Ensaio sobre uma mulher gorda
Apareceu um destes dias na minha casa depois de um pedido amargurado pelo telefone. Não tenho mais ninguém a quem telefonar, disse ela. Pois é, pensei eu, é possível chegarmos a um ponto em que não temos ninguém a quem telefonar. Desliguei o telefone e liguei a memória. Há uns vinte anos saíamos quase todos as noites e quase todas as noites eram uma festa, entre amigos, sorrisos, algumas cervejas e, uma vez por outra, uma mão dada ou um abraço mais apertado.
Acho que a amei numa altura em que não sabia muito bem o que era amar. Todas as mulheres que um homem ama quando ainda não sabe o que é amar são importantes. Na verdade são as melhores professoras que ele teve. Mesmo que não o saibam.
Plastifiquei o sorriso possível antes de lhe abrir a porta e a convidar para entrar. Mas ela não entrou sozinha, com ela entrou um silêncio que se sentou no sofá da sala mesmo ao lado dela e que me custou a expulsar. Bebes alguma coisa? Que não. Comes alguma coisa? Que não. Tenho ali um vinho que é uma especialidade. Que não. Estás bem? Que nem por isso. Depois deixei as perguntas e dei-lhe uma ordem: tira o casaco. E ela tirou. Acho que só aí é que o silêncio saiu e ficámos os dois sozinhos.
Explicou-me que está gorda e eu, na minha ingenuidade, não percebi que não era isso que ela me queria dizer. Não vieste até aqui, depois de tantos anos sem nos vermos, para me dizer que estás gorda, pois não? Que não. Depois olhou para o tecto e continuou pausadamente: está gorda porque come demais, come demais porque se sente sozinha e deprimida e que isso se tornou num ciclo vicioso.
Já aceitas um copo de vinho? Que já. Sorriu pela primeira vez. E o teu marido? Que deve estar com os amigos. Percebi então que me estava a falar da depressão dos dias, daqueles que se tornam sempre iguais e que de repente transformam a vida num percurso monótono e, a espaços, solitário. Não há pior do que a solidão que se sente quando se vive com alguém, confirmou.
Acho que o vinho é como as conversas. O segundo gole é melhor que o primeiro, o terceiro é melhor que o segundo e por aí adiante. As conversas só são realmente boas quando nos deixamos embriagar por elas. É sempre assim, disse eu.
É sempre assim, disse ela insistindo, como se tivesse suportado o desabado durante anos. Uma mulher apaixona-se, casa e tem filhos. Sente que está a subir a montanha sem perceber que o cume dessa montanha é um espaço exíguo onde só cabe uma pessoa. Quando dá por ela percebe que foi a única a realmente cuidar dos filhos e que o marido já a trocou por uma rede social qualquer que manteve todos esses anos. No café, no trabalho ou noutro sítio qualquer. Depois resta um sofá, umas bolachas e um... frigorífico.
Zanguei-me com a vida, que não pode ser só um sofá, umas bolachas e um frigorífico. Podia responder-lhe que acho que ela se devia separar e começar de novo; podia dizer-lhe que acho que ela não está no cume da montanha mas sim que já a desceu e por isso pode começar a subir de novo; podia dizer-lhe que não admito tanta passividade duma pessoa que significa tanto para mim. Mas não disse nada. Só que ela está gorda, sim, mas continua tão bonita como há vinte anos atrás. Bebemos o resto da garrafa.