3.15.2017

E então vou de pé

E então vou de pé.
É que nunca me sento quando viajo de metro à hora de ponta, mesmo que na estação onde eu normalmente entro ainda costume haver alguns lugares livres. Sei que é uma questão de tempo, pouco, até que pessoas mais velhas do que eu invadam o espaço e o preencham como se fosse um ovo.
E então vou de pé.
A minha mão agarrou-se a um varão horizontal como se a minha vida dependesse disso. A vida não, mas o equilíbrio do corpo sim. Toda a força que faço está concentrada nos meus dedos para contrariar a aceleração e a desaceleração da carruagem.
E então vou de pé.
Ali dentro todos os olhares se escondem, a maior parte deles no ecrã de um telemóvel ou num livro. Os outros, aqueles que não têm um esconderijo próprio, colam-se a coisas tão absurdas como os próprios pés ou o vazio. Se fosse possível desenhar uma recta a partir de cada um desses olhares, tenho a certeza que nenhuma delas tocava noutra. É estranho, todos os olhares irem dar a um infinito dentro de uma carruagem de metro que me parece tão finita.
E então vou de pé e pergunto-me se a vida é só isto: uma viagem matinal para um trabalho que permite a toda a gente viver uma vida de que, pelo menos neste momento, parece não gostar muito. Pergunto-me se a vida é um homem cujo olhar se derreteu na palma da própria mão, uma mulher que encostou a cabeça a um vidro trémulo ou esta voz repetitiva a anunciar cada estação que se aproxima.
E então vou de pé. A vida é só isto?
Sou um explorador numa densa e quieta floresta de braços e pernas. Silenciosa também. Sem bússola, os meus olhos percorrem-na como se fossem uma afiada catana. Descobrem um outro olhar, também perdido, que talvez se pergunte o mesmo. Diz-me adeus. Respondo com um sorriso. É uma mulher a quem pedi ajuda uma vez quando estava totalmente perdido num dos bairros da cidade.
E então vou de pé. Já sei que a vida não é só isto.

3.07.2017

respostas a perguntas inexistentes (376)

A cidade

Vivo nos subúrbios de Sófia, onde os velhos edifícios me lembram as torres de caixotes de papelão que eu fazia quando era criança. Parece que se vão desmoronar a qualquer momento, mas uma força qualquer sobrenatural faz com que se mantenham em pé desde o período em que o país era comunista. O tempo que passou por eles passou também por mim, e revejo as cidades que eu construía na casa dos meus pais nessa infância que teima em não me dizer adeus.
Hoje de manhã, quando saía para o trabalho, cruzei-me com uma vizinha que me sorriu timidamente e me cumprimentou em português. Ensinei-a a dizer "Bom Dia" há alguns meses, mas depois disso nunca mais a vi. Até hoje, claro. Ainda se lembrava da nossa pequena conversa de apresentação e permitiu-me ouvir a minha língua materna logo pela manhã. Respondi-lhe em búlgaro, agradecido.
É claro que podemos ver a cidade como uma série de caixotes amontoados, em esforço para se manterem em pé. Podemos ver-lhe as igrejas, os jardins e o intenso trânsito de automóveis normalmente velhos e ruidosos, mas nunca a conhecemos mesmo enquanto não nos cruzarmos com um vizinho de manhã na escada do nosso prédio. Era essa a maior curiosidade da minha infância: como seriam as pessoas das cidades improvisadas por mim.
O tempo trouxe-me também o Amor de uma mulher. Depois de outra e mais outra. Aprendi, felizmente, pouco sobre essa matéria, mas o suficiente para saber que ele é como uma cidade. O que nunca percebi é se devemos procurá-lo a ele ou se é melhor que ele nos encontre a nós, por acaso, numa esquina e numa hora ao acaso. Falo ainda do Amor, claro.
Às vezes, muitas vezes, sou só eu e a cidade. É com ela que falo sobre isso enquanto caminho só. Os eléctricos mastigam o alcatrão da estrada velha, as pessoas caminham como se fossem formigas assustadas e os automóveis roncam como animais enfurecidos. A minha vizinha afasta-se e diz-me adeus com a mão esquerda, enquanto com a outra segura um saco térmico com o que suponho ser o almoço. Nunca senti falta desta cidade antes de a conhecer. E no Amor?

3.02.2017

respostas a perguntas inexistentes (375)

deserto

Tomo um café logo pela manhã numa bomba de gasolina. É estranho, este prazer de sentir os primeiros aromas da Primavera misturados com o cheiro a alcatrão e a petróleo. Uma mulher bonita acabou de passar por mim, depois de pagar o seu abastecimento, e partiu num velho desportivo vermelho deixando atrás de si uma pequena nuvem de poluição. Ia em passo apressado, como se toda a vida dependesse da sua capacidade de chegar a tempo ao seu destino. Se eu pudesse dizer-lhe alguma coisa, era que a vida continuou depois dela partir. Mas não posso.
O que aconteceu então foi que um funcionário deixou cair um tabuleiro com copos e canecas de café que se desfizeram em cacos num barulho ensurcedor. Por um momento todos os presentes olharam por breves segundos para o local da explosão e logo voltaram aos seus pensamentos e pequenas acções. Eu também. A minha pequena acção foi terminar de comer uma fatia de banitsa com abóbora e agora o meu pensamento navega pelos desertos do meu passado.
De certa forma, todos encontramos desertos nas nossas vidas, sejam eles de trabalho, de alegria, de afeto ou de outra coisa qualquer. Quase todos os meus desertos foram de Amor e deram em longas viagens pelas áridas dunas de areia que se formam em nós quando a nossa palma da mão também se sente deserta. Penso numa dessas viagens e nas fotografias que fiz. De certa forma, vim dar aqui, a este país e a esta estação de serviço.
Todos os Amores têm sabor. Podem ser doces ou amargos, verdes ou maduros, insossos ou apurados. Só lhes sentimos o sabor se soubermos fazer cada um desses desertos a que a vida nos obriga ou, pelo menos, é nisso que acredito.
A banitsa soube-me bem. Tinha abóbora, queijo branco e, claro, massa folhada.