas, é verdade, nem sequer com camisas, que são essenciais para poder andar de gravata. Dá tudo demasiado trabalho a passar a ferro e, além do mais, a gravata não serve para nada. Pelo menos era o que eu pensava, até ver este anúncio dos anos 70 da Van Heusen.
Afinal, as gravatas servem para mostrar às mulheres que este mundo é dos homens (show her it's a man's world) e que elas se devem ajoelhar perante eles mesmo quando lhes levam o pequeno-almoço à cama.
Às vezes a publicidade não pensa nem um bocadinho nos efeitos que pode ter, e tem de facto, na sociedade. Este é um caso gritante, até porque a gravata da Van Heusen é tão foleirona que podia ser usada por um palhaço de circo, com calças curtas, sapatos grandes e nariz vermelho. Ninguém estranharia e, nesse caso, poderíamos dizer que este é um mundo de palhaços. Talvez seja verdade.

11.14.2012

conversa 1957

Ela - Hoje rasguei as fotos todas em que estava com o meu ex-marido.
Eu - Rasgaste?! Nunca me passou pela cabeça fazer tal coisa. As minhas fotos com a minha ex-mulher sempre são uma recordação...
Ela - Ah! As minhas também são. Rasguei-as mas só pus no lixo a parte em que ele estava.

11.13.2012

conversa 1956

(na minha casa)

Eu - Vou beber uma Brasa. Queres?
Ela - Uma Brasa?! Que é isso?
Eu - É uma marca de cevada. Dantes tinha uma publicidade na tv que dizia: "parece café mas não é / é Brasa, satisfação / Brasa é a bebida que aquece o coração".
Ela - Acho que me lembro. Já devias ter aprendido alguma coisa com isso.
Eu - Aprendido com o quê?
Ela - Nem tudo o que parece uma brasa, é o que realmente parece.
Eu - Onde é que queres chegar?
Ela - Aí mesmo ao que te acabei de dizer.
Eu - Às vezes não percebo onde queres chegar.
Ela - Eu acho que nunca percebes.

respostas a perguntas inexistentes (229)

Estava numa fase da minha vida em que não recebia muitas chamadas pelo telefone nem muitas visitas em casa. Era raro. Não tinha namorada e a minha vida social anda muito perto do seu nível mais baixo de sempre.
Lembro-me que nesse dia almocei esparguete com tomate e bebi um copo de vinho, uma refeição habitual, quando estou sozinho em casa. Pus a água a aquecer e, quando começou a ferver, uma colher pequenina de sal e o esparguete lá dentro. Contei exactamente onze minutos a partir dessa altura porque sei, por experiência própria, que é o tempo ideal de cozedura no meu fogão e com a minha panela.
Como sempre também, preparei o tomate à parte. Fui ao congelador buscar três deles congelados, pelei-os, cortei-os em pedaços pequenos e atirei-os para uma pequena frigideira onde já tinha um fio de azeite a aquecer.
Cozinhar sempre me deu uma noção de normalidade, porque normalmente faço-o como se fosse um robô. Repito todos os gestos e tempos em todos os pratos, pelo menos aqueles que preparo com mais regularidade. Aliás, cozinhar é algo que gosto de fazer precisamente quando sinto que a minha vida está a fugir dos eixos e, consequentemente, tenho que lhe dar uma injecção de normalidade.
Nesses dias cozinho da forma que acabei de descrever e faço todos os possíveis por não sair de casa. O défice de normalidade dá-me a capacidade de, por exemplo, ter vontade  de ficar a olhar para qualquer um dos quadros que tenho nas paredes durante vários minutos seguidos. Acho que já cheguei a ficar várias horas, com pensamentos que escapam ao meu consciente. Não que sinta alguma coisa de especial por algum deles, mas sim porque eles fazem parte do meu dia-a-dia. Também leio livros que já li, vejo filmes que já vi ou ouço repetidamente as mesmas músicas.
Deixei a louça suja em cima do balcão da cozinha, amontoada sobre a dos três ou quatro dias anteriores, e fui para a varanda tomar café. Numa das janelas do prédio em frente ao meu, uma mulher punha a roupa a secar. Nunca tinha falado com ela, mas já tinha percebido que passava as tardes fechada em casa com um filho muito pequeno, que às vezes trazia à janela e agia como se lhe estivesse a mostrar o mundo pela primeira vez. Por isso mesmo, quando reparei numa peça de roupa que deixou cair, disponibilizei-me para ir buscá-la e entregá-la.
Não fiz isso com nenhuma intenção especial, nem sequer para me mostrar mais ou menos simpático. Acho que foi mesmo apenas uma questão racional. Eu estava sozinho e sem nada para fazer, ela estava com o filho pequeno em casa e por isso teria pejo em sair à rua. Mesmo assim, quando ela me convidou para entrar, aceitei com entusiasmo.
Disse-me que se sentia muito só porque o marido dela era camionista e passava muitos dias seguidos fora de casa. Passámos a tarde inteira na conversa e, depois de eu ir a minha casa buscar duas garrafas de vinho, jantámos juntos. Quando chegou a hora de ela deitar o filho eu despedi-me e saí, mesmo com a insistência dela para eu ficar mais um pouco.
Senti que se ficasse ia acabar por surgir uma oportunidade de nos abraçarmos, beijarmos e talvez dormirmos juntos. Arrependi-me assim que fechei a porta do prédio e senti a estalada do ar frio da rua, mas continuei a andar. Em minha casa tornei a ir para a varanda, desta vez dissimulado pela noite. Acabei por adormecer a olhar para uma janela vazia.

