4.28.2013

conversa 2008

Ela - Então, está tudo bem?
Eu - Não posso estar ao telefone contigo. Estou em Istambul e é muito caro.
Ela - Estás em Istambul? Sortudo.
Eu - Não posso é estar aqui ao telefone...
Ela - Estás a gostar?
Eu - Sim. Depois falamos...
Ela - Quanto é que foi a viagem?
Eu - Depois falamos.Pára de fazer perguntas. Olha! Vou desligar...
Ela - Nunca me queres ouvir...
Eu - Não é isso...

 (fiquei sem saldo)

4.25.2013

coisas que fascinam (160)

Istambul 

Lembro-me de acordar muito devagar, embalado pelo suave soluçar do comboio que atravessava a Europa, por sentir que alguém tinha entrado no mesmo compartimento onde, até então, eu tinha viajado sozinho. Quando abri os olhos vi uma mulher bonita, de olhos tão azuis como o céu que espreitava pela janela. Lia um livro cujo autor e título eu não conhecia. Estávamos algures na Alemanha, e desejei secretamente que ela se dirigisse para o mesmo e longínquo destino que eu, fosse ele qual fosse.

Lá fora, alguns telhados de casas pontilhavam uma misteriosa floresta densa e escura. De vez em quando, a espaços, algumas pessoas marcavam presença nas janelas ou nos quintais, uma demonstração de que ali existia vida humana. A paisagem, a mim, lembrava-me mais o cenário dum conto fantástico, povoado apenas por bruxas, duendes e espíritos milenares.

Num troço do percurso, sem motivo aparente, o comboio diminuiu bastante a velocidade, e tive a sensação que alguns espantalhos de palha e roupas velhas nos observavam com curiosidade. Entre dois desses espantalhos, uma criança que brincava a alguns metros de dois agricultores levantou-se e disse-nos adeus. Sorri perante aquele gesto, de levantar a mão direita e abaná-la como o pêndulo de um relógio antigo virado ao contrário, por concluir que faz parte duma linguagem universal, comum a quase todo o planeta. Talvez mesmo todo o planeta, pensei. Depois respondi fazendo exactamente o mesmo.

Reparei então que a viajante que entrara no meu compartimento me observava pelo canto do olho, mas quando lhe devolvi o olhar, ela voltou à sua leitura como se nela estivesse muito compenetrada. Aproveitei esse momento para a analisar ao pormenor. Tinha uma face bastante magra e o queixo saliente, supostamente capaz de fazer um sorriso bonito que eu não cheguei a conseguir ver. Era loira, ancas relativamente largas e oprimidas por umas calças pretas demasiado apertadas.

Por qualquer motivo que não percebi, fiquei com uma vontade enorme de falar com ela, de a conhecer, de saber de onde vinha, para onde ia e o que pensava do mundo. Levantei-me instantaneamente e tirei da mochila um termo de café quente que uma amiga me tinha oferecido em Paris, ao qual era possível subtrair duas canecas de plástico, e servi-me duma chávena fumegante. Depois, assim como quem não quer a coisa, perguntei-lhe em inglês se era servida. Para meu espanto ela disse que sim.

Era russa e viajava para a Ucrânia. Tinha saído nessa manhã de Lille, em França, e ia encontrar-se com a namorada em Kiev. Tinha medo de andar de avião, confessou antes de me começar a fazer perguntas sobre mim.
Tem que haver qualquer coisa de muito especial entre algumas pessoas, pensei eu, para que nos interessemos por trivialidades referentes a pessoas que acabámos de conhecer. E há mesmo. Apesar de eu nunca ter visto aquela mulher antes, era genuíno o meu interesse pela origem e passado dela.

Expliquei-lhe que vinha de Paris, onde tinha estado três dias, e não sabia para onde ia. No entanto, com alguma sorte talvez acabasse em Istambul dentro de um dia ou dois. Era verdade que nessa viagem eu não sabia para onde ia. Sabia apenas que quando aquele comboio chegasse ao seu destino, na Áustria, eu procuraria imediatamente outro para outro sítio qualquer. Istambul era apenas uma das cidades que eu mais queria conhecer, e portanto um dos possíveis destinos para quem se podia dar ao luxo de simplesmente mudar de direcção em qualquer momento.

