9.22.2016

coisas que fascinam (212)

agasalho

A temperatura média baixou. De vez em quando chove, ainda que raramente, e o vento passeia devagar pelas ruas da cidade. Não tem nome, porque não cabe em nenhuma outra, mas é esta a minha estação preferida. Uma mistura de Outono e de Primavera. É a minha preferida porque, apesar do Sol, as pessoas precisam de agasalho.
Um abraço também é isso: um agasalho. Se não o for, não chega a ser um abraço. E passeei-me com o vento que me parecia tão só. Fui para onde ele ia sem sequer lhe perguntar porquê. Desde o dia anterior que uma frase não me saía da cabeça. "Devias ter cuidado. Estás a ficar demasiado búlgaro!". Foi uma mulher que ma disse, já eu me tinha despedido. Tomámos café e eu informei-a que precisava ficar sozinho o resto do dia. Antes de me afastar, ela atirou-a como se fosse uma lança qualquer. Uma frase pode ser uma lança? Pode.
O recreio duma escola que eu me habituara a ver deserto estava agora cheio de vida. Algumas crianças corriam e gritavam numa brincadeira que me pareceu sem sentido, outras jogavam futebol com uma bola barata e duas raparigas analisavam as raízes duma árvore que deve estar ali há mais de cinquenta anos. Curvaram-se e depois gritaram. Era um bicho qualquer que as assustou. Vi-as abraçarem-se enquanto o grito se apagava lentamente. Agasalharam-se uma à outra, concluí.
Não sei quanto tempo fiquei ali, a olhar para o pátio da escola através das grades, prisioneiro das minhas memórias de há quarenta anos atrás noutra escola, mas com os mesmos gritos sem sentido e as mesmas bolas baratas. Sei que o vento ficou comigo e percebeu-me. Somos todos tão o mesmo.
Dentro de um carro vermelho escuro, um puto qualquer fitava-me curioso não sei há quanto tempo. Fechei a mão em punho e estiquei apenas o dedo polegar. Fixe! Ele respondeu-me com um gesto igual, riu-se e escondeu-se no banco de trás.
O Chucky's Coffee House é o melhor sítio da cidade para tomar café ou, no mínimo, aquele que é mais parecido com um café português. Descobri-o num abraço há uns meses atrás durante uma visita que tive. Foi lá que o vento me levou sem eu pedir. Costuma ser assim. Quando não tenho destino, agasalho-me na memória dum abraço.
A frase foi-se.

9.14.2016

as fracas luzes da cidade indicar-me-ão o caminho

Os candeeiros públicos parecem ter frio. É a sensação que tenho quando reparo na forma como a luz de cada um se encolhe na escuridão da noite. Não iluminam quase nada, mas fazem-se notar como se fossem pequenos pirilampos envergonhados. É por isso que tenho a sensação de estar numa cidade fantasma, onde as pessoas já se foram deitar e fiquei apenas eu, sentado numa paragem de autocarro a tentar perceber como se movem as sombras.
Entre mim e a Lua há dois números vermelhos a desafiar a noite. Um nove e um doze. Faltam doze minutos para o autocarro da linha nove chegar. É isso. Não é a linha que me pode levar ao pequeno e velho rés do chão onde vivo, mas optei por passar na casa duma mulher que não está na cidade.
É claro que, se não está, não a vou poder ver. Ainda assim, conto que a viagem me traga uma certa normalidade. É um trajecto que já fiz várias vezes a esta hora para ir ter com ela, por isso optei por fazê-lo mais uma vez. Distraio-me sempre com as luzes enfraquecidas e pergunto-me o que é que estão ali a fazer. Às vezes lembro-me da cidade de Londres num tempo em que eu não vivi, e de funcionários municipais a acenderem todas as noites os candeeiros a petróleo que iluminaram, por exemplo, os crimes de Jack O Estripador. Talvez os tenha visto num filme qualquer e nunca mais me esqueci.
Uma das sombras da cidade senta-se ao meu lado. Também está só e, mesmo que não a possa ver, percebo que é duma mulher que aperta as golas do casaco numa vã tentativa de se aquecer. Sentou-se exageradamente perto de mim e posso ouvi-la respirar. Talvez tenha medo de estar sozinha e partiu do princípio que eu, por estar à espera de um autocarro, não seja alguém perigoso como foi Jack. Procura, também ela, alguma normalidade. Gostava de lhe perguntar se alguma vez viu um filme em que homens acendem candeeiros a petróleo nas ruas de Londres, mas seria tão bizarro que não o faço.
Para ela, também eu sou apenas uma sombra. Talvez por isso me pergunte agora qualquer coisa que eu não consigo entender. Não falo búlgaro, digo-lhe. Ela cala-se. Provavelmente só queria ouvir a minha voz. Eu, pelo menos, fiquei contente por ouvir a dela.
Tenho a certeza que é bonita. Imagino-a magra, com a pele exageradamente branca e o nariz de cerâmica a ameaçar  partir-se. Os lábios marcados pelo frio e alguns sinais no queixo. Talvez tenha o cabelo pintado de ruivo e olhos pretos. 
O som característico do autocarro ouve-se no fundo da noite. Os faróis aproximam-se devagar como se fossem de um animal qualquer que, de tão cansado que está, pára mesmo à nossa frente respirando de forma sôfrega. Vem vazio.
Olho uma última vez para a Lua. Tenho a certeza que esteve a ler os meus pensamentos. A mulher senta-se duas filas à minha frente e vira-se durante dois segundos para me ver. Não é nada do que eu imaginei. Muito provavelmente eu também não sou nada do que ela imaginou.
Encosto a cabeça ao vidro da janela como se quisesse ouvir algum segredo vindo lá de fora. Daqui a nada saio num bairro dos subúrbios, olho para as janelas fechadas de um apartamento que pertence a uma mulher que não está e depois faço cerca de três quilómetros a pé até minha casa. As fracas luzes da cidade indicar-me-ão o caminho. Não era preciso, mas é esta a minha normalidade.

