2.29.2012

respostas a perguntas inexistentes (197)

uma pedra

Faz cinco anos andava eu a dar pontapés na minha solidão, desses que se dão a tentar enxotar qualquer coisa. Uma pedra da rua, o cadáver duma bola de criança ou uma mola de pendurar a roupa que caiu duma varanda. A solidão, como esses objectos inertes, nunca se afasta o suficiente. Apenas alguns metros. À medida que continuamos a caminhar tornamos a encontrá-los e a pontapeá-los de novo. Sempre para o mais longe possível, que é sempre demasiado perto. É assim a solidão. É assim uma pedra da rua.
Nunca consegui pedir desculpa à Elsa pelo pontapé que lhe dei. Às vezes ainda a imagino caída numa berma qualquer do passeio, à espera doutro solitário à deriva que passe por ali aos pontapés às coisas. E às pessoas. Estávamos num restaurante a beber cerveja importada e ela era bonita. Era também o único ombro de mulher que eu tinha acessível naquela noite. Pousei-lhe a minha cabeça, e depois o corpo. Brandamente, acho eu. O corpo vai sempre atrás de uma de duas coisas: a cabeça ou o coração. Se eu lhe pedisse desculpa agora, dizia-lhe que lamento nunca a ter Amado, mas a sério que tentei. Não consegui.
Despedi-me dela com um "até qualquer dia", que é mesmíssima coisa que dizer "até nunca". Um homem não se despede assim de quem Ama. "Até qualquer dia" é só mais um pontapé certeiro em alguém, até um dia em que talvez surja de novo. Se não surgir, paciência.Um homem que Ama quer sempre levar o número de telefone, uma data em concreto, um olhar certeiro com um beijo daqueles que se prolongam um pouco para além da despedida. Eu não levei nada. Sorri-lhe e virei costas. Até qualquer dia.
Por mais que tente, não consigo perceber porque é que nunca me apaixonei por ela. As mulheres às vezes têm essa capacidade estranha de me afastar. São tão boas que se tornam automaticamente inacessíveis. Como se estivessem num pedestal, ligado a um alarme contra solitários, e se fossem quebrar ao primeiro toque. Dão medo. É isso. Dão medo. Depois penso para mim mesmo que são demasiado frias e afogo a distância num lanche quente duma pastelaria de bairro. Um galão e uma mista, por favor.
Faz cinco anos andava eu a ser pontapeado. Pela Elsa também. Acho que fui o único homem disponível naquela noite e ela lá fez o favor de aceitar. O ombro dela recebeu-me, depois o corpo também. Quando se levantou pegou nas peças de roupa espalhas pelo chão, uma a uma, sempre disfarçando a sua nudez com a pequena toalha de hotel que trouxera para a cama, e foi-se vestir para a casa de banho. Nenhuma mulher apaixonada se vai vestir para a casa de banho. Deixei-me estar. Depois despedi-me com um "até qualquer dia" e ela virou costas sem me beijar. Tenho a certeza que não olhou para trás. Eu também não.
Há bocado fui ver o mar. Às vezes faço isso: vou ver o mar e cumprimento-o da mesma forma que cumprimento o guarda-nocturno do prédio onde vivo. Estão sempre ali no mesmo sítio, ele e o mar, à espera que eu passe por lá. Digo "boa noite" a um e "bom dia" a outro. Bom dia, disse-lhe. Pontapeei uma pedra que foi engolida por uma onda. Talvez seja isso. Talvez o Amor nos vá dando pontapés até simplesmente deixar de o fazer. De um dia para o outro. Assim, sem mais nem menos. Uma pedra.

