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2.18.2019

coisas que fascinam (216)

O carrinho do supermercado está cheio de caixas de bolachas, algumas de limão e outras de laranja. Também tem algumas cotonetes de plástico e latas de tomate. Acabou de parar perto de mim, conduzido por uma mulher que analisa uma lista de compras num pequeno bloco de papel. Os nossos olhares encontram-se e prendem-se um ao outro por alguns segundos. O observado sou eu, que ela usa um véu islâmico e não posso ver mais do que isso mesmo, os olhos dela.
Ou posso. Na entrada reparei naquelas bolachas em promoção. Meia libra cada uma depois de cinquenta por cento de desconto. Também peguei numa caixa, no meu caso de limão, que está agora num cesto na minha mão esquerda junta com duas garrafas de vinho rosé português, um pacote de queijo fatiado e algumas bananas. Ela fixa as minhas compras e eu as dela.
Quero comprar fiambre, mas o carrinho dela não me permite chegar às embalagens que eu costumo consumir. Já lhe pedi em inglês para se afastar um pouco, mas ela não se moveu nem um milímetro.

- Could you, please, step aside so I can have a pack of ham?

Está ali parada a olhar para mim e a sorrir com a minha ginástica para chegar ao fiambre.Canso-me da situação e peço novamente, desta vez em português.

- Por favor, afaste-se. Preciso chegar ao fiambre.

Ela afasta-se, sorrindo ainda mais.

Lá fora estão seis graus, uma temperatura bastante amena para esta altura do ano mas, ainda assim, a precisar de agasalho. Ponho o meu saco de compras no chão para poder apertar o casaco e vejo-a novamente. Vai no banco de trás de um táxi e diz-me adeus com uma das mãos.
Quem é aquela mulher e como é que, pelo olhar, eu concluí que ela estava a sorrir?

12.29.2017

coisas que fascinam (215)

Hoje estive profundamente apaixonado por três minutos. Uma mulher que seguia à minha frente uns bons metros, numa das despovoadas ruas de Stoke, segurou a porta do bar onde ambos entrámos e esperou por mim. Agradeci-lhe o gesto e trocámos algumas palavras simpáticas. Depois separámo-nos, provavelmente para sempre. Eu fui para o balcão sozinho e ela foi para uma mesa onde tinha alguns amigos à espera. Não tornámos a falar.
Os três minutos não interessam. Interessa que me apaixonei mais uma vez para sempre. Se esse Amor eterno durou apenas três minutos, não é importante.  Já me aconteceu o mesmo com outros Amores. Um durou dezoito anos, outro sete, outro talvez uns dois. Sei lá. Importa-me que me apaixono sempre para sempre, mesmo quando sei que se trata de um Amor impossível de apenas alguns minutos.
De certa forma, foi assim que aprendi a sobreviver à vida, apaixonando-me a cada momento como se fosse a última vez e, vá lá, também a primeira.
Ao balcão pedi um Tullamore Dew duplo sem gelo. Bebi-o exactamente como tenho bebido a vida, em goles tão doces e pequenos quanto possível. Talvez uma porta possa decidir se a pessoa com quem nos cruzamos é, ou não, compatível connosco. Sei, por exemplo, que nunca me apaixonaria por uma mulher que me fechasse a porta na cara, apenas porque preciso de pessoas que se lembrem que as outras pessoas existem.
Nesta vida de emigrante e solidão que vou levando, todas essas pessoas que me consideram em pequenos gestos se tornaram tão importantes quanto um Amor de curta duração.
É só um exercício. Durante o ano que vem mantenham a porta aberta a quem vem atrás de vocês. talvez possam viver um intenso e secreto Amor de três minutos.

