5.17.2020

O Síndrome do Peixinho Vermelho

Estou com o síndrome do Peixinho Vermelho, disse ela. Estávamos numa floresta dum país que não era o nosso, até porque eu sou português e ela de lugar nenhum. Só me lembro que as árvores eram muitas e cada uma se tinha vestido duma cor diferente, como se estivessem num baile de finalistas.

E eu perguntei-lhe que raio de síndrome é esse. Não perguntei porque realmente estivesse interessado em saber, mas sim porque tinha acabado de me apaixonar por ela. Sempre que me apaixono por alguém e não tenho coragem de o dizer, faço perguntas. Sabia que se ela fosse respondendo, pelo menos ficava perto de mim.

A alguns metros de nós seguia um lobo que de vez em quando se aproximava apenas para pedir uma festa no focinho. Era esse o pagamento para ele nos guardar. De vez em quando rosnava para afugentar os sinais de vida que se moviam por ali como se fossem um vento esguio. Eu não os via, mas sentia-os a abanar as folhas e os ramos coloridos.

E então ela explicou-me o síndrome. É ouvir a mesma música muitas vezes seguidas com auscultadores como se a nossa vida dependesse disso e reparar que as pessoas falam umas com as outras como se fossem eternas.

Eu sorri. As árvores dançaram num assobio e o lobo rosnou. Não sei muito bem explicar porquê, mas foi a primeira vez que fiquei realmente feliz por ele estar ali. Aproximou-se e fiz-lhe uma festa.

E eu perguntei-lhe como é que as pessoas que pensam que são eternas falam. Não que eu quisesse realmente saber, claro. Falam das coisas que não interessam nada para sermos felizes mas sim e apenas para uma entidade abstrata qualquer chamada Economia, disse. São como aqueles peixinhos vermelhos que andam sempre em círculos num aquário redondo.

O lobo rosnou. As árvores fizeram silêncio. Eu também.

E ela olhou para mim e disse-me para continuar a fazer perguntas. Enquanto eu as fizesse, ela responderia e ficaria perto de mim. Precisava saltar fora do aquário.

Pode não parecer, mas esta é uma história de Amor.

2.19.2020

pensamentos catatónicos (351)

Estou no comboio entre Manchester e Londres. Entrei apenas em Stoke-On-Trent e vou sair em Wolverhampton, onde tenciono apanhar uma ligação secundária para Cosford. É lá que existe um museu da Royal Air Force e uma base aérea militar importante que pretendo visitar.

Levo no pensamento que esta viagem de comboio pode ser um pouco como a vida. Entramos ignorando o passado e saímos desconhecendo o futuro. São assim o nascimento e a morte. É assim a vida e tento reconfortar-me precisamente com a ideia de que quando sair vou para outro lugar.

Em Stafford a vida faz uma paragem. As portas abrem-se e ajudo uma mulher a carregar duas malas pesadas para dentro do comboio. É a única passageira que entra, pelo menos pela porta onde eu estava encostado e perdido nos meus pensamentos. Dou-me então conta de que sou o único que decidiu não se sentar e seguir a viagem em pé. Ela agradece-me com um sorriso forçado. É bonita e é Inverno. Tem a pele feita de neve e o olhar azul e frio esculpido em gelo.

Enquanto eu coloco as malas, uma a uma, nas prateleiras que os comboios da Cross Country têm para o efeito, ela vira-se para a porta aberta. Lá fora três pessoas acenam um adeus em gestos lentos. São duas mulheres mais velhas e um rapaz que não deve ser ainda maior de idade. Bye, vão dizendo como se fossem um coro desafinado.

Conheço aquele adeus. Vi-o na minha mãe quando emigrei. É um adeus tortuoso, uma tristeza grande escondida por um sorriso maior. Depois o comboio apita e a porta fecha-se. É a vida que continua apesar de nós, apesar do que sentimos e do que queremos. Apetece-me abraçar a menina Inverno mas não o faço. Ela torna a agradecer-me e vai-se sentar. Thank you, diz.

Pudesse eu ser Primavera por um momento e abraçava-a. Ter a pele quente e os olhos dum campo florido qualquer. Mas não tenho. Adivinho que ela amanhã vai estar tão longe quanto eu estou agora e desejo-lhe sorte. Se é que isso existe.

2.17.2020

Nazdrave

Sou um homem de meia idade. É assim que se diz, não é? Meia idade. Como se a vida soubesse sempre quando vai acabar e qual o princípio, o meio e o fim. Vejo-me, sem se me ver, no espelho da pequena farmácia da casa de banho. O que quero é o pormenor e não a face. Procuro na minha pele os sinais de como aqui cheguei. Os meus dedos percorrem-na como se lessem braile e na sua textura pudessem descobrir algo: uma memória ou uma história. É a minha pele, pá. Deve ter alguma coisa escrita.
Tenho um copo de uísque pousado no lavatório, o que indica que estava a beber quando decidi vir aqui procurar os caminhos vazios do meu passado. Não percebo nada disto, pá. Como é que vim aqui parar? Não era suposto a vida ser um dos muitos sonhos que tivemos em jovens? Eu nunca sonhei viver aqui, nesta casa longe da minha infância e com uma namorada que escreve num alfabeto que não é o meu.
Sou um homem de meia idade. Não tenho a certeza que a luz que decidiu entrar pela janela e deitar-se no meu corpo saiba disso. Gostava que sim. Assim podia aceitar esse gesto como uma carícia, como uma lógica apaziguadora da Natureza. Como um gesto. É isso, gosto de gestos. A última vez que me apaixonei foi por um gesto. Já me lembro.
Foi num jardim da cidade de Sófia. As árvores estavam a dançar no silêncio do vento e eu tinha-a acabado de conhecer. Estávamos num velho banco de madeira a dividir o tempo e uma garrafa de vinho branco barato. O mundo estava todo ali condensado. Um casal de namorados deitado na relva num beijo que parecia ser eterno, um bêbado adormecido num muro baixo que parecia ter sido construído exactamente para bêbados, um yuppie numa conversa com um telemóvel nervoso e um pedinte que ziguezagueava no espaço pedindo moedas.
Os nossos copos eram de plástico e o vinho já estava quente. Então ela quis brindar. Nazdrave, disse. Depois aproximou o copo dela do meu e eu o meu do dela. As nossas mãos pararam perto uma da outra e por fim brindaram sem saberem muito bem porquê. Vi-a a beber com a delicadeza de um deus, como se uma barragem enorme pudesse por opção deixar passar apenas uma gota para hidratar-lhe os lábios. Foi esse o gesto. Nazdrave, repeti. Depois esbocei um Sorriso.
É ela que aparece agora na porta da casa de banho. Traz dois copos de vinho e encosta-se à parede a ver-me a ler a minha pele. Pergunta-me o que é que estou a fazer. Não sei, respondo.
Sou um homem de meia idade. Para além dos cabelos brancos que se insurgem na minha cabeça contra o que ainda permanece da minha juventude noto duas ou três rugas. Não sei, repito. A vida não é muito mais do que um gesto. Ela passa-me um copo para a mão. Brindamos. Nazdrave, dizemos.