2.28.2012

Nada. Ou quase nada

Pasmo-me com a facilidade com que duas pessoas que se Amam são capazes de pôr fim a esse Amor por causa de nada. Ou quase nada, vá lá. Às vezes por causa duma gota de vinho que suja uma toalha, outras vezes por causa de um pequeno atraso num encontro ou umas cuecas usadas que ficaram esquecidas num escaninho da casa de banho. Depois pergunto-me se um Amor é sempre grande só porque parece grande, e a resposta que encontro é que não.
É como se o Amor fosse uma coisa maior do que aquilo que o sustenta, ou melhor, do que aqueles que o sustentam. Talvez por isso acabe sempre em derrocada. Não é que as pessoas em geral não queiram Amar e ser Amadas. Apenas não o sabem fazer nem são capazes. É uma pena quando não percebemos que o Amor também exige algum esforço, alguma coisa de nós.
As caricas, para quem não sabe, eram uma espécie de Playstation 3 para os rapazes da minha geração. Escolhíamos aquelas cuja abertura da garrafa não tinha danificado assim tanto, alisávamo-las durante largos minutos na pedra da calçada, e fazíamos corridas com elas em pistas desenhadas no cimento com os restos de tijolos das obras que iam ampliando o bairro. Quando o fim da tarde chegava, eu guardava as minhas melhores caricas no armário com o mesmo cuidado que o meu pai punha o carro na garagem.
Houve uma manhã qualquer da minha infância em que fui mais feliz que o normal por causa de nada. Ou quase nada. O Seabra, dono de uma taverna junta à Fonte dos Amores, tinha-me dado um saco de caricas de cerveja que tinha acabado de varrer do chão e eu, atónito pela enorme dádiva de quase nada, pulei o muro dum terraço onde sabia que as podia alisar melhor, aquele onde aos sábados à tarde eu e os meus amigos da rua fazíamos corridas perante o olhar amigo da mulher que lá vivia.
Ouvi um grito, depois uma espécie de choro que não consegui descortinar se era de tristeza ou de raiva, e percebi que todo aquele emaranhado de sons caminhava na minha direcção. Vi o puxador da porta rodar e saltei para debaixo do tanque mal ela começou a abrir. A mulher estava no meio da nossa pista tentando conter algumas lágrimas. O homem, que até então eu nunca tinha visto, gesticulava nervoso e empurrava-lhe a cabeça na direcção do chão. O problema era nada. Ou quase nada. Ele ralhava com ela por nos deixar riscar o seu próprio terraço quando ele ia de fim de semana.
Nunca percebi para onde é que ele ia de fim de semana, mas quando contei o que tinha visto aos meus pais, eles convenceram-me a não ir mais para lá brincar. A partir daí, convenci também os meus amigos a nunca mais saltar aquele muro que guardava horas e horas da minha infância e vim a saber, umas semanas depois, que ele tinha ido "de fim de semana" e nunca mais tinha voltado.
Hoje de manhã lembrei-me deste episódio da minha infância porque os vi aos dois, perto da estação de comboios, a caminhar lado a lado no que me pareceu serem os últimos passos duma vida inteira. Lentos, silenciosos, e acima de tudo contemplativos. Não sei a história da vida deles, mas sei que o terraço onde eu desenhava pistas de corridas de caricas, e que deu origem a tanta discussão entre eles, já nem sequer existe. Destruíram-no para fazer um condomínio privado. Talvez eles tenham feito o mesmo da vida deles. Destruíram-na e construíram outra. Por causa de nada. Ou quase nada.
Olhei para eles pelo canto do olho mas ela não me reconheceu. Curvados, como se o Amor das suas vida os tivesse esmagado durante demasiado tempo por não saberem lidar com ele. É verdade que o Amor acaba sempre por nada. Ou quase nada. O que a mim me custou a perceber, nesta vida, é que também é assim que ele começa. Por nada. ou quase nada.

2.27.2012

conversa 1885

Ela - Todos os dias tenho pelo menos uma discussão com o meu namorado. É espectacular!
Eu - Espectacular?!
Ela - Sim, acho que nunca gostei tanto de ninguém como dele. Quando passo dias a fim sem discutir com uma pessoa é porque ela, simplesmente, não me interessa.