Bom 2018

1.20.2017

coisas que fascinam (214)

Talvez duas mulheres que dividiam uma música na estação de metro de Musagenitsa tenha sido o que vi hoje de mais bonito. Uma delas segurava um telemóvel de onde saía um par de auscultadores. Um deles estava no ouvido esquerdo duma delas, o outro no direito da outra. Sorriam. Não ouvi a música, mas imaginei que era a Ayo a cantar.
Vinham na minha direcção, no meio de um mar de gente que acabara de sair do mesmo metro que elas. Algumas das pessoas faziam um ar zangado porque as duas andavam mais devagar e atrapalhavam o movimento normal dos passageiros que entravam e saíam da estação naquela hora de ponta. Um homem deu-lhes um encontrão com o ombro e uma mulher gritou-lhes qualquer coisa em búlgaro.
Eu parei e a multidão passou por mim como lama viva. Aconteceu-me o mesmo. Levei um encontrão e tenho a sensação que alguém me disse alguma coisa desagradável do tipo "mexe-te!". Quando, finalmente, todos já se tinham ido embora, percebi que elas eram as únicas que sorriam. Então sorri também. Estava sozinho no cais.
Não sei quando é que a normalidade dos dias se torna tão cinzenta que acaba por ser agressiva para quem tem o bonito gesto de dividir uma música, mas senti-me bem por perceber que lhe escapei. A essa normalidade cinzenta, digo.
Estou aqui longe, entre uma dor e uma alegria constantes. É duro, mas é vida mesmo. E em vez de dar encontrões em mulheres que sorriem, sorrio-lhes também.

10.21.2016

coisas que fascinam (213)

a sombra de um abraço

Existem histórias de Amor e da falta dele, histórias de vitória e de derrota, histórias de esperança e de desesperança. De certa forma, existem histórias de tudo, cada uma com vários momentos mais ou menos importantes. Esta é uma história ao contrário porque só tem um momento: o do primeiro abraço que dei na Bulgária. Na verdade, talvez nem seja bem uma história. É mais uma marca que me ficou no corpo como uma impressão digital, mas sobretudo na alma como um doce que se prolonga no tempo.
Numa das mesas do café estava um homem que não fumara um cigarro. Esquecera-se de o fazer e o tempo fizera-o por ele, deixando um longo e frágil pau de cinza preso entre os seus dedos. O seu olhar também estava preso na janela do bar. Do outro lado passavam sombras irrequietas e a luz do Sol colara-se ao vidro como o olhar curioso duma criança. Apesar disso, pareceu-me que o olhar dele ia mais longe, talvez para o infinito, como se tivesse posto debaixo da língua um pequeno selo de LSD e agora pudesse mesmo ver a criança de luz que nos espreitava.
As sombras das pessoas apressadas sempre me pareceram loucas. Se eu fosse uma sombra, não ia acompanhar alguém que corre na cidade por ter pressa de chegar a mais um dia ou momento efémero. Compreendo as sombras que vão para a cama com os seus donos, que fazem Amor com eles e que os acompanham preguiçosas deitadas na relva de um jardim. Nunca aceitei a fidelidade canina que faz uma sombra seguir um tipo stressado para o emprego, por exemplo.
Foi com este pensamento que ela chegou e se sentou à minha frente sem me beijar. Na Bulgária, uma mulher e um homem não se beijam se não se conhecerem muito bem. Por isso limitámo-nos a cruzar olhares e a dizer olá. Tive a breve sensação, no entanto, que a sombra dela me acariciou. Soube-me bem. Entretanto olhei para o homem na outra mesa do bar. O pau de cinza ainda lá estava.
Não percebi o que ela me estava a dizer. Os olhos dela eram negros como um poço sem fundo e eu mergulhei neles. Tentava tocar esse fundo com a ponta dos meus dedos, mas não conseguia. Era a solidão a empurrar-me para baixo e a voz dela abstracta à superfície. Quando finalmente me senti a afogar, esbracejei rapidamente para voltar à superfície. Respirei sôfrego e a voz dela penetrou-me como um gigante a penetrar uma virgem. Sangrei da alma, talvez por a voz vir acompanhada de um sorriso constante.

-  Estás a gostar da Bulgária?