- Vais ter com alguém? - Perguntou-me ela.
- Não. Estou a viajar sozinho.
- Não se deve ir a Istambul sozinho. É uma boa cidade para quando estamos apaixonados.

Não percebendo muito bem porque é que ela me disse aquilo, acredito que tenha sido o motivo para eu não ter lá ido. De certa forma, acreditei que o que podia ganhar ao visitar Istambul, poderia perder no exacto momento em que me visse sozinho e, portanto, sem ninguém para partilhar a experiência. 

Passaram-se anos desde então, e nunca cheguei a visitar aquela cidade dos meus sonhos. Vou fazê-lo amanhã e durante a próxima semana, porque neste momento me encontro nas condições definidas por essa efémera companhia de viagem há muitos anos atrás.

Depois de todo este tempo, se algum dia a encontrar por aí, num dos escaninhos deste planeta, tenho a certeza que a poderei identificar pelo queixo. Talvez lhe agradeça o conselho. Talvez a veja sorrir. Talvez até lhe diga que já estou em condições de visitar Istambul.

4.23.2013

Estarreja rules!


Enquanto estava na fila para ser atendido numa repartição das finanças aconteceu aquele pequeno incidente. Ao meu lado sentou-se a mulher mais bonita do mundo, pelo menos no que era o mundo naquele momento e naquele sítio. Quando chegou a minha vez de ser atendido, dirigi-me ao balcão e disse adeus àquela fogosa paixão. Nesses dez minutos de espera, aquele Amor foi a coisa mais importante da minha vida.
O meu mundo tem essa mania de ser aquilo que pode ser. Nem mais, nem menos. Está, por isso, condicionado pelo espaço, pelo tempo e por quem o partilha comigo. As paixões, neste âmbito, podem ser uma coisa estranha.
Hoje de manhã, durante mais de uma hora, o meu mundo foi a Biblioteca da Escola Secundária de Estarreja, onde estive a conversar com algumas dezenas de alunos sobre o que ando aqui a fazer, sobre o que andamos todos aqui a fazer.
Serve o presente para agradecer aos que me aturaram durante esse espaço de tempo e aos que proporcionaram a oportunidade. Estarreja rules!

4.22.2013

respostas a perguntas inexistentes (251)

É a hora do almoço e Dora não tem fome 

É a hora do almoço e Dora não tem fome. Saiu da cama há apenas alguns minutos, depois de ter estado algumas horas naquele limbo delicioso que é vaguear entre o sono e a luz, espreguiçando-se espaçadamente como se fosse um gato sem preocupações. Por falar em gatos, o Kiko também só agora deu sinais de vida, miando desesperadamente ao pé da taça de comida vazia.
Ontem tiveram uma longa conversa os dois, Dora e o gato, que é o mesmo que dizer que ela passou toda a noite a falar consigo mesma, enquanto o felino ronronava fingindo compreensão. É motivo mais do que suficiente para ter inveja do Kiko, esta forma de viver cuja maior preocupação é o abastecimento da sua taça de comida. Quem lhe dera a ela conseguir preocupar-se apenas com o que se encontra dentro do seu frigorífico e da despensa. Não consegue, e por isso é que às vezes passa as noites em claro.
As conversas que tem com ela mesma são normalmente aquelas que não teve com quem era suposto. Nem quando era suposto. Ontem, por exemplo, teve um jantar silencioso com o marido. Nem sequer saber do que lhe queria falar, nem sequer sabe o que lhe queria ouvir. Sabe, no entanto, e com toda a certeza do mundo, que queria que as palavras de ambos se beijassem no ar. Não beijam.
É a hora do almoço e Dora não tem fome. Encosta-se à janela, de onde pode ver todo aquele formigueiro excitado que é Lisboa quando almoça. Pergunta-se quantas pessoas daquelas terão conversado com o seu Amor no jantar de ontem à noite. Não sabe a resposta. O gato também não.