2.26.2012

conversa 1884

Ela - Tenho uma teoria que acaba com a tua ideia de Amor duma vez por todas.
Eu - Qual é?
Ela - Acho que o Amor é essencialmente egoísta.
Eu - Porquê?
Ela - Quanto tu te apaixonas queres conquistar essa mulher por quem estás apaixonado porque precisas, não para que ela beneficie alguma coisa com isso. Queres conquistá-la porque te sentes mal por não a ter. É ou não é?
Eu - Até é, mais ou menos, mas isso não faz do Amor um acto egoísta.
Ela - Faz, faz.
Eu - Eu acho que não. Até pode fazer da sedução um acto egoísta, mas do Amor não.
Ela - Porquê?
Eu - Quanto te apaixonas e o teu Amor é correspondido, passas a pôr a pessoa que Amas em primeiro lugar em tudo. Preocupas-te mais com ela do que contigo.
Ela - Achas?
Eu - Acho.
Ela - Isso nunca me aconteceu, caraças.

pensamentos catatónicos (270)

sei lá eu o que vem a seguir...

Costuma-se dizer que a beleza é um conceito relativo. Eu concordo sempre, menos quando estou apaixonado. Vou olhando para tudo e para todos para chegar sempre à mesma conclusão. Não há nada neste mundo tão belo quanto a Raquel.
Costuma-se dizer que a beleza não é tudo, que as pessoas não valem apenas pela sua aparência mas também pelo que são. Eu concordo sempre, menos quando estou apaixonado. Vou conhecendo tudo e todos para chegar sempre à mesma conclusão. Não há ninguém que eu admire tanto quanto a Raquel.
Por um momento parece-me que Amar é isso: sentir paixão e admiração ao mesmo tempo. É o que eu sinto por ela enquanto caminhamos de mão dada numa rua qualquer de Cabo Verde. Ela repara em tudo por onde vamos passando. Um muro em que as janelas são apenas tinta, uma estátua pensativa do Camões, um homem que seca peixe ao Sol ou uma criança que corre na nossa direcção. Eu reparo nela, na Raquel.
Entramos numa feira de artesanato, bem no centro da cidade, e ela afasta-se de mim para fotografar uns quadros de palha. As nossas mãos apartam-se e eu sinto-a ir como se estivesse a partir para sempre. O meu coração parece uma folha de papel amarrotada pelas saudades desse tempo imenso que passa sem ela, até a ver voltar com um sorriso nos lábios e um beijo de recordação desses tempos de solidão. Chegou a estar a mais de três metros de distância de mim, e talvez ninguém no mundo seja capaz de entender a violência que isso foi.
O Amor a sério é assim: um calafrio contínuo entre um abraço quente e uma solidão deserta. Quente, frio, quente, frio, quente, frio. Sinto-me um Rei para logo a seguir me sentir um mendigo de mão estendida a uma esperança calada. É ela, que se afastou alguns metros e já aí vem. Ainda bem. Sei lá eu o que vem a seguir...

2.22.2012

mindelo

mindelo

Numa rua qualquer do Mindelo vou dando pontapés no que sobrou da noite anterior. Alguns copos de plástico e lixo indecifrável que o vento tenta limpar com insucesso. Sei que passei por aqui ontem mesmo, pela confusão do Carnaval Popular. É que por aqui existem dois tipos de Carnaval, um organizado e a fazer lembrar o Brasil, outro que lembra o fim do mundo, como se todos saíssem à rua para aproveitar os últimos dias de vida.
Foi nesse fim do mundo que uma mulher me tentou beijar à força, que um local me mandou voltar para a minha terra  e fez questão de me dizer que odeia os portugueses de merda, que outro me abraçou e insistiu que era o meu melhor amigo. Os sentimentos contrários misturaram-se nesse cocktail de grogue, mãos que pediam e que davam, olhares furtivos que fui tentando entender.
Numa rua qualquer do Mindelo vou dando pontapés no que sobrou da noite anterior. Reparo num resto de pano verde que adormeceu abraçado ao tronco duma árvore e lembro-me de o ter visto a vestir uma mulher de cujos olhos não me esquecerei. É da cristalização dessas lembranças frugais que se alimentará a minha memória desta terra. Delas, da simpatia quente da maior parte dos caboverdianos, e de ter aqui estado tão apaixonado como nunca pela mulher da minha vida, porque o Amor é sempre o ingrediente principal de qualquer viagem. Aqui, como noutro sítio qualquer.