9.07.2016

a pele é uma estrada

E eu ali, de cerveja já quente na mão a olhar para o alcatrão, com algumas feridas que me lembravam rugas próprias da velhice. Foi a primeira vez que me veio à ideia comparar o piso duma estrada com a pele de alguém mas, de facto, ambas tinham uma coisa em comum: a idade.
E ela a perguntar-me em que é que eu estava a pensar. Nada, respondi. Só então reparei que não falávamos há pelo menos meia hora. Enquanto eu me perdia no labirinto dos meus pensamentos, ela não disse uma única palavra. Manteve-se em silêncio, ao meu lado, creio que com os olhos pousados em mim.
Em alguma coisa estavas pensar, disse. Depois sorriu sem eu ver, que ainda estava concentrado numa das feridas abertas no alcatrão, a maior de todas e de onde sangravam algumas ervas daninhas.
Os meus olhos voaram pelo espaço à procura de um caixote do lixo onde pudesse colocar a garrafa e ela adivinhou. Pegou-lhe, verteu o líquido amarelo para dentro da ferida como se a quisesse desinfectar e afastou-se.
As mulheres sabem sempre onde estão as coisas que os homens não conseguem ver. Um caixote do lixo, por exemplo, que estava ali a uns dez metros. Ouvi os passos dela, depois o som do vidro a bater no plástico e os passos de novo, a regressarem, tão certos que mais pareciam o ritmo de um piano. Ainda estás a olhar para o chão, concluiu assim que voltou. E estava, agora era a espuma da cerveja que me lembrava uma onda de mar.
Não lhe quis dizer que eu sabia que dali, seguindo por aquela estrada e depois por inúmeras outras, podia chegar ao meu país, à minha praia, ao meu lugar. Se ela entendesse que eu estava a propor fazer quase quatro mil quilómetros a pé, pareceria algo absurdo. Ainda assim, senti um certo conforto com esse pensamento final.
Levantei os olhos e ela ainda sorria. Dás-me a mão? Perguntei. E ela deu. Começámos a caminhar. Nunca percebi porque é que duas pessoas que se estão a apaixonar começam a caminhar assim que dão as mãos, mas creio que é porque se pararem a tendência é abraçarem-se. E então parei e ela abraçou-me. Estava o chão, eu, ela e as nuvens. Não sei bem quanto durou esse abraço porque deixei de contar o tempo... talvez uns dez segundos ou uns quinze minutos. Só sei que foi o primeiro.
Depois a pele é uma estrada. Percorremo-la os dois, um no outro, até chegarmos a nós. Pelas nossas rugas, a alguns milhares de quilómetros de onde tínhamos começado. Emigra para mim, mandou-me. Mas eu não esqueço de onde vim.

9.04.2016

dez

No fundo da marquise havia um tanque de lavar a roupa, esquecido e humilhado pela máquina de seiscentas e cinquenta rotações que entretanto se instalara a poucos metros. Não me lembro uma única vez de alguém ter aberto a torneira ansiosa por enchê-lo, mas lembro-de ser tão pequeno que o podia trepar e meter-me lá dentro. Enquanto o pude fazer, esse tanque foi o meu avião. Pilotei-o durante milhares e milhares de quilómetros a contemplar a paisagem que se via lá embaixo, desde a vidraça que fechava aquele compartimento do segundo andar da casa onde cresci.
Às vezes, em vez de o pilotar, planava. Ia ao frigorífico buscar uma das mousses de chocolate que a minha mãe costumava fazer e comia-a apenas em duas colheradas. Depois ficava ali, com a pequena taça de vidro na mão à espera de absolutamente nada, tentando apenas prolongar o doce momento que acabara de viver.
Nunca fui de comer doces em pequenas doses. Era guloso e, fosse qual fosse o doce, comia-o em apenas alguns segundos de forma a atingir um maior nível de prazer, mesmo que isso implicasse depois ver outras crianças ainda a comer quando eu já não tinha nada.
Quando me apaixonei a sério pela primeira vez por uma mulher contei-lhe esta história. Estávamos num café em Aveiro e eu já não era assim tão guloso. Bebíamos cerveja os dois e ela sorriu-me. Deu-me a mão e abriu os enormes olhos azuis que costumavam hipnotizar-me mesmo quando não estavam perto de mim.

- Não faças isso connosco... - pediu.
- Isso o quê?
- Abocanhar o nosso Amor todo de uma só vez.

Foi o Amor mais longo da minha vida. Quando ele acabou, comecei este blogue, que tem agora dez anos de idade. Não é que a idade seja importante, mas o que ele já me deu é definitivamente importante. Já conheci muitas pessoas através dele, incluindo um Amor que não acaba nem mesmo quando acaba.
Hoje de manhã, por exemplo, alguém que aqui vem lembrou-me que escrevi este texto em Janeiro deste ano, numa fase da minha vida em que tudo o que levava à boca me sabia mal, fosse em pequenas ou grandes doses.
Hoje vivo na Bulgária, onde nunca me  tinha imaginado a viver. Pela primeira vez na vida tenho dois Amores e não sei bem o que fazer com isso. Tenho um emprego razoável e uma vida que, se me esquecer das inesquecíveis saudades que sinto, me satisfaz, também por causa deste blogue e de quem me vem lembrar do que escrevi há mais de meio ano.
Obrigado.