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1.27.2016

Um pente, um secador e um frasco quase vazio de champô

1 | As mulheres não deviam beijar na face um homem com quem já fizeram Amor

Só há duas ocasiões em que falo com ela. Quando estou com ela e quando estou sozinho. Na verdade, como quando estamos juntos deixo-a falar a maior parte do tempo e limito-me a ouvi-la, é mais quando estou só que lhe dirijo a palavra. É por isso que termino sempre as nossas conversas a concluir que ando louco. Falo sozinho e ela não me ouve. Claro.
Quando penso que estou louco, levanto o olhar e lanço-o para longe como se fosse uma rede. Quero apanhar pessoas. Se estiver na rua, pesco transeuntes; se estiver num bar, pesco bêbados e grupos de amigos; se estiver no estádio, pesco adeptos. Se estiver em casa, não pesco nada que não seja a minha solidão. E então o meu olhar cai na garrafa de uísque que um amigo me ofereceu num jantar. Bebo e continuo a conversar com ela.
Apanhar pessoas com o meu olhar faz-me sentir melhor. Pelo menos, menos louco (passe a redundância do menos). A minha loucura dilui-se na diferença que há entre cada um de nós, na individualidade de cada olhar e forma de andar, e torna-me apenas mais um. É óptimo. Sinto-me um falhado na mesma, mas democratiza o falhanço que é a vida.
A Sandra é a culpada da minha solidão. Não por me ter deixado, mas por ter gostado de mim antes disso e por me ter permitido Amá-la. Ao contrário das outras coisas essenciais à vida, como a comida a água e o sexo, o Amor só nos faz falta quando já o tivemos antes. É por isso que o Amor é a pior das boas notícias que podemos ter. Quando nos bate à porta nunca vem por bem.
Passei uma grande parte do tempo que já passou por mim a ver filmes pornográficos. Não voluntariamente, mas por ser essa a minha profissão. Era projeccionista num cinema improvisado numa garagem da cidade que vivia da solidão sexual alheia. Várias vezes me perguntei se teria clientes num mundo perfeito, onde toda a gente tivesse alguém para Amar, mas nunca me consegui responder.
Os meus clientes eram quase sempre pessoas sós, mas às vezes apareciam grupos de jovens estudantes que vinham mais numa lógica de diversão do que de solidão. Passavam a sessão toda a rir e a contar piadas, estragando a intimidade que qualquer solitário precisa de ter com uma película pornográfica. As únicas mulheres que apareciam vinham incluídas nesse tipo de grupos. De resto, novos ou velhos, eram sempre homens.
Foi por isso que reparei facilmente na Sandra. Era mulher e estava sozinha. Sentou-se na última fila, bem perto de toda a maquinaria que eu montara durante vários anos para poder exercer a minha actividade com regularidade, pensei eu que para se sentir protegida dos olhares dos homens solitários que iam fazendo sons orgásmicos durante o filme. Aos cinquenta minutos já todos se tinham ido embora, depois de terem colocado um guardanapo sujo no cesto de papéis na entrada. Menos ela. Virou-se para trás e disse-me que, se eu quisesse, podia parar o filme e acender a luz.
Era jornalista e queria fazer uma reportagem sobre mim, mas acima de tudo era bonita. Aceitei. Com medo, mas aceitei.
Em duas ou três perguntas, a Sandra já sabia mais de mim e da minha vida do que qualquer um dos meus amigos habituais. Na verdade já sabia tudo. Que eu era um homem de meia idade deprimido, solitário e sem qualquer tipo de ambição que não fosse viver em paz e sossego. Fizemos sexo logo ali, nas cadeiras de veludo gasto do meu cinema improvisado, debaixo da luz dum filme pornográfico que eu me tinha esquecido de parar. Viemo-nos ao mesmo tempo que os actores e depois começou a ficha técnica.
Ela disse "que bom!".
A segunda vez foi uma hora e duas cervejas depois, no meu apartamento minúsculo num subúrbio da cidade. Não disse "que bom!", mas disse que até parecia que eu nunca tinha tido sexo com uma mulher antes dela. Sorri-lhe. Ainda bem que ela nem desconfiou que eu ainda era virgem aos quarenta anos.
A maior parte das mulheres não sabe, ou finge não saber, que os homens são o sexo frágil. Eu acho que é mais fingimento, porque assim aproveitam-se do facto de termos que parecer fortes. Fazemos tudo por isso, desde transportar sacos de compras pesados enquanto encolhemos a barriga até escondermos as lágrimas quando elas nos deixam. E eu, homem que frágil me confesso, chorei assim que a senti sair para sempre.
Quando uma mulher se despede de um homem pela última vez torna-se o pretérito mais que perfeito, um passado anterior ao nosso próprio passado. Foi assim quando ela se despediu de mim, porque o nosso Amor já tinha morrido, mas o meu Amor por ela não.
Que mau!
Mais que perfeita, lembro-me dela com o vento. Os cabelos negros e longos a dançarem no meu peito nu e os seios firmes a voarem num céu à distância dos meus braços. Depois mandava-me estar quieto e algemava-me as mãos com um beijo para se poder concentrar no cata-vento vertical. Às vezes sorria, outras vezes não. Às vezes vinha-se, outras vezes não.
Depois foi-se embora. Para sempre, disse ela abanando um saco de plástico com o logótipo de um supermercado que ia enchendo com as coisas dela. Não muitas. Um pente, um secador e um frasco quase vazio de champô. Passámos os dois cerca de meia hora à procura do resto das coisas dela, mas por muito que nos custasse acreditar não havia resto. Só isso, em dois duma relação intensa. Um pente, um secador e um frasco quase vazio de champô. E eu a querer que aquela meia hora durasse toda a minha vida.
Não durou. Deu-me dois beijos na face e bateu a porta com determinação.
As mulheres não deviam beijar na face um homem com quem já fizeram Amor. É o que eu lhe estou a dizer agora, mesmo que ela não me ouça. Beijos assim são como balas no coração. Um homem vai sangrando devagar até morrer de Amor, se tiver azar, ou de uma bebedeira fatal se tiver sorte. Os beijos na face duma mulher que já nos Amou são o crime capital.
Peço mais um uísque. Lá fora, alguém verteu no céu uma imensa aguarela negra. Lanço a minha rede e pesco um casal apaixonado numa das mesas do canto do bar. Reparo nas mãos dadas, nos copos vazios e nas vidas cheias. Falam um com ou outro apenas com os olhos e acreditam que vai ser sempre assim. Ao meu lado, no balcão de madeira marcado pelo tempo, um homem fala com uma mulher que também não está presente. É a Sandra dele, provavelmente, e canta-lhe uma música desafinada com uma letra que não entendo. Para além da mulher que agora me traz a bebida, não há mais ninguém aqui. Dou um gole suave e sorrio. Sinto-me mais só do que se estivesse apenas sozinho.