Ilda d'Cais

Conheci a Ilda d'Cais, uma senhora que imediatamente me convidou para jantar cachupa em casa dela e da sua família numerosa. A porta da casa está sempre aberta, para que qualquer um dos seus ainda mais numerosos amigos possa entrar e sair a qualquer altura.
Ter sempre a porta aberta é uma demonstração de Amor. E eu, que não consigo ser como esta senhora, percebi que ela sente por todos aquilo que eu sinto apenas por quem Amo. Se não na forma, pelo menos na intensidade. Agradeço-lhe a lição.

2.16.2012

cabo verde



Cabo Verde é um dos países que eu sempre quis visitar. Nunca o fiz. Nos momentos em que tive dinheiro para o fazer nunca tive tempo, nos momentos em que tive tempo nunca tive dinheiro. Cheguei assim aos quarenta anos, com essa pequena parte do mundo a revelar-se como uma grande falha da minha vida.
Vou lá amanhã, e o que mais me atrai nesta viagem acaba por não ser o país em si, mas sim o facto de lá ir com a Raquel. Por estes dias prefiro ir com ela seja onde for do que ir sozinho a um sítio ainda melhor. Acho que o Amor é a única variável que consegue pôr as coisas neste termos, e de repente faz sentido eu nunca ter ido ao país que tem a melhor música do mundo.
A propósito, durante a próxima semana não sei como vai ser o meu acesso à net, mas garanto que se puder venho aqui actualizar o blogue, mesmo que a resposta personalizada aos comentários não possa ser feita.

respostas a perguntas inexistentes (196)

Adoro chegar a casa depois de um dia de trabalho e ter a cozinha por arrumar, as camas por fazer e alguns casacos espalhados pelas cadeiras e sofás da sala. Não é que goste de muito de tarefas domésticas, claro. O que eu gosto mesmo é de ter a opção de não fazer aquilo que é suposto, pelo menos uma vez por outra. Além disso há a alargada questão da felicidade e, consequentemente, do Amor.
Nunca acreditei que me fosse possível Amar uma mulher excêntrica no que se refere à arrumação. Lembro-me, por exemplo, da Maria Augusta, com quem marquei um blind date depois de uma breve troca de emails pela internet. A primeira impressão que tive quando a vi foi que tinha alinhado todos os seus longos e milhares de cabelos um a um. Era tão bonita e simpática que, quando uns dias depois me convidou para ir a casa dela, desejei em segredo encontrar um lar que não correspondesse a essa imagem. Enganei-me, correspondeu sim. Servi-me de um uísque por sugestão dela, no mini-bar da sala, e quando pousei a garrafa no mesmo sítio de onde a tinha tirado ela foi lá realinhá-la ao milímetro com o restante vasilhame. Percebi nesse preciso momento que o melhor era não me apaixonar por ela, caso contrário ia passar o resto da minha vida  a sentir a minha descontracção desarrumada reprimida.
Acho que é assim em tudo. Preciso da higiene mas desprezo a arrumação excessiva. Por exemplo nas cidades, gosto delas limpas mas desarrumadas, com esplanadas vivas e mexidas, com gente a mudar imprevisivelmente de direcção, alguns automóveis mal estacionados e transeuntes a atravessar a passadeira no vermelho. São cidades com mais Amor e mais felizes, apesar do caos. As cidades demasiado arrumadas são cidades tristes, mesmo que ordenadas.

2.15.2012

o amor é uma alienação...

A pedido de um leitor, publico aqui um texto seu, com votos de que o Amor lhe corra bem...