O que é que eu ira responder a uma mulher de quem não fazia a mínima ideia de nada, para além da profundidade dos seus olhos? Nada. Era uma pergunta de circunstância e eu não me sentia pronto para retórica e banalidades. Mudei de assunto.

- A clientela deste bar é só pedintes e pessoas sem-abrigo, não é? - Perguntei, enquanto olhava para o cigarro queimado pela terceira vez.
- É, por isso é que achei estranho quereres encontrar-te aqui com uma mulher que conheceste na internet...
- Senti-me bem quando aqui entrei a primeira vez. Também sou um pedinte, de certa forma...
- Por isso é que imigraste?
- Não. Primeiro imigrei para aqui, depois transformei-me num pedinte. Ainda não abracei uma mulher desde que cheguei...

Finalmente a cinza caiu como o galho duma árvore apodrecida. O homem acordou do que me pareceu ser uma espécie de hipnotismo, pousou a cabeça nos seus braços sobre a mesa e adormeceu de novo. A S. levantou-se e contornou a mesa num percurso de cinco segundos que me pareceram meia-hora. Abraçou-me e eu morri.
Quando ressuscitei ainda estava nos braços dela. Tenho esta sensação de que pedir, ser sem abrigo ou marginal numa cidade é muito mais do que precisar de comer. É também, talvez antes de tudo, precisar da sombra de um abraço.
Eu avisei que isto não era uma história. Era apenas um momento.
Ainda vou a este bar de vez em quando, ainda vejo a cinza a queimar lentamente nos cigarros dos pedintes, ainda me perco na profundidade do poço de solidão em que mergulhei antes desse dia. Sobretudo, ainda mantenho o esse abraço como um hábito regular.

9.22.2016

coisas que fascinam (212)

agasalho

A temperatura média baixou. De vez em quando chove, ainda que raramente, e o vento passeia devagar pelas ruas da cidade. Não tem nome, porque não cabe em nenhuma outra, mas é esta a minha estação preferida. Uma mistura de Outono e de Primavera. É a minha preferida porque, apesar do Sol, as pessoas precisam de agasalho.
Um abraço também é isso: um agasalho. Se não o for, não chega a ser um abraço. E passeei-me com o vento que me parecia tão só. Fui para onde ele ia sem sequer lhe perguntar porquê. Desde o dia anterior que uma frase não me saía da cabeça. "Devias ter cuidado. Estás a ficar demasiado búlgaro!". Foi uma mulher que ma disse, já eu me tinha despedido. Tomámos café e eu informei-a que precisava ficar sozinho o resto do dia. Antes de me afastar, ela atirou-a como se fosse uma lança qualquer. Uma frase pode ser uma lança? Pode.
O recreio duma escola que eu me habituara a ver deserto estava agora cheio de vida. Algumas crianças corriam e gritavam numa brincadeira que me pareceu sem sentido, outras jogavam futebol com uma bola barata e duas raparigas analisavam as raízes duma árvore que deve estar ali há mais de cinquenta anos. Curvaram-se e depois gritaram. Era um bicho qualquer que as assustou. Vi-as abraçarem-se enquanto o grito se apagava lentamente. Agasalharam-se uma à outra, concluí.
Não sei quanto tempo fiquei ali, a olhar para o pátio da escola através das grades, prisioneiro das minhas memórias de há quarenta anos atrás noutra escola, mas com os mesmos gritos sem sentido e as mesmas bolas baratas. Sei que o vento ficou comigo e percebeu-me. Somos todos tão o mesmo.
Dentro de um carro vermelho escuro, um puto qualquer fitava-me curioso não sei há quanto tempo. Fechei a mão em punho e estiquei apenas o dedo polegar. Fixe! Ele respondeu-me com um gesto igual, riu-se e escondeu-se no banco de trás.
O Chucky's Coffee House é o melhor sítio da cidade para tomar café ou, no mínimo, aquele que é mais parecido com um café português. Descobri-o num abraço há uns meses atrás durante uma visita que tive. Foi lá que o vento me levou sem eu pedir. Costuma ser assim. Quando não tenho destino, agasalho-me na memória dum abraço.
A frase foi-se.