2 | Um homem não devia ficar indiferente aos beijos duma mulher que já Amou

Estou há mais de meia hora na casa de banho, sentada na sanita com o portátil nas mãos a jogar um jogo estúpido do Facebook. Já plantei vários tipos de legumes e alimentei animais duma quinta virtual da qual me tornei escrava e agora penso no tempo que gastei a fazê-lo. O que é que cabe em meia hora?
Foi o tempo, por exemplo, que gastei à procura das minhas coisas na casa dele. Ele, com aquela sua presença absurda, a espreitar para baixo da cama e para os livros do armário da sala. Eu, desesperada, a abrir todas as gavetas e compartimentos da casa. Aquela meia hora demorou muito mais tempo do que esta em que não fiz mais nada do que alimentar vaquinhas, ovelhas e cavalos. Tudo para trazer um pente, um secador e um frasco quase vazio de champô. Mais valia ter deixado lá tudo, só para não ter que o ver a chorar sem chorar.
Os homens são estranhos. Só se sentem sós quando ficam fisicamente sozinhos. As mulheres sentem-se sós quando simplesmente não são ouvidas, mesmo que estejam acompanhadas todos os dias. É uma das coisas que eles não entendem. Disse-lhe tantas vezes para parar de organizar a sua colecção de filmes pornográficos por ordem alfabética e ano de produção e para me ouvir. Mas ele não ligava. Limitava-se a sorrir e a acreditar que eu lhe achava piada.
O Mário era o culpado da minha solidão. Não por não me ouvir, mas sim por ter começado por fazê-lo. Ao contrário das outras coisas essenciais à vida, como a comida, a água e o ar, o Amor só nos faz falta quando alguém que nos dá atenção deixa de o fazer.
Depois de um dia de silêncio era a rotina do sexo. Comecei a prender-lhe as mãos à cama no dia em que deixei de gostar do seu toque no meu corpo. Ainda bem que ele pensava que era um jogo erótico. Meu Deus! Tanto filme pornográfico e tão pouca sabedoria. Às vezes fingia que me vinha, outras vezes não.
Cheguei a pensar que estava louca por me deixar andar naquele Amor, como um peixe quase morto que se deixa ir na corrente do rio. Saía à rua só para, por um momento que fosse, sentir que o mundo era maior do que a minha vida miserável. Procurava qualquer sinal positivo no olhar dos transeuntes e às vezes encontrava um sorriso anónimo que me salvava o dia. Sabia-me bem, mas depois voltava ao mesmo.
Depois aconteceu aquele sorriso diferente de todos os outros, de um homem que parou e me convidou para um café. Primeiro escondi a cara por vergonha, mas depois aceitei por desespero. Acabei a fazer Amor nos bancos de trás do carro dele, num parque de estacionamento de um supermercado onde acabei por comprar apenas um saco de plástico para poder trazer tudo o que era meu. Um pente, um secador e um frasco quase vazio de champô.
Dei-lhe dois beijos e ele nem se mexeu. Tinha a pele fria e o olhar mais ausente do mundo. Um homem não devia ficar indiferente aos beijos duma mulher que já Amou. É como se ela não valesse nada, afinal. Como se a sua importância se resumisse à condição de companheira sexual.
Que mau! 
Fecho o computador e levanto-me. Aposto que tenho a marca da sanita no rabo. Ele dizia-me sempre isso quando eu passava muito tempo na casa de banho. Lá fora, o fim da tarde adquiriu vários tons de um cinzento triste. Se bem o conheço, perdeu-se por aí num bar qualquer e está a tentar embebedar-se duma saudade que não tem. É a terapia dele, sentir-se triste e só. Por falar nisso, sinto-me menos só do que quando estava com ele.

1.26.2016

visita

A Li veio visitar-me. Sentou-se ao meu lado direito na mesa quadrada do café. Depois trocou de lugar para ficar à minha frente. Não o disse, mas eu sei que ela teve medo que ambos ficássemos hipnotizados pelo televisor que estava a olhar para nós. Sei-o porque me lembro do nosso último encontro, talvez há oito anos atrás, onde isso aconteceu e ela detestou. Fez questão de o dizer, pelo menos.
Parece-me mais bonita agora do que nessa altura, embora tenha perdido alguma jovialidade. O tempo desenhou-lhe frágeis rugas no olhar e nos lábios, talvez apenas para a lembrar de que vai passando, todos os dias de manhã quando ela se vê ao espelho. Além disso, ganhou doçura no olhar e o seu sorriso tornou-se sincero. 

- Estás tão bonita!

E ela atira os olhos para o chão. Nesse aspecto não mudou nada, nem sequer na forma inclinada que dá ao pescoço quando quer esconder a face. Os cabelos longos parecem ganhar vida própria quando lhe pousam nos ombros e depois deslizam suavemente para a frente ou para trás.

- Foi nesta mesa que estivemos a última vez? - Pergunta.
- Não. Na altura este café estava diferente e as mesas eram outras...
- Ah! bem me queria parecer...