Como posso amar a Lua depois de visto o Sol?
Não há nenhuma relação de amor que seja fácil. O primeiro a dizer que amar é fácil... engana-se... Está errado! Muito errado! Amar é com paixão é sofrer, sempre! A própria paixão é ela mesma sofrimento! E se não houver sofrimento não há paixão!.
Os portugueses para chegar à India muitas tormentas atravessaram, algumas por traições, outras por corsários, outras pelos velhos do Restelo... E finalmente até por um Adamastor e um cabo das tormentas que se tornou da Boa Esperança. Mas como diz o poeta, quem quiser passar pelo Bojador tem de passar para além da dor!
Eu espero dobrar esse cabo, ultrapassar esses inimigos, combater e vencer esses corsários,e os velhos do Restelo que desapareçam... E que o Adamastor venha a cair no mar... e a Boa Esperança seja sempre o horizonte...
A nossa relação não começou da melhor maneira, foi pura atracção, uma paixão ardente.... Não sabia o quanto viria a desejar-te, a amar-te... e o quanto te amo...
Nestes anos, tenho passado por noites sombrias, mas desejava tanto aquele dia branco. Aquele mesmo dia que tu desejas, com um mar de beldona. Não consigo. Não sei lidar em ter-te fisicamente ao meu lado e ao mesmo tempo não te ter. Dizes que sou horrível, que sou a pior pessoa, que quem gosta, que quem ama não faz o que faço... Mas o que faz? Declarações de amor? E eu faço... E tu dizes que também não... Que não sei aceitar um não? Devo reprimir o amor que sinto por ti?
Que posso fazer? Deixar de te amar? Sim... Se calhar fará sentido... Contudo ninguém acreditou em Cristóvão Colombo, ninguém acreditou em Vasco da Gama, mas todos conseguiram... Eu sei, eu não sou um descobridor nem um navegador... mas acredito que navego neste mar tempestuoso e um dia hei de a chegar ao teu coração... E tu voltarás a amar-me... E aí dirás: afinal tens razão... "O amor é uma alienação..."
Como eu não percebo as mulheres, mas sei o quanto te amo e sei que vou lutar por ti até ao fim... Até dizer: enfim, nós!
Amo-te!

E.F.

uma mentira de Amor vale mais que uma noite só

A Cláudia acusava-me de só estar interessado nela por causa do sexo. Acho que só me queres porque gostas de mim na cama, dizia ela. E eu sorria. Durante meses entendi isso sempre como um elogio, até à noite em que ela me fechou a porta na cara e eu voltei para casa a carregar o peso excessivo do seu olhar triste. O sexo é a segunda melhor coisa do mundo, pensava eu sem perceber a sua recusa instantânea às noites em que desafiávamos com o corpo a falta de Amor entre nós.

Pelo caminho entrei num bar tão abandonado quanto eu. Um homem gordo de bigode que nem olhou para mim apoiava o queixo na palma da mão enquanto via o resumo dos jogos de futebol desse fim de semana. Não percebi se estava bêbado ou se a vida deixara de passar por ele há já muito tempo, mas acabei por concluir que eram as duas coisas. Atrás do balcão onde me sentei, uma mulher que fumava um cigarro cansado apressou-se a dar-me uma carta enegrecida com todas as bebidas disponíveis. Nem olhei para ela. Um Bushmills sem gelo, pedi. Algumas lâmpadas fundidas davam ao sítio um ambiente pós-holocausto, o que me fazia sentir em causa. E de resto, o vazio.
Acho que foi essa a primeira noite, depois do meu divórcio, em que chorei para uma audiência digna das minhas lágrimas. Falhara-me o Amor e agora falhava-me o sexo. Já só me restavam uns euros para beber uísque e a voz duma mulher esquelética a pedir-me que o pagasse. Bebi o primeiro num só gole e pedi outro. Parei de chorar e fiquei a observar a quietude do homem que via futebol na televisão, com a perfeita noção de que a mulher do balcão me observava a mim. Era uma espécie de cadeia alimentar da solidão, ali, com a dona de um bar no topo, a observar um homem inesperadamente só que, por sua vez, observava outro que já nem só se sentia. Não me parecia que sentisse fosse o que fosse, aliás. E por um momento desejei ser como ele.
A Cláudia telefonou-me para que eu lhe explicasse como é que eu gostava dela. Percebi que as mulheres não entendem normalmente o sexo. Não percebem o melhor que ele tem, que é a enorme capacidade de transformar por momentos uma vida de merda numa vida boa. Só querem sexo com uma declaração de Amor, ou seja, quando ele é uma consequência e não uma causa dessa vida boa. Afoguei esta certeza no que restava do meu segundo uísque e bebi-a diluída nele. Amo-te muito, disse-lhe. Podes voltar, respondeu-me ela. Uma mentira de Amor vale mais que uma noite só.