7.23.2016

coisas que fascinam (211)

Jardins

Uma das coisas que eu mais gosto em Sófia são os jardins. Alguns deles são bastante grandes, todos a tender para o selvagem. Normalmente com muitas pessoas, algumas a beber cerveja, outras a andar de bicicleta ou de skate, outras a namorar e algumas a pedir esmola. Nunca gostei de jardins demasiado cuidados, com as árvores sempre podadas e os arbustos a delimitarem áreas como se fossem linhas de soldados incapazes de pensar. No que se refere às mulheres também sou assim. Gosto das desarranjadas e digo-o assim por também gostar de pensar em mulheres como jardins.
Talvez por isso me tenha passeado bastantes vezes por eles, tão sozinho quanto o que se pode estar num cidade com três milhões de habitantes em que não se conhece nenhum. Normalmente em Borisova, com uma garrafa de litro de cerveja na mão e o tempo a passar devagar pela minha pele. Uma vez sentei-me num dos velhos bancos a beber e conheci uma mulher que se sentou propositadamente ao meu lado. Ao contrário do jardim, estava bem arranjada. Falámos um pouco e senti-me ainda mais só.
Podemos pensar que é a conhecer pessoas que se combate a solidão, mas não é verdade. É quase isso, ou seja, conhecendo algumas pessoas. As pessoas são como peças de um puzzle. Algumas encaixam em nós, outras não. E é assim que se começa uma história a dois. Encaixando.
Uns dias mais tarde voltei lá e deitei-me na relva. Foi a primeira vez que reparei que as árvores contavam segredos entre elas sobre as pessoas que passavam. Sobre dois velhos, por exemplo, discutiam sobre há quanto tempo eles vão ali passear abraçados. Sobre um adolescente que patinava num skate colorido, apostavam sobre quando ia ser a sua primeira queda. Acho que as árvores sabem tudo sobre nós. É por isso que não falam. Segredam.
E então segredaram-me sobre uma mulher que passava sozinha. Disseram-me que encaixaria em mim e eu levantei-me e fui falar com ela. Primeiro ignorou-me e depois pediu-me que me afastasse. Depois eu disse-lhe onde ia estar deitado na próxima hora, se ela quisesse voltar. E ela voltou. As árvores tinham razão.
Nesse dia dei-lhe a mão e deixei de ouvir os seus segredos.

3.15.2016

coisas que fascinam (210)

fotografia

A beleza física interessa, claro que sim. Não é daquela beleza que leva uma mulher a ser Miss Colômbia que falo. Mas é beleza, é corpo e é importante.
Falo da beleza que leva um homem a conhecer uma mulher através duma fotografia, mesmo que não a tenha conhecido pessoalmente nem sequer por cinco segundos. A beleza que lhe permite imaginar-lhe uma voz, um comportamento, um abraço, um beijo ou uma frase. Na verdade, permite-lhe imaginar cada segundo sobre ela.
É muito possível que ela não corresponda a nada disso. Não faz mal, porque chega para ele se apaixonar por ela. É por isso que a beleza física interessa. 

3.14.2016

coisas que fascinam (209)

De certa forma, apaixonamo-nos para podermos tocar no mundo. O mundo em que vivemos, apesar de pequeno no universo, é demasiado grande para nos apercebermos dele duma só vez. Então apaixonamo-nos, porque o Amor é a única forma de termos um mundo só para nós, que é simultaneamente pequeno o suficiente e grande que chegue.
Quando não Amamos ninguém, é o mundo que apesar de grande nos escapa por entre as mãos. Podemos ler todos os livros, ouvir todas as músicas, ver todos os filmes e até viajar incessantemente que não conseguimos ter toda a percepção dele, simplesmente por não o podermos partilhar com ninguém. 
Quando, depois de um período de solidão, nos apercebemos da capacidade que temos para nos apaixonarmos outra vez, é do mundo que temos fome. Porque é nele que está tudo aquilo que nos liga ao nosso Amor: um bilhete de cinema, uma cama no quarto ou uma música nas ondas hertzianas.
Não toco no mundo há algum tempo, mas entretanto já me apeteceu.

