a cebola faz chorar
Anabela não sabia morrer. Às vezes pensava nisso e chegava sempre à conclusão que era bom a morte ser
inevitável, caso contrário nunca conseguiria pôr termo à
vida. Se não sabia morrer, muito menos sabia matar-se. A sua morte
chegaria um dia, portanto, da mesma forma que outra coisa qualquer.
Picar cebolas, por exemplo. Anabela não sabia picar cebolas, mas
fazia-o sempre que decidia cozinhar um refogado.
Lembra-se de, em criança, ver a mãe
de barriga encostada à banca da cozinha a picar cebolas, com um
avental branco que tinha o desenho duma árvore. Era incrível como,
apenas com uma simples faca, a cebola ficava tão bem picada. Aliás, às vezes parecia que aqueles bocadinhos pequenos de cebola eram
todos iguais e, por isso, esculpidos à medida. A mãe era, de facto,
uma artista na cozinha, e depois chorava sempre um bocadinho.
- A cebola faz chorar! - dizia então.
Anabela também chora quando tenta picar
cebolas da mesma maneira. Só não tem a certeza que seja por causa
delas. Aqui há uns dias passou a tarde a sentir-se sozinha,
depois de um almoço silencioso com o namorado. Nunca chorou, apesar
da tristeza, até chegar o momento de picar cebolas para o jantar. Ao fazê-lo, os seus olhos transformaram-se em cascatas. O namorado passou por
trás sem dizer nada (ainda não tinham trocado palavra nesse dia),
mas ela sentiu-se na necessidade de se justificar.
- A cebola faz chorar! - disse.
Ao almoço, ela tinha posto em cima da
mesa uma panela de massa com tomate e carne estufada. O namorado sentou-se e não a cumprimentou.
Também não comeu nada do que lá estava. Limitou-se a ir ao
frigorífico buscar um pouco de pão e queijo levou para o sofá e devorou enquanto via televisão.
Ela levantou-se em silêncio, arrumou o prato e os
talheres dele na gaveta da cozinha. Depois guardou as sobras no
frigorífico e foi para a janela ver se o mundo lá fora ainda estava
vivo. Estava, ou pelo menos parecia. Dois pardais disputavam um pedaço
de pão no passeio e uma mulher passeava um cão do outro lado da
rua. Era só ali dentro de casa dela que as coisas pareciam ter
parado de repente. Durante o resto da tarde, como já disse, não
chorou.
Não chorou, mas chegou a uma conclusão. Os momentos mais importantes da vida não são aqueles em
que os outros nos dão importância. São sim, aqueles em que
decidimos alguma coisa. Por exemplo, decidir ter um cão, ir passear
à praia, comer um chocolate ou sorrir a um desconhecido na rua são
momentos importantes. São eles que definem a nossa vida no tempo seguinte. Da mesma forma, decidir cortar cebola para poder chorar
à vontade, também é uma decisão importante.
Desta forma, a decisão que tinha
tomado de namorar com aquele homem, tinha feito com o que o tempo
seguinte tivesse este dia incluído, com um silêncio tão
imperceptível quanto incomodativo. Bastaria, num momento qualquer,
decidir não namorar mais com ele e tudo mudaria.
Por hoje, Anabela decidiu apenas
abraçar-se a si mesma, e nesse abraço tentar agarrar o vento que
corre interminavelmente pelas ruas da cidade. Decidiu sentir-se
feliz por poder optar por brincadeiras improvisadas nessa dança
solitária, como pisar apenas os riscos brancos nas passadeiras
quando as atravessa, chutar pedrinhas brancas em direcção aos
buracos de esgoto como se quisesse marcar um golo ou, depois mais à
noite, picar cebola para chorar à vontade. E, claro, dizer que a cebola faz chorar.