2.10.2012

o segredo da rua

Hoje almocei com a Raquel por aí, num restaurante em Matosinhos de que já nem me lembro do nome. Lembro-me sim, de que acabei a refeição antes dela muito por culpa da minha terrível mania de comer demasiado depressa, e de ter ficado com meio copo de vinho para beber devagar. Dei um primeiro gole contemplativo como quem bebe um segredo, e fiquei a vê-la acabar.
É verdade que o Amor começa sempre por ser um segredo só daquele que Ama. Pelo menos, quando me apaixonei por ela, só eu é que o sabia. Mais ninguém. Às vezes até me convenço que chegou mesmo a ser um segredo de ninguém, porque me apaixonei antes de eu próprio o ter percebido. Foi nessa altura que lhe comecei a chamar o segredo da rua. A ela. Mais ninguém.
Era uma rua qualquer de Aveiro onde eu a esperava todos os fins de tarde, só para a ver passar por um momento, e onde os sorrisos sedutores que eu ensaiara durante o dia inteiro me asfixiavam nesse preciso momento. Era um segredo só meu, esse Amor e essa asfixia contínua do tempo.
E a minha mãe a perguntar-me se eu estava doente e eu a responder que não, o meu amigo Paulo a perguntar-me se eu estava bem e eu a responder que sim, a minha amiga Luísa a perguntar-me se eu estava apaixonado e eu a abanar os ombros. Assim, todos os dias a mentir-me a mim mesmo através dos outros para não tocar na verdade que era um segredo só meu.
Passaram-se mais de vinte anos desde esse tempo até a poder ver de novo, por uma mera coincidência, num café do Porto, num encontro combinado às cegas através do email com uma leitora deste blogue (os que aqui costumam vir já conhecem a história). Lembro-me de a ter reconhecido com o mesmo sabor do vinho de hoje e de, por um momento, tudo isso ter sido um segredo cósmico só meu.

2.09.2012

Zapping Sobre As Madrugadas Idênticas

A Eugénia Brito quer que o Amor nunca surja por acaso, mesmo quando surge. Para além da forma como escreve, é essa forma de sustentar uma paixão que faz de Zapping Sobre As Madrugadas Idênticas um livro tão obrigatório de ler quanto o do Amor passar pela nossa vida. Mesmo quando passa sem querer.
Posso apaixonar-me por uma mulher e todos os dias dizer para mim mesmo que tenho sorte em tê-la encontrado. Mais sorte ainda por ela se ter apaixonado por mim da mesma forma que eu me apaixonei por ela. Só que a sorte nunca chega para aguentar um Amor de pé, e é por isso que todos os dias, na mulher que eu Amo, procuro as razões desse Amor. Encontro-as em tudo: no corpo, no cheiro, no olhar, nas lágrimas, no ombro, nos pés, na voz, no sono, no sexo e até no adeus. Depois espanto-me por ver tanto daquilo que à partida me parecia invisível.
Conheci a Eugénia por sorte há uns anos, num pequeno passeio que fiz a Braga. Desde então, tenho encontrado em cada livro seu mais uma razão para a ter conhecido. O Zapping Sobre As Madrugadas Idênticas pode ser comprado nestes sítios. Por acaso ou por opção.