11.12.2012

conversa 1955

Ela - O meu filho está sempre a falar daquela série que viu na tua casa uma vez, quando fui jantar contigo.
Eu - Os Thunderbirds?
Ela - Sim, é isso. Emprestas-me?
Eu - Empresto. Acho fixe o teu miúdo gostar dessa série. Foi feita nos anos sessenta...
Ela - E depois? Eu - Hoje em dia há tantos filmes em 3D para crianças, tão bem feitos, que acho fixe o teu filho gostar duma coisa feita com bonecos há quase cinquenta anos. Mesmo o pessoal da minha idade não costuma gostar nada daquilo.
Ela - Suponho que isso é normal. Eu também fui feita nos anos sessenta, tenho quase cinquenta anos e o pessoal da tua idade não costuma gostar nada de mim.

11.09.2012

coisas que fascinam (155)

falta de ar

Estou parado numa estação qualquer entre Aveiro e Lisboa Santa Apolónia. Sempre que viajo de avião cedo facilmente o lugar à janela. Tirando a primeira vez que voei, ainda era bastante novo, nunca tive grande necessidade de ir a olhar para as nuvens lá fora. Já quando ando de comboio, adoro ir a ver as casas e principalmente as pessoas lá fora.
Alguns pingos de chuva, poucos, riscaram o vidro numa diagonal provocada pela velocidade da composição. Por trás deles surgem abraços e beijos entre os passageiros que acabaram de sair e aqueles que os esperavam. Acho piada. Imagino duas equipas de râguebi a correrem uma contra a outra para acabarem aos abraços e beijos. Afinal de contas, foi mais ou menos isso que aconteceu.
Depois as pessoas separam-se novamente e caminham, normalmente em grupos de dois, para o seu destino. Vejo muitas mãos dadas e ainda mais sorrisos. Sobra um abraço que ainda não se desfez. Um homem careca, de camisola vermelha, e uma mulher morena um pouco mais alta do que ele. Já tive daqueles abraços. São tão bons.
São os abraços de quem sabe que Ama e que é Amado, mas para cujo Amor o que se sabe não chega. Não é suficiente. Precisa-se do toque da mesma forma que se precisa de respirar. Por isso mesmo é que aquele abraço ainda não se desfez. É um abraço de que estava com falta de ar. 