4.19.2013

conversa 2007

(na minha casa)

Ela - Estou outra vez solteira.
Eu - A sério?!
Ela - Sim. Eu e o Daniel acabámos ontem.
Eu - Então?
Ela - Então... eu sou muita mulher para ele. Ele não aguentava comigo...
Eu - Não acho que sejas mais pesada do que ele...
Ela - Bem, vou embora.
Eu - Já?!
Ela - Sim. Estar a falar contigo ou com uma parede é a mesma coisa.
Eu - Lá estás tu.
Ela - Percebes que eu não estava a falar do meu peso, nem do peso do Daniel?!
Eu - Estavas a falar de quê?
Ela - Estava a falar da maneira de ser. Ele não aguentava com a minha maneira de ser.
Eu - Pronto, desculpa. De qualquer maneira vai dar ao mesmo.
Ela - Ao mesmo?!
Eu - Sim. Também não acho que sejas mais chata do que ele.
Ela - Às vezes pergunto-me porque é que continuo a ser tua amiga...

4.17.2013

pensamentos catatónicos (293)

Um bêbado senta-se ao meu lado num café dos subúrbios onde, para além de mim, só está o dono. É um homem gordo, com um lápis atrás da orelha que vai tirando para fazer contas num caderno que o tempo pintou de amarelo.
Fui até lá de bicicleta e, para ser sincero, nem sequer sei bem onde estou. Não sou dali, daquele subúrbio de Aveiro onde nunca estive antes, e o bêbado sabe-o. Eles conhecem-se bem, tão bem que um copo cheio de vinho tinto aparece subitamente em cima do balcão.
Estou a escrever na minha imitação de moleskine, mas ainda nem sei bem sobre o que estou a escrever. Tenho algumas frases que talvez venham a dar alguma coisa. Ou talvez não, penso.

- A poesia é sempre erótica! - diz o bêbado.

Eu rio-me. Desconfortável por ele estar a olhar para mim, mas rio-me.

- Quando escrevemos poesia fazemos Amor com as palavras! - insiste ele.

Continuo a rir, embora tente engolir o riso.

- Eu sou bêbado porque nunca fui bom a fazer Amor com as palavras! - conclui.

O homem serve-lhe outro copo, que ele bebe duma só vez. Dá-me uma pancadinha nas costas e vai-se embora. Eu rio-me, mas fico a pensar no que ele disse. Também peço um copo de vinho.

4.15.2013

pensamentos catatónicos (292)


a cebola faz chorar

Anabela não sabia morrer. Às vezes pensava nisso e chegava sempre à conclusão que era bom a morte ser inevitável, caso contrário nunca conseguiria pôr termo à vida. Se não sabia morrer, muito menos sabia matar-se. A sua morte chegaria um dia, portanto, da mesma forma que outra coisa qualquer. Picar cebolas, por exemplo. Anabela não sabia picar cebolas, mas fazia-o sempre que decidia cozinhar um refogado.
Lembra-se de, em criança, ver a mãe de barriga encostada à banca da cozinha a picar cebolas, com um avental branco que tinha o desenho duma árvore. Era incrível como, apenas com uma simples faca, a cebola ficava tão bem picada. Aliás, às vezes parecia que aqueles bocadinhos pequenos de cebola eram todos iguais e, por isso, esculpidos à medida. A mãe era, de facto, uma artista na cozinha, e depois chorava sempre um bocadinho.

- A cebola faz chorar! - dizia então.

Anabela também chora quando tenta picar cebolas da mesma maneira. Só não tem a certeza que seja por causa delas. Aqui há uns dias passou a tarde a sentir-se sozinha, depois de um almoço silencioso com o namorado. Nunca chorou, apesar da tristeza, até chegar o momento de picar cebolas para o jantar. Ao fazê-lo, os seus olhos transformaram-se em cascatas. O namorado passou por trás sem dizer nada (ainda não tinham trocado palavra nesse dia), mas ela sentiu-se na necessidade de se justificar.

- A cebola faz chorar! - disse.