"Ver a verdade não é possuir a verdade. Ver a tristeza é possuir a tristeza. Só a reconhecemos porque temos espaço disponível para a sustentar e porque já fomos tristes, já fomos felizes, já fomos contentes, já fomos e sentimos. Já agimos em função desses estados e sabemos que para conseguirmos expulsá-los temos que os reconhecer."


in Zapping Sobre As Madrugadas Idênticas, Eugénia Brito, edição de autor, 2011
Prémio Literário Cidade de Almada 2010

2.08.2012

respostas a perguntas inexistentes (195)

Ainda me Amas?

Quantas vezes um homem pergunta a si mesmo se ainda é Amado por quem Ama? Muitas. Tantas que às vezes perde a noção e começa a perguntá-lo em voz alta.
O problema do Amor é que não vai lá com conversa. Ninguém se convence que é Amado pela via verbal, mesmo que finja que sim. O amor precisa de pele, de carne e de cheiro. Enfim, precisa do corpo. Um bom vendedor pode conseguir vender um pente a um careca, mas não consegue convencer ninguém da sua paixão. A não ser, claro, que ela exista mesmo. Esse é o problema do Amor, embora também seja a sua maior vantagem.
Todas as mulheres o sabem, os homens é que nem por isso. Um homem que pergunta muitas vezes a uma mulher se ela o Ama é por norma um homem inseguro, uma mulher que faz o mesmo a um homem é uma mulher que gosta de ouvir repetidamente aquilo que já sabe. É segura de si, portanto. Nos dias que correm só gosto do Amor que respira silêncio, que é no toque desse silêncio que sinto a sua certeza.
Outra coisa que as mulheres sabem e os homens não, é que é sempre através das palavras que o Amor decide mentir. Nunca através dos gestos. Talvez seja por isso, aliás, que é contraproducente um homem exagerar na pergunta "Ainda me Amas?". Pode parecer que se está a querer convencer a si mesmo de qualquer coisa. E as mulheres sabem-no.

2.07.2012

conversa 1883

Ela - O que é uma mulher boa na cama, na tua opinião?
Eu - É uma mulher que quando dorme não se enrola nos lençóis de tal maneira que eu fico ao frio. São difíceis de encontrar, mulheres boas destas...
Ela - Que coincidência, o meu marido queixa-se que eu faço isso. Será que sou má na cama?
Eu - Deves ser péssima.
Ela - Nunca ajudas nada.

coisas que fascinam (139)

pontapé no gato

Dei, sem querer, um pontapé ao meu gato. Ele tem a mania de se enrolar nos meus pés mesmo quando estou com pressa. Costumo andar com muito cuidado por causa disso mas hoje, entre o armário da louça e a máquina de café, esqueci-me de o fazer por um momento e pontapeei-o. Miou de dor e fugiu para debaixo do armário, onde o fui buscar para o manter nos meu braços durante os cinco minutos que me restavam antes de sair para o emprego.
Fiquei ali com ele ao colo, a espreitar pela janela da cozinha enquanto lhe sentia o ronronar a regressar lentamente. Sei que esse ronronar é o barómetro da sua felicidade e, por isso, quando o percebi no seu melhor estado pousei-o no chão e dei-lhe uma dose de comida húmida. Um pequeno luxo para um gato triste, portanto. Comeu tudo duma vez e voltou à sua actividade normal de atravessar as minhas pernas enquanto ando.
Nunca tinha percebido esta proximidade entre espécies. A dele e a minha, quero eu dizer. Ainda há poucos dias levei um pontapé da vida daqueles que doem a sério. Quando cheguei a casa deixei-me estar nos braços da Raquel uns momentos e depois digeri um bombom de cereja e um uísque bushmills que ela me deu. Um pequeno luxo para um homem triste, portanto. 