3.10.2016

coisas que fascinam (208)

Do que me lembro quando me lembro de ti.

De um dedo cortado numa lata de atum que ias juntar a uma outra de feijão frade, mais dois ovos cozidos e alguma cebola cortada bem fininha. De me pedires um penso rápido e eu enrolar-to no indicador da mão direita que depois beijei e, por fim, de pousares a tua cabeça no meu peito e abraçares-me.
De um livro cansado na mesa de cabeceira e de um televisor neurótico na cómoda do quarto. De te pedir para baixares o som e tu me mandares calar e ler e depois, arrependida, de pousares a tua cabeça no meu peito e abraçares-me.
De um copo de vinho numa esplanada de praia e do vento que o tombou e partiu. Duma nódoa na tua saia branca e de me dizeres que ia ser difícil de a tirar, mais uma discussão com um empregado que queria que pagasses o estrago. De ti nervosa e eu a dizer para irmos embora e, por fim, de pousares a tua cabeça no meu peito e abraçares-me.
Sei que a nossa história foi curta e simples porque todos os caminhos vão dar à tua cabeça no meu peito e os teus braços à minha volta, e então tenho a certeza que foste boa. É do que me lembro quando me lembro de ti.

3.04.2016

coisas que fascinam (207)

O que o Amor nos permite é interromper a vida de vez em quando. É essa a sua maior vantagem, podermos dizer à vida que espere um bocadinho porque temos coisas mais interessantes para fazer, seja sexo, um passeio à beira-mar ou um abraço apertado.
Lembro-me de uma namorada minha se ter sentido mal num restaurante perto de Castelo Branco. Ajudei-a a sair e sentei-a num muro exterior que dava para a estrada. Depois sentei-me eu ao lado dela e amparei-a com o meu abraço. Às vezes ela afastava-se para vomitar e eu sofria por vê-la sofrer, mas nos intervalos de acalmia sentia-me o homem mais feliz do mundo. Os carros passavam na estrada em velocidade cruzeiro, as nuvens passavam no céu, os números passavam nos nossos relógios, mas nós não passávamos em nada. Estávamos ali a ver como era a vida a passar. Só isso. E era bom.
Quando não Amamos ninguém estamos sempre a viver. Não é que viver seja mau, mas assim sem interrupções pode cansar um bocado. Aliás, sempre me pareceu que é a vida que estraga o Amor e não contrário. O Amor tenta ajudar a vida mas ela não costuma deixar. Depois trama-o.
Quando finalmente nos decidimos a voltar para casa, a noite já tinha caído. Os carros passavam menos, o céu não se via e as horas não importavam. Tive a sensação de que a vida desacelerara um pouco para permitir que o nosso Amor continuasse para além dessa tarde. Tínhamos algumas horas de estrada pela frente e ela deu-me a mão sempre que a condução o permitiu.
No silêncio da noite, decidi-me a escrever qualquer coisa sobre o que senti nessa viagem, mas nunca o fiz. Até hoje, dia em que já nem sequer sei onde ela está.
Sejam felizes!

2.26.2016

coisas que fascinam (206)