Na verdade não foi apenas o café que mudou desde esse dia. Fomos nós. Ela emigrou, apaixonou-se por um australiano, casou e teve filhos lá. Nunca mais veio a Portugal. Eu não emigrei, mas também me apaixonei por cá. As nossas vidas pareciam duas linhas que se separavam lentamente uma da outra com o tempo que passa, mas que de repente se desviaram e cruzaram novamente neste momento. 
Vi a fotografia dela numa aplicação para conhecer pessoas e ela viu a minha. Trocámos duas ou três palavras e ela conduziu duzentos quilómetros para vir tomar café comigo. Entretanto, a empregada do café pousa duas cervejas e uma empalhada na mesa. Esqueço-me de tudo o que entretanto se passou e lembro-me apenas de uma simples semana da minha vida, aquela em que vivemos um Amor que parecia ser para sempre.

- Lembras-te de como acabaram as férias em que nos apaixonámos? - Pergunto.
- Claro. Connosco aqui a olhar para a televisão...

3.26.2015

sem título

Era um sábado triste, tão triste como qualquer sábado que não seja feliz. Foi assim que ela o explicou e tinha razão. Os sábados nunca são dias assim assim. Só têm duas hipóteses: ou são felizes ou são tristes. Depois sorriu, mas foi um sorriso triste. Concluí que os sorrisos, pelo menos os dela, eram como os sábados.

- Por favor, diz-me o que se passa! - Pedi-lhe.

Estávamos no carro dela, motor desligado e a chuva a bater violentamente no pára-brisas. Tive pena daquela chuva, que vinha de tão longe para nos molhar e mesmo à última da hora não conseguia. Havia um vidro a separar-nos. Só isso. Um vidro. Depois de uma viagem tão grande ficava-se por ali, de forma inglória, desfeita em gotas.

- Por favor, diz-me o que se passa! - Repeti.

Ela rodou a chave uma vez e ligou o rádio, não sei se para matar o próprio silêncio ou se para cobrir o som da chuva. Estava a dar uma música que eu conhecia, mas da qual não sabia o nome nem o autor. Era uma música daquelas que passa por nós como um desconhecido a quem vemos a face na rua, mas de quem não conhecemos a identidade.

- É gira, esta música...
- Precisava que saísses e só voltasses a falar para mim no dia em que eu te pedir.

Para ela falar foi preciso que eu deixasse de lho pedir. Toquei-lhe no ombro de forma subtil, na tentativa de lhe dizer que compreendia, abri a porta do automóvel e corri para dentro do café onde tínhamos estado antes a pedir ao tempo que passasse mais depressa. Os pratos das torradas e os copos dos galões já tinham sido levantados pelo empregado eléctrico.
Até esse dia, nunca nenhuma mulher tinha terminado comigo algo que ainda nem sequer tinha começado. Pela janela do bar, vi o carro deslizar sobre a água que inundava as ruas de Lisboa. Pedi outro galão e outra torrada, à espera do comboio que me havia de levar a casa.
Passado pouco tempo apaixonei-me, creio que numa quarta-feira feliz, tão feliz como qualquer quarta-feira que não seja triste.

7.10.2012

sofás

Tenho um amigo com quem só estou de vez em quando, talvez duas ou três vezes por ano, mas com quem continuo conversas como se tivessem sido interrompidas apenas uma hora antes. Talvez seja um pouco estranho, mas quando o vejo é como se todos aqueles meses que estive sem o ver simplesmente desaparecessem. À superfície da minha memória vêm os últimos momentos em que estive com ele, e tudo o resta mergulha nas profundezas do meu cérebro como pedras no maior dos oceanos.
Ontem, por exemplo, quando me sentei num dos sofás que ele tem na cozinha (sim, ele tem dois sofás singulares na cozinha) tornei a levantar-me imediatamente para ir buscar a garrafa de uísque que ele tinha guardado numa das portas dos armários na última vez que lá estive, talvez há uns quatro meses. E lá estava ela, ainda a meio, à espera de despejar o seu conteúdo sobre as nossas palavras. Tirei também dois copos e servi-nos aos dois.
Quem decidiu pôr os dois sofás na cozinha não foi o André, assim se chama ele, mas sim a sua ex-mulher, quando os dois partilhavam aquele espaço durante a noite toda a seguir ao jantar, entre uma bebida e conversas ocasionais. Era, de facto, um casal que estava na cozinha mais do que noutra qualquer divisão da casa, e eu próprio cheguei a testemunhar isso.
Às vezes, nos dias que correm, ainda o vejo a tocar os sofás, em silêncio, como se assim pudesse também tocar um pouco do seu passado com ela. Mas não pode, e foi assim que ontem começámos mais uma conversa, precisamente onde tinha acabado a última há muito tempo atrás. No seu divórcio e nos motivos que o levaram a nunca mais conseguir estar com uma mulher. Dei o primeiro gole na garrafa de Bushmills (a garrafa ainda lá estava porque ele sabe que aquela marca de uísque é para as nossas conversas) e perguntei-lhe se ele, de facto, nunca tinha sentido uma atracção que fosse. Afinal de contas, concluí simplificando a coisa ao máximo, há tantas mulheres bonitas e interessantes por aí...
Ele também deu um gole prolongado antes de responder, como se tivesse a resposta toda na ponta da língua e quisesse apenas lubrificá-la antes de a transmitir. Foi então que me falou da tese mais estranha sobre paixão que já ouvi.
Diz ele que se farta de ver mulheres muito bonitas, cuja beleza o sufoca assim que as vê, mas que nunca tenta nada com elas porque simplesmente não acredita nesse tipo de paixão. A beleza é como o chocolate, disse, é doce mas pode enjoar. O André quer começar a sentir-se apaixonado por uma mulher apenas dois ou três meses depois de a conhecer. Devagarinho, como ele repetiu insistentemente, de forma a perceber que também ela se apaixona por ele da mesma maneira.

- Isso não é ser esquisito? - perguntei enquanto enchia de novo os copos.
- O Amor é como uma bola de neve. Se não estiver sempre a crescer, desfaz-se.
- É ser esquisito, sim. - concluí.
- Sabes porque é que somos amigos há mais de vinte anos? - Tocou de novo no sofá como se estivesse a tocar o passado, desta vez o nosso.
- Porque nos damos bem.
- Porque somos amigos lentos um com o outro. Não exigimos nada um do outro a não ser honestidade e companhia de vez em quando. É mais ou menos assim que eu me quero apaixonar, mas por uma mulher.