2.03.2012

conversa 1882

Ela - Tens que me ensinar como é que se engata um homem.
Eu - Eu?!
Ela - Sim. És homem, por isso sabes o que eles gostam mais de ver numa mulher.
Eu - Mas os homens não são todos iguais. Uns gostam mais dumas coisas, outros doutras...
Ela - Os homens não são todos iguais?!
Eu - Não, claro que não.
Ela - Oh! não. Nesse caso estou lixada.
Eu - Lixada porquê?
Ela - Não me apetece andar a investigar homem a homem.
Eu - Só tens que investigar aquele de que gostas.
Ela - Eu não gosto de nenhum.
Eu - Não gostas de nenhum?! Então queres engatar quem?
Ela - Um qualquer que não seja muito feio, só para quebrar a monotonia de viver sozinha.
Eu - Um qualquer que não seja muito feio?! Se é assim só tens é que ser bonita e consegues o que quiseres.
Ela - E sou?
Eu - És.
Ela - Lá está, acabaste por admitir o que eu queria.
Eu - O quê?
Ela - Os homens são todos iguais.
Eu - Ok... mas há uns mais iguais que outros.
Ela - Sim, sim... há mas é uns com mais testosterona, outros com menos...

2.02.2012

a ponte da discórdia

Um dos problemas de alguns políticos é agirem sem Razão. Às vezes é também agirem sem Coração. A Câmara Municipal de Aveiro está prestes a fazer uma imensa asneira no centro da cidade, daquelas que a mim, que nasci e cresci nesta cidade,  vai doer para toda a vida. Aos aveirenses interessados, leiam aqui, por favor.

conversa 1881

(ouvida no metro do Porto)

Ele - Acho que a minha mulher me anda a pôr os cornos.
Ela - Como é que sabes?
Ele - Se ela descobriu que eu te ando a comer a ti e nem se importou, só pode andar a pôr-me os cornos.
Ela - Estou farta de te dizer que a gaja é uma vaca.
Ele - Mas eu descubro, eu descubro...

guardanapos

Apercebeu-se que gostava dela durante as compras num supermercado, ao discutir a cor dos guardanapos de papel que iam utilizar no jantar. Ela queria uns brancos mais baratos, ele queria uns surpreendentemente pretos. Duas douradas enormes, uma garrafa de vinho e um ramo de salsa já estavam no cesto. Faltavam apenas os guardanapos, de que se tinha lembrado ao estacionar o carro lá fora.
Conheceu-a algumas semanas antes, numa festa de amigos comuns. Todos beberam muito nessa noite, menos eles os dois, que ficaram a noite inteira a conversar na varanda com os copos de vinho vazios. Foram os últimos a sair e, quando se despediram, não trocaram os números de telefone nem beijos, apesar da vontade que ambos tinham de o fazer. Nesse dia cruzaram-se ao fim da tarde numa avenida da cidade e ficaram a conversar sentados numa paragem de autocarro, até ele a convidar para jantar lá em casa. Ela aceitou à primeira.
Ele sabe que só consegue ter discussões sobre temas banais com mulheres que é capaz de Amar, nem que seja por uns momentos. É sempre assim que detecta uma possível paixão, discutindo coisas sem interesse mas com o maior dos empenhos, tal como aconteceu enquanto os peixes assavam no forno. Primeiro falaram sobre vinhos, depois sobre as cidades de que gostam mais, sempre com os lábios de ambos cada vez mais próximos. Por fim fizeram Amor.
Começaram na cozinha e acabaram na chaise long da sala, com a roupa espalhada pelo chão como testemunha dos acontecimentos. Os quatro sapatos e a camisola dela na cozinha, a camisa dele e a camisola interior dela no corredor, as calças dele e o sutiã dela à entrada da sala. Finalmente, já junto ao ninho do pecado, toda a roupa que faltava.
Ele lembra-se que ao vir-se lhe cheirou a queimado, mas achou normal dada a fricção dos acontecimentos. Há momentos em que o cérebro humano é incapaz de prolongar um pequeno pensamento que seja, e por isso pode fazer associações surreais. Só ao acordar, duas horas depois, é que percebeu tudo. Ela já não estava, mas num dos guardanapos tinha deixado o seu número de telefone e um aviso de que a dourada estava queimada. Ah! e que é por isso que os guardanapos brancos são uma escolha melhor. Dão para escrever avisos e deixar números de telefone.