Na literatura e nas canções sobre o Amor desprezamos a vida. Aquela de todos os dias, em que fazemos compras para o jantar, pomos gasolina no carro, pagamos a conta do gás e sentamo-nos derrotados no sofá da sala a ver um programa estúpido na televisão.
Talvez não saibamos do que falamos quando falamos de Amor e por isso só nos venha à cabeça estrelas brilhantes no céu, paisagens exuberantes, o luar no seu máximo expoente e emoções vivas e extremadas.
Temos tendência a imaginar o Amor num mundo que não existe para além do nosso desejo e da nossa imaginação. Às vezes, talvez por isso, temos até dificuldade em encaixá-lo no nosso. É verdade que se falamos de Amor numa praia deserta e no calor da noite, tendo por testemunha apenas a luz da Lua, podemos acabar num abraço e num beijo doces. É legítimo e sabe bem. Mas o beijo e o abraço mais importantes são aqueles que surgem ao fim da tarde e nos fazem acreditar que, apesar do dia de merda que tivemos, vale a pena viver.
Ninguém deve Amar ninguém apenas por necessidade, mas se o Amor serve para alguma coisa, digo eu que é capaz de ser para isso.
Se eu tivesse o direito de sugerir alguma coisa a todos os Amantes do mundo, sugeria que não se Amassem apenas quando estão de férias numa ilha paradisíaca, mas também e principalmente encalhados na fila do trânsito.

2.22.2016

coisas que fascinam (205)

Fui esperá-la ao cais. Embora fosse totalmente diferente, o barco que acabara de encostar à terra fez-me lembrar um conto de Mark Twain e aquela embarcação a vapor que atravessa o Mississipi nos seus contos do Tom Sawyer. Talvez seja o meu lado lírico, pensei. Na verdade, o que eu estava a ver era apenas um cacilheiro. O Sol batia-lhe por trás e, por isso, reconheci-a apenas pela silhueta. Fiz-lhe um gesto com a mão como que a dizer "estou aqui" e uma série de passageiros olhou na minha direcção. Talvez ali, naquele lugar e momento, houvesse mais umas dezenas de almas com um primeiro encontro marcado, à procura de alguém que fizesse um gesto igual ao meu.
Ao abraçá-la percebi isso mesmo. Pelo canto do olho vi uma série de abraços tão iguais e tão diferentes quanto o nosso. Por isso fechei os olhos por dois segundos, para que o meu pudesse ser só para mim. Quando a larguei, já só estávamos os três no mundo: eu, ela e a cidade.
E é sobre isso que eu quero escrever. Sobre a cidade.
Quando a deixei de novo no cais, ao fim da tarde, já o Sol se encontrava no outro extremo do horizonte. Provavelmente andara louco, lá em cima, à nossa procura nas ruas esguias da urbe. Fiquei a ver o barco desaparecer no rio de prata durante algum tempo e, quando finalmente me voltei, a cidade não era a mesma.
É que quando um lugar testemunha um abraço, passa a fazer parte desse momento para sempre. Se lá voltarmos, um dia mais tarde, esse lugar segreda-nos a recordação que temos dele. É como se esse abraço fosse um carimbo no tempo e no espaço em simultâneo.
Mais tarde, podemos pedir ao tempo se esqueça dele, mas nunca o podemos pedir a um lugar. No que diz respeito ao Amor, o espaço combate o tempo.

2.18.2016

coisas que fascinam (204)

O ciúme ao contrário

Não há ciúme mais bonito do que o ciúme duma amiga. Ao contrário do ciúme clássico, aquele que se apropriou de todo o campo semântico da própria palavra, o ciúme duma amiga não aprisiona. É libertador.
O ciúme duma amiga tem sempre duas linhas orientadoras de máxima importância. A primeira é a "tem cuidado com as mulheres, que elas fazem de ti o que querem" e a segunda é "continua a tomar café comigo, de vez em quando, mesmo que te apaixones por aí".
É o ciúme mais sincero e menos egoísta que um homem pode encontrar e, como tal, não se deve desperdiçar. Nem uma gota, digo eu. 
Por falar em gotas, fiquei a olhar para elas a deslizar no copo de cerveja enquanto ouvia as perguntas calculadas dela. A B. apaixonou-se e tem ciúmes que eu fique sozinho, por aí, depois dela mudar de cidade e de vida. 
Não é o ciúme de outra mulher, mas sim do mundo. É o ciúme ao contrário, portanto. Só uma mulher é que o consegue ter. E eu agradeço.