Dei-lhe uma certa razão na questão da bola de neve, embora por outro prisma. Vamos ficando cada vez mais exigentes com as relações que temos, e por isso talvez vá sendo cada vez mais difícil começar uma nova. Se eu acabasse a minha relação actual, não faço a mínima ideia do tempo que ia precisar para começar outra, concluí. Talvez muitos anos também. Depois fizemos silêncio, e será desse silêncio que nossa próxima conversa começará, talvez daqui a uns meses...

12.30.2010

da liberdade do Amor

Se há alguma coisa importante que o Amor nos ensina é que podemos viver a vida toda alimentando-nos da esperança. Acho até que a maior parte dos Amores que vivemos não passam disso mesmo, de esperanças que nascem e morrem na nossa vida como as folhas das árvores, aquelas que respiramos na Primavera e depois vemos desfazerem-se secas no tapete que o Outono tece. É por isso que esta não é uma história de Amor, é uma história de esperança.
Amei uma mulher durante dois anos e durante dois anos persegui esse Amor como se persegue um fantasma que se evapora em cada esquina. Ela sempre foi exímia naquilo que é uma característica comum a quase todas as mulheres do mundo, e que passa pela capacidade de, num só minuto, ressuscitar num homem a crença de pode gostar gostar dele. Digo 'pode', porque a maior parte do tempo entretém-se a evaporar essa vã miragem do Amor.
Lembro-me, por exemplo, de lhe telefonar todos os dias durante duas semanas para tentar marcar um jantar, um passeio, um café que fosse, e de ela fugir a essas tentativas de aproximação como se fosse capaz de passar pelos pingos da chuva. Com delicadeza, mas também com uma distância na voz que me despia a alma. Era, aliás, de alma nua que lhe deixava de telefonar e acabava sempre por me enganar noutro qualquer efémero e despovoado Amor. E era também de alma nua que acabava por ser ela a arranjar uma desculpa para vir ter comigo. O mundo parecia sorrir para mim de novo, mas com o tempo percebi que nunca passava de um sorriso amarelo, daqueles que se transformam em cepticismo muito antes de nos habituarmos a ele, já que nas duas semanas seguintes a ausência voltava a povoar-me qualquer expectativa que ainda pudesse ter.
Deixei de amar numa terça-feira de manhã, quando ela me telefonou para me convidar a tomar o pequeno-almoço e eu fiz mais de setenta quilómetros com o rádio do automóvel no máximo, como se o volume da música fosse o volume da minha felicidade. Cheguei ao café com vinte minutos de antecedência e duas horas depois ainda lá estava. Sozinho, que ela nunca chegou a aparecer e acabou por me mandar uma mensagem a pedir desculpa por entretanto se ter esquecido de mim. Nesse dia o sorriso não se desfez. Pelo contrário, fortaleceu-se. Deixei a esperança no café e saí pela cidade para celebrar a minha liberdade, como um recluso que acaba de cumprir o último dia duma pena de prisão. Já não a amava, já não tinha esperança.
Percebi depois que aquela inconsistência era um poço sem fundo. Com o seu fim diminuíram os meus encontros fortuitos e inconsequentes, porque no fundo deixei de precisar deles. Além disso varri do meu cérebro tanta informação que percebi que até então já não tinha espaço para armazenar praticamente mais nada. Era como sótão cheio de coisas que não servem para nada. E foi assim, com o sótão praticamente vazio, que me apaixonei de novo, numa coincidência que muitos dos leitores que aqui vêm já conhecem e que me ensinou também que um homem pode alimentar-se da esperança.

12.22.2010

depois de um divórcio

a verdade da mentira

Depois do meu divórcio fui-me habituando à mentira que me dizia que eu estava sozinho, como se a única fuga desta vida à solidão pudesse ser uma mulher a quem se chame isso mesmo. Não é, e disso me apercebi ao mesmo tempo que os meus novos hábitos e comportamentos se me tornavam familiares. Coisas tão simples como telefonar às dez da noite a um amigo para a convidar a beber uma garrafa de vinho, ir à última sessão de um filme qualquer durante a semana ou simplesmente desaparecer uns dias sem dizer nada a ninguém.
Das mulheres que me tangeram esses dias, em forma de quase-sexo, sexo ou mesmo quase-início-duma-relação, lembro-me que me incomodava a forma como trituravam subtilmente esses meus novos hábitos. Afinal estar divorciado não era assim tão mau e passei para a fase da despreocupação com a minha vida emocional.
A vida emocional, para quem não sabe, não é o amor que sentimos pelo outro nem o egoísmo que nos habita dia a dia. É a verdade que resta daquilo que é mentira, mesmo quando toda a nossa vida é uma grande mentira. E é por isso, só por isso, que mesmo despreocupados nos podemos voltar a apaixonar.
Há dias, um amigo recentemente divorciado, disse-me que a maior vantagem do divórcio dele era que nunca mais tornava a passar pela mesma dor. Mesmo que um dia se apaixone de novo e a mulher o deixe, tudo o que vai sentir são apenas resíduos do que sente actualmente. Assenti compreendendo-o, mas também pensei que ele não é capaz de se apaixonar ainda. E não o é por um motivo muito simples: ainda acha que não é capaz de sofrer por uma mulher como sofreu pela primeira. É a verdade dele, dentro da mentira que é a sua vida neste preciso momento.
Não me digam nunca que o amor é uma coisa bonita. Não é. O Amor é apenas o nosso egoísmo no seu auge, e se eu hoje quero que a Raquel seja feliz é porque isso me faz feliz a mim. Mais nada. E na verdade, se alguma vez pensei que nunca na vida poderia sofrer como sofri no meu primeiro divórcio, enganei-me redondamente. Posso sofrer mais ainda, e foi ela que me ensinou isso.

11.03.2009

apaixonei-me por ela numa viagem de comboio.

