12.06.2016

foguete

Quando era criança tinha uma pista com um comboio a que chamava Foguete. Chamava-lhe assim porque era esse o nome do comboio em que o meu pai regressava a Aveiro e, portanto, a casa sempre que a vida militar lhe permitia fazê-lo. O meu pai sempre foi bom, mas pouco dado à demonstração de sentimentos. Talvez por isso fossem esses os únicos momentos em que sentia o seu abraço e o via chorar, mesmo que sem lágrimas. Chegava, chamava-me filho, abraçava-me e ia pendurar o casaco castanho axadrezado no armário do quarto.
No entanto, quanto partia de novo nunca se manifestava. Fazia as malas e despedia-se como se fosse apenas ao outro lado da rua comprar cigarros. Eu ficava no meu quarto a dar voltas à triste miniatura do Foguete. Lembro-me que ele me fazia falta e de pensar que ele sofria mais quando chegava do que quando partia, ou seja, gostava mais de partir do que chegar.
Para mim, criança, a tristeza era ainda uma coisa a preto e branco. As pessoas choravam se estavam mal e não choravam se estavam bem. Ponto final. Foi preciso crescer, tornar-me adulto e partir para a Bulgária para o entender. Quando me despedi da minha filha também chorei sem lágrimas. Apenas por dentro. Aliás, até sorri. É quando partimos que precisamos de ser fortes e é quando regressamos que podemos fraquejar. Foi assim que aprendi que o choro não é óbvio. Podemos chorar quando estamos felizes e não o fazer quando estamos tristes.
Passou-se meio ano de Sófia, a cidade com nome de mulher a que passei a chamar minha. Fiz amigos, criei uma rede social, todavia sem lhe perceber os segredos. É incrível o poder de síntese da memória. Um dia que deixe esta cidade, não é da catedral Alexander Nevsky que me vou lembrar. Nem da montanha, nem dos edifícios. É da felicidade e da tristeza que caminham comigo pelas ruas da urbe e que nunca me deixam estar ausente de mim mesmo.
É assim, aliás, que me lembro da minha vida, independentemente dos lugares onde estive. As pessoas são como as cidades. Têm ruas e avenidas, jardins e subúrbios, cantos escondidos e um céu onde passam aviões. Vale a pena caminhá-las e conhecê-las.