2.01.2016

coisas que fascinam (203)

Mãos ao ar, isto é uma paixão!

Acho que ninguém sabe como é que nasce um Amor. Aliás, também ninguém sabe como é que ele morre. Apenas nos apercebemos que ele já nasceu ou que ele já morreu. É por isso que o Amor que se promete eterno é sempre uma mentira. A vida precisa tanto da morte como a morte precisa da vida.
É claro que se pode Amar alguém até ao fim da vida. Mesmo que o Amor não seja eterno, a vida também não o é. Neste caso basta que a vida de duas pessoas dure menos que o seu Amor.
É também por isso que me cansa que alguém justifique o seu Amor com uma enxurrada de adjectivos pomposos. Na verdade, ninguém opta por Amar ninguém ou, melhor ainda, se há quem o faça é porque não sabe Amar.
A questão central é que só nos apaixonamos realmente quando somos assaltados. Alguém que se cruza connosco e nos rouba a paz de espírito com uma arma poderosa como um olhar, um gesto, uma voz ou uma palavra. Mãos ao ar, isto é uma paixão!
É claro que, como em tudo, há pessoas que são assaltadas com mais facilidade e outras com menos. Depende, essencialmente, das más ou boas companhias com que andamos e dos locais que frequentamos.

1.28.2016

coisas que fascinam (202)

Se uma mulher nos diz que gostava de fugir connosco para um sítio qualquer, está a fazer-nos uma declaração de Amor. Não por causa da intenção de fugir, mas sim por causa do sítio qualquer. As mulheres têm uma enorme vontade de fugir do sítio onde estão, mas nunca fogem. Os homens preferem ficar, mas às vezes fogem. Só que não é para um sítio qualquer.
Ela descasca uma laranja e diz-me que aquela parte branca, entre a casca e os gomos, é a melhor. Faz bem a tudo, insiste. Eu acabei de abrir uma cerveja e, tendo a garrafa na mão direita, brinco com a carica na mão esquerda. Não sei muito bem a que é a cerveja me faz bem. A não ser, talvez, à alma. Na verdade nunca penso no benefícios dos alimentos que ingiro. Limito-me a ingeri-los e pronto.

- Repete lá isso que disseste. - peço.
- A parte branca da laranja é a melhor...
- Não, não. Antes disso.
- Fugia contigo para um sítio qualquer...
- E que sítio qualquer é esse?

Ela abana os ombros. Por um momento tenho o desejo absurdo de que a minha cerveja nunca mais acabe nem a parte branca da laranja dela. Podíamos ficar aqui os dois, na varanda da casa dela, a olhar para a estrada em silêncio como se esperássemos alguma coisa. Mesmo sem esperar nada, digo.
A primeira linha que um homem e uma mulher podem atravessar juntos não é a do sexo. É a das palavras. Quando aquilo que dizem um ao outro não é óbvio nem claro, mas sim um pântano do qual ambos teimam não  abandonar.
A laranja acabou. A cerveja também. Ela é a primeira a levantar-se do sítio qualquer onde nos refugiámos durante alguns minutos. Tem os longos cabelos negros amarrados atrás das costas e põe as cascas no caixote do lixo com a mesma delicadeza de quem guarda um objecto precioso. 

- Queres outra cerveja?
- Não, obrigado... - respondo.
- Eu também não quero outra laranja.

É  estranho apaixonarmo-nos por uma mulher durante apenas uns minutos, mas é mais estranho percebermos que uma paixão pode durar apenas isso mesmo. O tempo de falarmos um com o outro apenas para sacudirmos a solidão do tempo. Desse tempo nesse lugar qualquer.

1.18.2016

coisas que fascinam (201)

Depois de qualquer Amor, há coisas belas que se tornam insuportáveis. Pode ser uma música, um filme ou até um cheiro. Tudo aquilo que se experimentou durante esse Amor deixa de servir com o seu fim. Não sobrevive.
Peço-lhe que mude a música que escolheu no Spotify e ela não entende porquê. 