Apaixonei-me por ela numa viagem de comboio. Primeiro vi-a sentada num dos bancos da estação, folheando um livro enquanto arrumava o seu próprio corpo na quantidade exagerada de objectos que a acompanhavam. Uma pequena e coçada mala vermelha cheia como um ovo; uma carteira de tiracolo de onde tinha tirado o livro e que agora esperava como um cão obediente, de boca aberta, que ela o tornasse a arrumar; um casaco comprido adormecido serenamente no seu colo apetecível e, ao seus pés, um saco de plástico de um supermercado qualquer com algumas compras.
Apaixonei-me por ela numa viagem de comboio. Depois vi-a a guardar calmamente o livro na carteira, acordar com doçura o casaco antes de o vestir, pôr a carteira a tiracolo ajustando-a milimetricamente ao seu corpo e, por fim, caminhar para o comboio com o saco de plástico numa mão e a mala vermelha noutra.
Eu já lá estava, observando-a privilegiadamente a partir duma janela, porque tinha corrido para a carruagem com a pressa de todos os outros passageiros. Foi só aí que me expliquei aquela paixão súbita, enquanto ela se instalava num banco à minha frente exactamente como se instalara no cais: com o casaco a adormecer de novo ao seu colo e a carteira de boca aberta ao seu lado. Ela tinha uma velocidade diferente. Era como se todos caminhassem rapidamente para a morte e ela, apesar de ir na mesma direcção, parasse de vez em quando para contemplar a vida.
Apaixonei-me por ela numa viagem de comboio. E se ela contemplava a vida eu contemplava-a a ela, e se ela se perdia num mar de letras eu perdia-me num mar de mulher. Um mar de ondas calmas e espaçadas, às vezes provocadas pelo virar de mais uma página, outras vezes por uma efémera troca de olhares e outras vezes pelo simples acto de respirar.
Apaixonei-me por ela numa viagem de comboio. Depois adormeci... e talvez por o meu sono ser ciumento do sono do seu casaco, fui mergulhando nessas ondas como num sono cada vez mais profundo. Quando acordei ela já não estava. Tinha saído numa estação qualquer. Não faz mal, às vezes apaixonamo-nos por quem não pode viajar connosco.

10.06.2009

as mulheres não percebem que há ajudas que simplesmente não devem prestar a um homem...

As mulheres não percebem que há ajudas que simplesmente não devem prestar a um homem. Não devem e pronto. Este fim de semana entrei num café qualquer duma aldeia do interior do país e, sedento e suado, pedi uma água com gás ao homem que descansava do lado de lá do balcão. Era um homem com uma barriga tão generosa quanto o seu bigode farfalhudo e, como se alguém que pede uma água estivesse a mais naquele estabelecimento, colocou a garrafa à minha frente e pediu-me imediatamente o dinheiro. Oitenta, disse ele com agressividade enquanto batia os dedos numa prateleira de forma a imitar o som dum cavalo a galope.
Procurei as quatro moedas de vinte cêntimos que eu sabia que tinha nos bolsos e deixei-as a dançar em cima do balcão para ele as ter que apanhar uma a uma. Depois peguei na garrafa e tentei abri-la imediatamente para saciar a sede e o mal estar provocado pelos enchidos do almoço. Foi aí que comecei a suar ainda mais. As mãos escorregavam-me e a carica de rosca nem se mexia. Tentei uma vez, duas vezes, três vezes, quatro vezes... e nada, nem um milímetro a tampa rodava. Foi aí que percebi porque é que um homem que só pede água não é bem vindo ali: quatro tipos, também com bigode e barriga, tinham na mesa pelo menos vinte garrafas de cerveja e alguns copos de bagaço. Olhavam todos para mim com um ar que misturava o álcool que tinham bebido com um ar de desafio...
Da casa de banho saiu uma mulher com pouco mais de metade da minha altura e um ar franzino e, ao passar por mim, esticou o braço soprando um suave: "deixe cá ver isso". Nunca pensei, claro, que ela conseguisse abrir a garrafa mas, apesar dos seus dedos tão finos como palitos, abriu à primeira e devolveu-ma com um sorriso sem esforço. Os bebedolas riram-se todos e eu fui lá para fora beber. Nunca uma água me caiu tão mal. As mulheres não percebem que há ajudas que simplesmente não devem prestar a um homem...

7.21.2009

beijo

Até onde é que nós queremos saber da vida dos outros? Os outros, aqueles que passam por nós na rua mas de quem não sabemos nada. Nem o nome nem a profissão, nem a idade nem onde nasceram, nem se se sentem tristes ou felizes. Nada. Os outros...
Quando na fila do supermercado um homem de meia idade paga as compras, reparamos se o está a fazer com cartão de débito ou crédito? Quando num café uma mulher fala alto ao telefone, tentamos perceber quem está do outro lado? Quando alguém nos pergunta uma direcção na rua, tentamos perceber de onde vem?
Hoje uma mulher bateu-me no carro por trás. Foi um toque pequeno, daqueles que mais parecem um beijo de sucata, e terá sido por isso que a primeira coisa que vi nela quando saí do carro foram os lábios. Tremiam. Tenha calma, disse-lhe. Ela abriu a carteira à procura do cartão do seguro e reparei que tinha uma fotografia tipo passe com o rosto de uma criança, depois pegou no telemóvel para avisar o ex-marido que estava atrasada. Os dedos também lhe tremiam. Em pouco tempo, mal ou bem, percebi que estava diante duma mulher a quem a vida anda a pregar partidas. Olhei para a traseira do meu carro e vi um pouco da tinta vermelha do carro dela. Era a marca do beijo. Tenha calma, repeti-lhe. Vamos embora que isto não é nada. Ela acalmou e disse-me adeus com a buzina quando, num qualquer cruzamento da cidade e da vida, nos apartámos um do outro. E fomos... beijados pelo alívio.

5.14.2009

como é que se ama pela segunda vez?