respostas a perguntas inexistentes (228)

o homem que tirava a camisa pelos amigos

Acho que me enganei, durante grande parte da minha vida, sobre essa noção comum que é ser simplesmente amigo de alguém. Talvez por causa de expressões como aquela que diz que se tira a camisa por um amigo. Lembro-me de a ouvir, por exemplo, relativamente a um homem que frequentava um café mesmo ao lado da casa onde cresci. Ouvi dizer que ele, durante a sua vida, tinha provado que era capaz de tirar a camisa pelos amigos. Ganhei-lhe respeito mesmo sem o conhecer, mas passei a estranhar a sua condição.
Era um homem só, tão encolhido quanto envelhecido, envolto numa enorme nuvem de solidão. Cheguei a pensar que eram os pequenos copos de bagaço, que bebia de forma trémula, que o mantinham vivo. Eu devia ter uns doze ou treze anos e fiquei com uma enorme curiosidade pela vida dele. Pelo pouco que sabia, para além de dar a camisa pelos amigos, tinha sido um activo revolucionário antes da Revolução de Abril e torturado várias vezes nas cadeias da PIDE.
Houve uma tarde em que eu estava a ler um livro nesse café (para quem conhece Aveiro, estou a falar do Convívio há cerca de trinta anos) e ele estava, como habitualmente, a beber alguns bagaços e a ser devorado por cigarros sôfregos, que fumava uns atrás dos outros como se quisesse antecipar a própria morte. O silêncio sepulcral dessa tarde foi invadido por gritos dum novo cliente, completamente alterado, que entrou no estabelecimento a chorar e a partir os cinzeiros de vidro que se encontravam nas mesas. Os empregados chamaram imediatamente a polícia e, em grupo, agarram-no e mantiveram-no preso numa cadeira.
Antes que a polícia chegasse, vi o homem capaz de tirar a camisa pelos amigos levantar-se, acalmar todos os presentes, e pedir para ir lá fora dar uma volta com aquele suposto tresloucado. Lá acabaram por soltá-lo e saíram os dois para a rua. Eu continuei a ler.
Já não me lembro muito bem, mas voltaram os dois, passada talvez um hora. Sentaram-se à mesma mesa a conversar. Tudo estava calmo e o café acabou por ser indemnizado pelos cinzeiros partidos. A polícia, entretanto, já tinha chegado e partido sem poder fazer nada.
Esta história seria apenas mais uma história sem importância nenhuma, não fosse eu ter conhecido pessoalmente, no mesmo café uns dez anos mais tarde, esse meu ídolo de infância. Um dia, já nem sei bem como, acabámos na mesma mesa a conversar. No princípio senti-me um miúdo imberbe perante ele, mas fiquei imediatamente à vontade quando ele me disse para o tratar por "tu". Acabei por lhe contar tudo o que sabia dele, mesmo sem o conhecer, incluindo essa coisa pela qual ele era conhecido: tirar a camisa pelos amigos.
A resposta dele surpreendeu-me tanto, mas tanto, que nunca mais a esqueci.

- Eu não tenho amigos, tiro é a camisa por todos os homens que precisarem que eu o faça, porque são homens, tal como eu. Ser amigo é muito fácil do que isso. Se uma amizade não for fácil, então não é amizade.

Fiquei de boca aberta e ele continuou.

- É assim que gostamos duma mulher, quando a nossa relação com ela é fácil, então estamos a falar de Amor.

Por um momento percebi aquela permanente aura de solidão que o acompanhava. Tinha estado apaixonado por uma mulher que já morrera e não se sentia capaz de se renovar emocionalmente. Disse-mo com um enorme hálito a bagaço, mas às vezes é esse o hálito mais sincero que se pode encontrar no mundo. 

11.07.2012

respostas a perguntas inexistentes (227)

Parar

Se houve vezes em que andei na rua com muita pressa foram aquelas em que não tinha para onde ir, não tinha companhia nem tinha disponibilidade para contemplar fosse o que fosse. Quando não se tem nada, andando depressa parece que se tem tudo, pelo menos um destino e vontade de lá chegar.
Aprender a parar quando se está andar depressa demais para lugar nenhum é uma coisa que vem com o tempo. A mim, para além do tempo, foi uma mulher que mo ensinou. Foi por isso que nunca mais me esqueci dela.
Um dia pôs a mão dela no meu peito e disse-me para parar.

- Pára!

Estava simplesmente a fazer o jantar para os dois, depois de um dia em casa a ver filmes ao lado dela. Tinha descascado umas batatas para cozer e descongelado umas postas de pescada. Estava a cortar cebola e salsa para fazer o molho verde quando ela me perguntou o que é que eu estava a fazer.

