respostas a perguntas inexistentes (197)
Faz cinco anos andava eu a dar pontapés na minha solidão, desses que se dão a tentar enxotar qualquer coisa. Uma pedra da rua, o cadáver duma bola de criança ou uma mola de pendurar a roupa que caiu duma varanda. A solidão, como esses objectos inertes, nunca se afasta o suficiente. Apenas alguns metros. À medida que continuamos a caminhar tornamos a encontrá-los e a pontapeá-los de novo. Sempre para o mais longe possível, que é sempre demasiado perto. É assim a solidão. É assim uma pedra da rua.
Nunca consegui pedir desculpa à Elsa pelo pontapé que lhe dei. Às vezes ainda a imagino caída numa berma qualquer do passeio, à espera doutro solitário à deriva que passe por ali aos pontapés às coisas. E às pessoas. Estávamos num restaurante a beber cerveja importada e ela era bonita. Era também o único ombro de mulher que eu tinha acessível naquela noite. Pousei-lhe a minha cabeça, e depois o corpo. Brandamente, acho eu. O corpo vai sempre atrás de uma de duas coisas: a cabeça ou o coração. Se eu lhe pedisse desculpa agora, dizia-lhe que lamento nunca a ter Amado, mas a sério que tentei. Não consegui.
Despedi-me dela com um "até qualquer dia", que é mesmíssima coisa que dizer "até nunca". Um homem não se despede assim de quem Ama. "Até qualquer dia" é só mais um pontapé certeiro em alguém, até um dia em que talvez surja de novo. Se não surgir, paciência.Um homem que Ama quer sempre levar o número de telefone, uma data em concreto, um olhar certeiro com um beijo daqueles que se prolongam um pouco para além da despedida. Eu não levei nada. Sorri-lhe e virei costas. Até qualquer dia.
Por mais que tente, não consigo perceber porque é que nunca me apaixonei por ela. As mulheres às vezes têm essa capacidade estranha de me afastar. São tão boas que se tornam automaticamente inacessíveis. Como se estivessem num pedestal, ligado a um alarme contra solitários, e se fossem quebrar ao primeiro toque. Dão medo. É isso. Dão medo. Depois penso para mim mesmo que são demasiado frias e afogo a distância num lanche quente duma pastelaria de bairro. Um galão e uma mista, por favor.
Faz cinco anos andava eu a ser pontapeado. Pela Elsa também. Acho que fui o único homem disponível naquela noite e ela lá fez o favor de aceitar. O ombro dela recebeu-me, depois o corpo também. Quando se levantou pegou nas peças de roupa espalhas pelo chão, uma a uma, sempre disfarçando a sua nudez com a pequena toalha de hotel que trouxera para a cama, e foi-se vestir para a casa de banho. Nenhuma mulher apaixonada se vai vestir para a casa de banho. Deixei-me estar. Depois despedi-me com um "até qualquer dia" e ela virou costas sem me beijar. Tenho a certeza que não olhou para trás. Eu também não.
Há bocado fui ver o mar. Às vezes faço isso: vou ver o mar e cumprimento-o da mesma forma que cumprimento o guarda-nocturno do prédio onde vivo. Estão sempre ali no mesmo sítio, ele e o mar, à espera que eu passe por lá. Digo "boa noite" a um e "bom dia" a outro. Bom dia, disse-lhe. Pontapeei uma pedra que foi engolida por uma onda. Talvez seja isso. Talvez o Amor nos vá dando pontapés até simplesmente deixar de o fazer. De um dia para o outro. Assim, sem mais nem menos. Uma pedra.