Como é que se ama pela segunda vez? Pergunta-me ele depois de me dar um passou bem morto, sem a determinação que eu lhe conheço de outros tempos. E eu espero que ele se sente e pare. Não se fala de amor com um tipo que está ainda a encontrar posição para se sentir confortável, dando pequenos encontrões à cadeira com um rabo inquieto.
Lembro-me de o ajudar a carregar uma máquina de lavar roupa, para um segundo andar num prédio sem elevador, quando se casou. Mais um guarda-vestidos, uma cama de casal, uns sofás coçados, um frigorífico e uma série de caixotes embalados com a determinação que agora lhe falta. Era como se estivéssemos a levar pelas escadas uma vida inteira, e digo inteira porque ali se transportava o passado, o presente e o futuro. E o futuro chegou hoje, com uma sensação de falhanço total na vida, uma cerveja morta numa pastelaria e um estranho medo da solidão.
Pergunto-lhe se quer outra cerveja, na esperança de também eu poder beber mais uma. Que sim, responde. E enquanto o rabo dele parece estar a acalmar eu estico as duas mãos à empregada que está do outro lado do balcão: uma com uma garrafa vazia, outra com dois dedos esticados.
Acho que a segunda vez é mais fácil, digo-lhe. Na segunda vez não levamos a vida toda para um apartamento nos subúrbios da cidade, na segunda vez começamos por nos levar a nós, só a nós, sem passado nem futuro. Fazemos amor devagar, bebemos uma garrafas de vinho sem ser daquele mais barato, trocamos uns sorrisos e apagamos a luz do sem querer ver mais do que isso.
A empregada pousa as garrafas na mesa. É só isso? Pergunta ele. Que sim... eu, pelo menos, não sei dizer mais nada nem me apetece saber...

5.12.2009

café da manhã

Um
Que não há coração como o de mãe, diz ela. Depois agarra no saco das compras como se agarrasse uma criança. Os seus olhos envelhecidos são uma represa de lágrimas prestes a ceder e eu, como quem não quer saber, passo por ela em passo apressado. Só eu sei que estou com pressa para chegar a lugar nenhum.

Dois
Que a ele ninguém o engana. E repete a frase enquanto ajusta as golas de um casaco sujo e gasto pelo tempo: que a ele ninguém o engana. Depois encosta uma mão ao vidro da montra dum loja. Fico na dúvida se ele ampara a loja ou se a loja o ampara a ele. É que também eu, continuando o meu passo apressado, passo por ele sentido-me perdido.

Três

Curvou a cabeça para trás e bebe as últimas gotas dum pacote de Ice Tea de pêssego. Lembra-me uma vitela a procurar leite numa teta seca. Não só por ser evidente que o pacote está vazio mas também porque as pernas frágeis lhe tremem. Depois desiste e começa a cantar. Ainda não sei para onde vou mas continuo o meu passo apressado.

O café da manhã conforta-me. Não só pelo sabor mas porque enquanto o bebo não tenho que fingir que me dirijo convictamente para um lugar qualquer. Pergunto-me quantas pessoas andam na rua a fingir que têm um destino sem de facto o ter, pergunto-me se esse fingimento é sinal se alguma solidão e se estas pessoas que falam sozinhas na rua não são apenas pessoas que deixaram de fingir. Quando dou por mim estou a falar sozinho numa mesa de café...

5.05.2009

decisões

Decidi que tudo o que decidisse ia acontecer, e se teoricamente podia ser verdade por ser essa mesma a primeira das decisões, passei a realmente acreditar nela quando a empregada mais simpática do café me veio atender e sorriu. Essa tinha sido sido a minha segunda decisão: ela sorrir para mim.
Decidi depois que, para além de me sorrir, quando me trouxesse a bica quente ia também pedir-me para procurar no jornal o horário das exibições dum filme qualquer. Depois decidi que ficaríamos a conversar sobre cinema e que combinaríamos ir ver esse filme juntos. Decidi que antes jantaríamos num restaurante pequenino na zona histórica onde depois voltaríamos para beber uma cerveja.
Dei um gole no café e decidi que o corpo dela também seria assim quente. Por isso decidi que depois da cerveja as nossas mãos se dariam. Depois os braços, depois o corpo e depois os lábios. Decidi ainda que depois do sexo adormeceríamos abraçados até de manhã.
Nada disso aconteceu mas, na verdade, ainda hoje acho que nunca na vida tomei decisões tão acertadas.

4.17.2009

não ouviu

A torneira da cozinha pinga uma gota por segundo e o microondas, num tímido sinal sonoro, faz saber que já aqueceu o leite do pequeno-almoço. Na banca acumulam-se pacientemente os dias num monte de louça suja e, numa placa gasta pelo tempo, duas torradas enegrecem lentamente.
É como se de manhã já todo o tempo do dia se tivesse expirado. É como se a vida não passasse dum sopro ofegante. É como se a aproximação da morte pudesse ser a acumulação de quilómetros entre um emprego e uma casa hipotecada. Só isso.
Ela está parada à janela numa divisão qualquer da casa. Sabe-lhe bem aquela quietude desistente, ainda que o seja apenas por momentos. Ele já saiu e bateu a porta com mais força que o costume. Agora está lá em baixo, ajeitando o nó da gravata no espelho retrovisor do carro como se se quisesse salvar dum enforcamento normal. Tão normal quanto estranho, o amor entre os dois ter-se tornado no próprio carrasco. Dela, dele e dos dois. Tão estranho que ainda ontem ela lhe disse que se sentia só e ele apenas ajeitou o nó da gravata. Não ouviu.

4.09.2009

traços de giz

Um avião riscou de giz o céu. Já não o vejo mas aquele risco é uma marca. Sei que ele passou por ali e que voava para o norte. Talvez viesse de Lisboa ou do Algarve. Talvez de África. Talvez fosse para a Suécia ou para a Dinamarca. Talvez para a Polónia. Não sei. Sei que o amor é uma porção de traços de giz. Todos nos marcam mas a certa altura perdemos-lhe a origem e o destino. De traço em traço vamos fazendo um desenho que não percebemos... até que alguém nos faça um traço mais forte.
Foi assim que lhe tentei explicar a solidão, enquanto ela dava mais um gole no chá numa esplanada ventosa. Foi assim que lhe tentei explicar que ela riscou a minha vida e eu, espero, a dela. Não foram riscos fortes o suficiente mas estão lá, no desenho que é a nossa vida.