Ao almoço, ela tinha posto em cima da mesa uma panela de massa com tomate e carne estufada. O namorado sentou-se e não a cumprimentou. Também não comeu nada do que lá estava. Limitou-se a ir ao frigorífico buscar um pouco de pão e queijo levou para o sofá e devorou enquanto via televisão.
Ela levantou-se em silêncio, arrumou o prato e os talheres dele na gaveta da cozinha. Depois guardou as sobras no frigorífico e foi para a janela ver se o mundo lá fora ainda estava vivo. Estava, ou pelo menos parecia. Dois pardais disputavam um pedaço de pão no passeio e uma mulher passeava um cão do outro lado da rua. Era só ali dentro de casa dela que as coisas pareciam ter parado de repente. Durante o resto da tarde, como já disse, não chorou.
Não chorou, mas chegou a uma conclusão. Os momentos mais importantes da vida não são aqueles em que os outros nos dão importância. São sim, aqueles em que decidimos alguma coisa. Por exemplo, decidir ter um cão, ir passear à praia, comer um chocolate ou sorrir a um desconhecido na rua são momentos importantes. São eles que definem a nossa vida no tempo seguinte. Da mesma forma, decidir cortar cebola para poder chorar à vontade, também é uma decisão importante.
Desta forma, a decisão que tinha tomado de namorar com aquele homem, tinha feito com o que o tempo seguinte tivesse este dia incluído, com um silêncio tão imperceptível quanto incomodativo. Bastaria, num momento qualquer, decidir não namorar mais com ele e tudo mudaria.
Por hoje, Anabela decidiu apenas abraçar-se a si mesma, e nesse abraço tentar agarrar o vento que corre interminavelmente pelas ruas da cidade. Decidiu sentir-se feliz por poder optar por brincadeiras improvisadas nessa dança solitária, como pisar apenas os riscos brancos nas passadeiras quando as atravessa, chutar pedrinhas brancas em direcção aos buracos de esgoto como se quisesse marcar um golo ou, depois mais à noite, picar cebola para chorar à vontade. E, claro, dizer que a cebola faz chorar.

coisas sobre mulheres que leio nas portas de casas de banho públicas (6)

Não gosto das novas casas de banho dos restaurantes e dos shoppings. Já não são como antigamente, em que a porta e as paredes estavam repletas de escritos e sabedoria popular. Agora estão sempre limpas, o que é o mesmo que dizer vazias de conteúdo. É muito raro encontrar uma casa de banho à antiga, embora uma vez por outra ainda seja possível, num restaurante duma estrada nacional ou num tasco esquecido dos subúrbios da cidade.
Também é verdade que a internet acabou em grande parte com esta forma de comunicação. Agora escrevemos qualquer coisa num blogue ou numa rede social e ela é lida por milhares de pessoas. Dantes, as portas das casas de banho públicas eram a melhor garantia de chegar a um grande número de pessoas. Nos anos setenta e oitenta, as casas de banho eram a rede social mais popular do mundo.
O problema estava na questão de género. Como as casas de banho eram divididas por géneros, também o eram todos os posts escritos a caneta, esferográfica, ou até com um isqueiro queimando a madeira das portas. Aquilo que um homem escrevia, era lido apenas por homens. O mesmo se passava com as mulheres.
Pensei nisto hoje por causa da Eva, que me ligou logo de manhã para combinar um café. Lembro-me dela me ter explicado uma vez, há muitos anos, que para Amar alguém temos primeiro que gostar de nós mesmos. 
Discordei e, a meio de algumas cervejas e argumentos, interrompi a coisa para ir à casa de banho. Mesmo à minha frente, por cima do autoclismo, alguém tinha pintado com um grosso marcador preto: "Odeio-me a mim mesmo, mas estou apaixonado por ela!". 
A discussão chegou a um ponto em que, com este meu último argumento e a pedido da Eva, fiquei à porta da casa de banho dos homens durante dois minutos, para ela poder entrar e ler a frase com os seus próprios olhos. Insistiu que tinha sido eu a escrever a frase. Desmenti.
Coincidência ou não, deu-me hoje razão nessa matéria. Uns vinte e cinco anos depois. 

- Preciso tomar um café contigo - disse.