- O jantar, claro. 
- Eu não tenho fome. Tu tens? - disse ela.
- Não tenho, mas são horas de jantar.

Senti imediatamente o quão ridículo era o que eu tinha acabado de dizer. Estava escravo do relógio e fazia o jantar da mesma forma que andava apressadamente nas ruas sem ter para onde ir, para fingir que tinha tudo quando não tinha nada. Neste caso não a tinha a ela.
Nunca a tive, de facto, mas foi ela que me ensinou a parar.

11.06.2012

respostas a perguntas inexistentes (226)

o gato na cabeça do miúdo lunático

Estou em jejum desde que acordei. Entro no consultório e digo que tenho uma endoscopia marcada para as dez menos um quarto. Peço desculpa pelo atraso sem que a recepcionista levante os olhos na minha direcção. Pergunta-me o nome, a idade, a morada, os números de telefone e de contribuinte sem olhar para mim. Sem me ver.

- São dez euros! - diz.

Eu pago e sento-me. Sinto-me qualquer coisa muito parecida com um código de barras. Aquela mulher pediu-me informação pessoal sem querer conhecer a minha cara, o espelho do que eu sinto. Não lhe interessa. Sou apenas um cliente. Mais um cliente. 
A sala é apertada. Treze cadeiras, das quais apenas três estão vazias, e um tapete vermelho ao centro. Uma mulher choraminga numa delas, quase à minha frente. Não percebo se é de dor ou de medo da doença. Olho-a nos olhos e ela sorri-me timidamente, sem vergonha. Devolvo o sorriso tentando parecer compreensivo.
A recepcionista levanta-se e vem ter comigo. Diz-me que a minha receita tem um desenho na parte de trás e que vai ter que dizer ao doutor, pois não sabe se é válida ou não. Explico-lhe que foi sem querer, que a misturei entre um monte de papéis de rascunho e acabei por desenhar um gato na cabeça de um miúdo lunático. Ela não se ri, não reage emocionalmente. A face dela continua igual, como se de uma escultura em pedra se tratasse. Tenho pena dela.

- Tenho que ir perguntar ao doutor! - E vai.

Gosta de mim, por favor! É o que eu penso, sem pensar muito bem a quem dirijo o pensamento. À Raquel, à minha filha, aos meus irmãos, ao meu pai ou à minha mãe. Aos meu amigos, talvez. Sei lá. E se eu tiver um problema no estômago? Daqui a uns vinte minutos talvez veja a vida a fugir-me, sem sequer me olhar olhos nos olhos. Talvez. Gosta de mim, por favor!

- O desenho é bonito! É o quê? - diz-me um homem que está mesmo ao meu lado.
- É um gato na cabeça dum miúdo lunático. - ele ri-se.

A mulher que choramingava aumentou de intensidade. Agora chora bastante. Tem as duas mãos no rosto e está dobrada sobre ela mesma, encolhida perante o mundo, perante o futuro, perante tudo. Apetece-me ir lá abraçá-la, mas não estou capaz.

- O doutor pode atendê-lo! - ouço.
- Talvez tenha gostado do meu desenho! - penso.

O corredor para o consultório é curto, mas as minhas pernas não querem lá chegar. Por fim abro porta e o médico sorri. Por trás dele estão algumas plantas altas que enchem de vida aquele lugar. Os médicos são o correio da vida e da morte. Fixo-o bem, a tentar perceber que tipo de médico é este. 

- Deite-se na maca! - diz ele por fim.

As lágrimas vêm-me aos olhos, embora eu não esteja realmente a chorar. É uma reacção física ao incómodo do tubo que me vai entrando pela garganta. Estou em sofrimento físico e penso na mulher que chora lá fora, na sala de espera, com um sofrimento que eu não cheguei a descortinar. Faço a endoscopia e, por conselho do médico após a nossa conversa, uma biopsia.

- Não tem nada no estômago, a não ser uma bactéria que convém erradicar! - entrega-me um envelope para o meu médico de família.

Saio e ouço-o a dizer a palavra "próximo". Mais tarde ou mais cedo, todos somos o próximo em alguma coisa. Lembro-me do gato na cabeça do miúdo lunático. Rio-me. Estou cá fora na rua e sinto o doce vento a acariciar-me a face.