4.03.2009

é só rir

Tenho o bolso esquerdo das minhas calças roto. Hoje, numa fila de supermercado, uma esferográfica caiu-me pela perna abaixo e eu baixei-me para a apanhar. Duas mulheres que estavam atrás de mim começaram a rir sem parar.
Uns minutos depois fui almoçar sozinho à praça da alimentação e elas sentaram-se a duas mesas de distância de mim. Continuaram a rir sem parar enquanto olhavam para mim.
Levantei-me no fim da refeição e tornou-me a acontecer o mesmo: a esferográfica caiu-me pela perna abaixo e baixei-me para a apanhar. Houve uma explosão de riso nas duas.
Como tinham um ar simpático e eu ia buscar café, virei-me para elas e perguntei-lhes se tomavam café, que eu oferecia. Param de rir, coraram, levantaram-se e foram embora com passo apressado sem dizer nada.

3.16.2009

frigoríficos

Um frigorífico diz muito mais sobre uma pessoa do que à partida se pode pensar. É que o frigorífico que temos em casa não é apenas o sítio onde guardamos os alimentos para eles durarem mais tempo, é também o sítio onde penduramos fotografias, recados e desenhos improvisados. Além disso, por cima dele, é também onde vamos acumulando o desperdício dos dias: um bilhete de autocarro, um bilhete dum concerto ou um número de telefone apontado no flyer dum bar.
Apaixonei-me por ela no dia em que lhe conheci o frigorífico. Entre cerca de dez fotografias que presas por ímanes em forma de frutos exóticos, havia um bilhete escrito à mão que dizia: "o meu sorriso infeliz é uma represa de felicidade". Perguntei-lhe o que aquilo queria dizer e ela respondeu-me: "quer dizer que tu estás aqui".

1.27.2009

como falhar completamente a vida

Nunca fui bom em nada. Quando era miúdo não jogava bem futebol nem era bom aluno na escola. Pior do que isso: também não era mau aluno. Para se ter algum sucesso quando se é miúdo tem que se ser bom ou mau aluno. Eu era daqueles em que ninguém reparava, mediano e silencioso quanto baste para ser sempre o último a integrar um grupo daqueles que às vezes se formam para fazer trabalhos estúpidos de grupo, que não são muito mais do que colar coisas estúpidas em cartolinas grandes e coloridas. E eu era sempre o último porque ninguém me escolhia. Era sempre a professora que, quando dava por mim num canto da sala, me integrava à força. De facto, a única coisa que me lembro de gostar na escola primária foi de ter uma namorada chamada Helena com quem brincava no baloiço do parque municipal de Aveiro. Os outros chamavam-nos 'namorados' como se isso fosse mau e atiravam-nos pedras.
A adolescência, a que eu ainda chamo a terrível fase Clearasil, não melhorou nada. Para além de continuar a jogar mal futebol e não ser bom nem mau na escola, a coisa agravou-se porque as exigências por cumprir passaram a ser mais. Com dezasseis anos veio o trauma das sapatilhas de marca que eu nunca tinha apesar de todos terem, as borbulhas e pontos negros, os penteados que eu não era capaz de fazer e, claro, a Samantha Fox. Nunca tive umas sapatilhas que não fossem Sanjo (e que saudades tenho eu agora delas) ou Chute, nunca tive coragem de comprar Clearasil (que era um creminho de sucesso entre a adolescência portuguesa) e nunca admiti o meu fetiche pelas mamas enormes da Samantha Fox. Claro que, se em miúdo a única vantagem era eu ser o único a ter namorada, essa vantagem desvaneceu-se na adolescência porque passei a ser o único que não tinha. É que entretanto, todos os gajos que me atiravam pedras na escola primária por eu ter namorada, descobriram para que é que servia a pila.
Tudo podia ter-se resolvido na minha passagem para jovem adulto, até porque aí já não interessava muito jogar bem futebol nem ser bom ou mau aluno. Além disso, eu já usava botas ou sapatos e as borbulhas tinham desaparecido. Mesmo a fixação pela Samatha Fox diluíra-se lentamente nos sonhos húmidos de toda a adolescência. Estava tudo pronto para, à primeira oportunidade, arranjar uma namorada e ter uma vida mais ou menos normal. E foi esse o problema, eu pensava que ao ter uma namorada se conseguia ter uma vida normal mas não, ao ter uma namorada quando se é jovem adulto, a vida é tudo menos normal. Da fase Clearasil passei à fase 'oh caraças, ela amuou outra vez'. Nunca mais tive umas férias sem amuos por causa do lugar onde a tenda ficou instalada; nunca mais consegui ir ao cinema sem discutir meia hora a escolha do filme e, mesmo assim, ela amuar porque afinal era outro que devíamos ter ido ver; nunca mais consegui ir ao restaurante sem aturar um amuo porque comi uma sobremesa e ela, porque achava sempre que estava com uns quilinhos a mais, não podia comer açúcar; nem nunca mais consegui superar o nervosismo por ter que adivinhar se ela tinha ido ou não ao cabeleireiro, senão era porque não reparava nela e era um egoísta de todo o tamanho.
Menos mal, em conversas com amigos percebi que a fase 'oh caraças, ela amuou outra vez' era mais ou menos comum a todos. Convenci-me que a vida era assim e tentei ser feliz com esses amuos. Bastou-me treinar o suficiente para rir para dentro e não para fora com alguns deles. Foi aí que se deu o terramoto. Um gajo passa anos a habituar-se a viver com uma mulher, abdicando dos filmes preferidos, sobremesas preferidas, restaurantes preferidos, e mais, a dizer todos os domingos de manhã: "bom dia, estás diferente... foste ao cabeleireiro?" para o caso de ela ter ido mesmo, e ela diz-nos de repente que a vida toda dela foi uma merda por nossa causa.
Tudo bem, se foi por nossa causa, então bazamos. Não faz mal...