4.11.2013

conversa 2006

Ela (ao ver-me) - Grande carecada!
Eu - É que corto o cabelo a mim mesmo com a máquina, percebes? Vou cortando até ficar todo igual, mas só consigo quando o pente é mesmo muito curto.
Ela - Ah! Já me aconteceu.
Eu - Já?! Não me lembro de te ver com o cabelo rapado.
Ela - Não foi na cabeça, totó!

4.10.2013

respostas a perguntas inexistentes (250)

- Pára de olhar para as outras mulheres - disse ela.

Todos no café ouviram, incluindo a mulher em quem aquele homem pousava brandamente os olhos. Era bonita, e também eu fizera o mesmo. Aliás, dei comigo a dar goles num copo de cerveja já vazio durante o processo. A mulher dele é que não gostou. Deu-lhe um puxão no braço e marcou território com aquele grito.
Eu gosto que a minha companheira de vida olhe para outros homens. Gosto até que suspire por eles. É a única forma que tenho de ter a certeza que ela me escolheu entre todas as possibilidades, apesar de haver muitas. Se ela olhasse só para mim, talvez andasse comigo apenas por ignorância.
Eu gosto de olhar para outras mulheres. Aliás, é depois de me deliciar com a sua presença que fico com a certeza de por quem estou apaixonado. Há tantas mulheres bonitas, que não pode ser só por isso que sinto isto que sinto. A definição de Amor, a existir, anda por aí.
Olhar para uma mulher bonita é o melhor dos museus. Apreciamos verdadeiramente aquilo que vemos, jogando ao mesmo tempo para que o nosso olhar não se torne invasivo. Mesmo que para isso tenhamos que dar um gole num copo de cerveja já vazio, vestir um casaco do avesso ou ir contra o poste dum sinal de trânsito.
Olhar para uma mulher bonita não significa ser voyeur. Significa, já que há tantas por aí, estar permanentemente a inspirar fundo como se estivéssemos a ver pela primeira vez as cataratas do Niagara.

- Não pares nada! - diria eu àquele homem.

Mas não disse.

4.09.2013

conversa 2005

(ao telefone)

Ela - Ando a comer tão mal...
Eu - A sério?!
Ela - Sim.
Eu - Epá! Vou fazer umas pizzas para o jantar. Queres vir jantar aqui a casa?
Ela - Não me entendeste. Ando a comer demais.
Eu - Pensei que tinhas dito que andavas a comer mal.
Ela - E disse...

4.08.2013

tenho marido na Ucrânia


Nunca pensei tornar a vê-la. Na verdade, para ser sincero, já nem tinha bem a certeza da sua existência real. Talvez tivesse sido apenas um produto da minha imaginação, naquela altura em que a minha mente criava mulheres em série, como se fosse uma fábrica no auge da sua vida produtiva.
Não a reconheci por nenhum traço fisionómico, nem sequer pelo cheiro ou pela voz. Ia simplesmente a caminhar entre a multidão quando um som se destacou na cidade. Era o bater duns saltos altos nas pedras do passeio, quase igual e tão diferente de tantos outros. Pensei: “é ela”. Olhei para trás e era mesmo.
Num quiosque mesmo ao lado vendiam-se cartões telefónicos que prometiam bastantes minutos de conversa para países como a Roménia, Ucrânia, Turquia ou Grécia. Fiquei a pensar naquela venda que tratava o tempo como um produto consumível, como se fosse um tinteiro de impressora ou um frasco de polpa de tomate. No nosso caso, o tempo tinha sido isso mesmo, um consumível de pavio curto. Se no princípio tudo me parecera bem, assim que os nossos corpos se tocaram uma última vez tudo passou a ser uma vertigem.
Eu não andava à procura de nada, nem sequer de sexo, no dia em que ela se sentou ao meu lado do balcão dum bar e me pediu lume. A sensação de poder Amar alguém estava tão distante como um barco que lentamente partira em direcção à linha do horizonte, e eu pouco mais fazia do que trabalhar e ver jogos de futebol enquanto me embebedava num tasco qualquer.

- Não fumo! - respondi.
- Ainda bem. Eu também não...