1.22.2009

mulheres e planetas

Um exoplaneta é um planeta que orbita uma estrela que não o Sol. A comunidade científica está à procura de um exoplaneta que tenha vida ou seja habitável, mas até agora só encontrou planetas demasiado grandes, muito quentes, muito frios, muito densos ou demasiado próximos da sua estrela. Há dois métodos para encontrar exoplanetas: o da detecção indirecta e o da visualização directa. A detecção indirecta passa por identificar a agitação de uma estrela (devido à força gravitacional da órbita do planeta) ou pela ligeira ofuscação da estrela quando esse planeta passa à sua frente. Nalguns casos é possível a observação directa, com telescópios potentes que são capazes de separar a luz ténue do planeta da luz da sua estrela. [ler na wired]
Estava a ler isto e a pensar como a busca por um planeta e por uma pessoa são tão parecidas. Em primeiro lugar, porque se procura algo onde haja vida ou onde se possa viver. Em segundo lugar porque também quando procuramos um parceiro, utilizamos os métodos de observação indirecta e directa. Por exemplo, no primeiro passeio que se faz com uma mulher, e para não parecermos demasiado invasivos, podemos aproveitar o seu reflexo na montra duma loja pronto-a-vestir enquanto ela olha para o preço duma peça qualquer. Mais à noite, e se conseguimos passar a fase da observação indirecta, temos que procurar aproveitar o método da observação directa, isto é, ser capaz de manter o nosso olhar no olhar dela sem fugir. Se os olhares não fugirem um do outro durante alguns segundos, enfim, talvez aquele planeta seja habitável.

1.21.2009

o síndrome da Branca de Neve

Acho que o pessoal da minha idade sofre do síndrome da Branca de Neve, isto é, supõe-se que é ao homem que cabe toda a iniciativa do engate. Basicamente, a miúda não tem que fazer nada e o homem que se amanhe. Se ele não toma a iniciativa é porque é maricas ou introvertido, se ele toma a iniciativa é porque é abrupto e só pensa em sexo. Basicamente, meus amigos (e isto é só para os homens), estamos lixados. Com a agravante de que o contexto do conto dos irmãos Grimm, e da sua adaptação para o cinema pela Disney, mudou totalmente.

O princípio de deixar a iniciativa ao homem é mais ou menos este: ela está deitadinha sem fazer nada numa campa de vidro, a fingir que está morta, e um gajo tem que chegar lá e dar-lhe um beijo. Se ela quiser acordar até acorda. Se ela não quiser acordar, metemos o rabinho entre as pernas e vamos embora discretamente. Claro que hoje a campa de vidro é mais um bar com consumo mínimo obrigatório, o beijo é mais uma pergunta do tipo: "olá, posso pagar-te uma cerveja?", e o eventual acordar dela é mais uma resposta como esta: "uma cerveja não, mas podes pagar-me um vinho do Porto e tudo o que já consumi".

Ok, até pagamos. Estamos tesos e a fazer contas até ao fim do mês, mas isto anda tão mau que temos que apostar em tudo. O pior é que a porcaria do cavalo, hoje em dia, é um carro que anda com o depósito quase sempre na reserva; e a merda do castelo é um T1 nos subúrbios da cidade cujas mensalidades já não pagamos há alguns meses. Mas tudo bem, enterramo-nos mais um bocadinho no cartão Visa para pôr gasolina, escondemos a carta do banco a ameaçar levantar a hipoteca, e lá a levamos para casa.

Ok, até levamos. Dá-se uma queca e a Branca de Neve engravida porque, segundo ela, se esqueceu de tomar a pílula. A família dela aparece lá no castelo e obriga-nos a casar. Perante o convite simpático dum pai armado com um cutelo e uma mãe com um rolo da massa, aceitamos de bom grado.

Ok, até casamos. Finalmente, fora do ambiente dos bares de engate e longe da família, conseguimos dar uns passeios calmos no campo. É nessa altura que a Branca de Neve desaparece. O campo deu-lhe saudades dos anões e ela pede o divórcio. Os anões, pelos vistos, faziam-na mais feliz. Tudo por nossa culpa, que andamos sempre nervosos e só pensamos em dinheiro.

Ok, até nos divorciamos. Enterramo-nos mais no empréstimo do T0 porque temos que lhe dar metade da parte já amortizada, levamos a merda do cavalo à oficina para ver se ele vive mais uns anitos... e voltamos a beijar uma mulher numa campa de vidro, ou seja, num bar qualquer com consumo mínimo obrigatório.

1.19.2009

unhas

Era mais um blind date. Só isso...
Espero que sejas daqueles homens que cortam as unhas dos pés, disse-me ela no primeiro café que tomámos. Pousei a chávena quente e olhei para ela, analisando-lhe minuciosamente o rosto para tentar perceber se falava a sério ou a brincar. Não descortinei a mínima vontade de sorrir, ou seja, falava a sério.
Que fiquei a saber que havia dois grandes grupos de homens: os que cortam as unhas dos pés e o que não cortam as unhas dos pés. Agradeci-lhe por me ter ensinado isto e não respondi, na esperança que a dialéctica sobre unhas dos pés ficasse por ali, com aquele pequeno e desenxabido travo de humor.
Não ficou. Ela limpou as paredes internas da chávena dela com o dedo indicador da mão direita e lambeu-o lentamente. Depois disse-me que adorava lamber também os dedos dos pés mas que, nos escuro, às vezes se feria nos lábios por causa de unhas demasiado compridas, e fiquei ainda a saber que tinha deixado o marido por causa disso.
Aproveitei o inócuo telefonema de um amigo para a informar que tinha que sair urgentemente, prometendo ligar-lhe mais tarde mas sem a mínima intenção de o fazer. Já no carro, enquanto conduzia, não percebia porque é uma mulher tão bonita começara uma conversa comigo a falar sobre unhas dos pés, e nunca percebi se fugir daquela maneira foi a melhor opção.