Depois sorrimos ao mesmo tempo e pedimos mais um copo. Não sei, escusado será dizer, quanto ficou o jogo dessa noite. Sei que eram seis da manhã quando ela se levantou e se foi embora sem se despedir. Eu, a fingir que dormia, deixei-a ir conforme combinado. Lembro-me do som dos sapatos de salto alto, num ritmo fora do normal. Aliás, nunca mais me esqueci.
Era ela. Reconheci-a por esse mesmo som. Olhei para trás e vi-a comprar um desses cartões que nos dão tempo como se dessem vinho. Lembrei-me do acordo que fiz com ela nessa noite e retomei o meu caminho sem lhe dizer nada.

- Tenho marido na Ucrânia. Só preciso de alguém por uma noite.
- Está bem, então... - disse.

4.06.2013

conversa 2004

(ao telefone)

Eu - Vamos beber um copo?
Ela - Até ia, mas estou tão cansada que só me apetece dormir. Aliás, isto é sempre assim. Trabalho tanto durante a semana que passo os fins de semana a dormir. Quando finalmente me sinto em forma, já tenho que ir trabalhar outra vez.
Eu - Dito assim, é como se a vida te estivesse a passar ao lado.
Ela - E está mesmo. Não faço mais nada senão trabalhar, dormir e...
Eu - E quê?
Ela - E...
Eu - E sexo?
Ela - Não.
Eu - Ir ao cinema?
Ela - Não.
Eu - Ir às compras?
Ela - Nem por isso. É mesmo limpar a casa.
Eu - Desisto.
Ela - Eu também desisto.
Eu - Desistes?! Então bebemos um copo?
Ela - Não. Vou dormir.

4.05.2013

respostas a perguntas inexistentes (249)

Quando eu era criança frequentei exactamente as mesmas escolas que a minha filha tem frequentado agora, em Aveiro, algumas décadas depois. São exactamente as mesmas escolas, os mesmos edifícios e, em alguns momentos, até os mesmos cheiros. Para além duma ou outra obra de menor importância, a única coisa que mudou foi a entrada. Na minha altura as escolas estavam sempre de portas abertas, tanto para sair como para entrar. Agora têm porteiro e umas longas vedações.
As escolas são, antes de outra coisa qualquer, lugares. Lugares onde é suposto ensinar e aprender qualquer coisa, não apenas através da relação entre o aluno e o professor, mas também no estabelecimento do nossos primeiros laços sociais. Não critico, obviamente, a política de segurança nas escolas, mas tenho a percepção que estas crianças de hoje não têm o mesmo leque de opções que eu tive. 
Eu saía da escola para ir dar pão aos patos do parque, para brincar nos milheirais (que entretanto se transformaram num imenso bairro social), para andar de barco ou, muito simplesmente para sair desse lugar. A minha filha está confinada àquele espaço, assim como todos os seus colegas. Admito que hoje, enquanto esperava para poder falar com o porteiro da escola, pensei nisso como uma espécie de prisão. Fiquei com um nó no estômago. Afinal de contas, foi no princípio da adolescência que comecei também a percorrer esse longo e imenso pântano que é o Amor. Percorri-o, por exemplo, através duma árvore que era só minha e da Helena e que, só por acaso, ficava fora da escola.
Já não existe, essa árvore. Foi deitada abaixo para a construção duma avenida. Mas o que ainda existe é esse lugar que, apesar de tudo, faz parte da minha vida e me traz doces recordações. Entreguei o que tinha para entregar e voltei para o automóvel. Também nós somos lugares, pensei. Espero que a minha filha não se deixe transformar ela mesma num lugar fechado, com porteiro e altas vedações. Eu tentei nunca fazê-lo e, duma forma ou de outra, acho que é por isso que consigo estar apaixonado hoje, tal como estive na adolescência.

4.02.2013

conversa 2003

Ela - Hoje apetece-me ter sexo.
Eu - Caramba! Dizes-me isso assim, porquê?
Ela - Desculpa. Estava a pensar alto. Acho que vou mandar uma mensagem ao meu namorado.
Eu - A dizer que hoje te apetece ter sexo?
Ela - Sim. É que quase nunca me apetece e ele anda um bocado chateado, mas hoje apetece-me.
Eu (silêncio)
Ela - Na verdade até anda amuado.