- Não gostas? - pergunta.
- Adoro! Mas tira, por favor.
- Queres ouvir alguma coisa especial?
- Não.

Estou com uma chávena de chá a fumegar nas mãos. Ela viu-me da janela do seu quarto andar a estacionar o carro e ferveu água enquanto eu subia no velho elevador. Assim que entrei, mandou-me sentar e passou-ma para as mãos.

- Bebe.

Sei que lhe agradeci o gesto, mas acho que o fiz tão baixinho que tenho dúvidas que ela tenha ouvido o meu "obrigado". Para não correr o risco de o dizer duas vezes, elogio-a.

- Nunca bebi um chá tão bom como este.
- Podes estar calado. A sério...

A Eva tem um olhar e uma face indecifráveis. Neles, parece que todo o mundo se perdeu. Quando está triste é igual a quando está feliz, quando está calma é igual a quando está ansiosa. Sem palavras entre nós, somos apenas dois planetas distantes. Uma vez disse-lhe isso e ela não mudou de expressão. Ainda assim abraçou-me.

- Quando quiseres estar calado perto de mim, telefona-me cinco minutos antes só para saberes se eu estou em casa.

É isso que eu estou aqui a fazer. Nada. E de repente percebo que era o que eu estava  precisar...

1.13.2016

coisas que fascinam (200)

Trânsito de Vénus

Em contraluz, as pessoas que passeiam na praia são apenas sombras. Como tal, perdem a identidade. Cada uma delas podia ser outra. Deixa de me interessar quem são, a mim que me estendi sobre a areia invernosa e as vejo num trânsito constante à frente do Sol. Passa-me a interessar apenas a sua silhueta. Já fiz o mesmo com Vénus, ficar sentado a vê-lo passar lentamente à frente do Sol, sem motivo aparente.
Acompanho as sombras de um homem e de uma mulher de mãos dadas. Ele pára por um momento e baixa-se para apertar os atacadores dos sapatos enquanto ela, dois metros à frente, espera por ele e admira o Pôr do Sol. Depois ele levanta-se e continuam a caminhada, novamente de mãos dadas.
Por um momento apercebo-me que o Amor é apenas isso: ter alguém cuja mão nos espera quando paramos por um momento e, nessa espera, nunca se desespera. Aproveita-se a vida de uma forma qualquer. A olhar para um Pôr do Sol pela enésima vez, por exemplo, igualzinho ao que já vimos em postais foleiros para turistas e ao que se repete há tanto tempo quanto o trânsito de Vénus.
Quando um homem se apaixona de forma incondicional perde a noção desse tempo. Passa a acreditar que tudo parou e que vai ser sempre assim. Cada vez que se baixar para atar os atacadores terá uma mão à espera, numa cena. Até ao dia em que percebe que afinal nada parou e, sem ele dar conta, tudo se transformou.
A Lei da Amor é um pouco como a Lei da Conservação da Massa. Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. A mulher que lhe estendia a mão perdeu a brandura no olhar e a doçura na voz, mas essas características não desapareceram. Andam por aí, entre as silhuetas que passam.

12.29.2015

coisas que fascinam (199)

Aos dezanove anos escrevi a minha primeira história de Amor. Escrevi-a com o intuito de fazer um filme e, com excepção de algumas pessoas que me são muito próximas, nunca a mostrei a ninguém. Uma dessas pessoas é uma mulher por quem estive muito apaixonado e que acabou por ser a mãe da minha única filha. Separámo-nos dezasseis anos depois e hoje em dia, com quarenta e quatro anos, já perdi a conta às vezes que reescrevi a história. Ainda não fiz o filme.
Na verdade, cada mulher que fez parte da minha vida faz também parte da última versão da história. É por isso que a reescrevo. Se um dia, por acaso, eu conseguir mesmo passá-la para o ecrã, sei que nele poderei ver um pouco de todas as mulheres por quem me apaixonei. Saber isso traz-me de alguma forma uma sensação de alegria e também de angústia, porque naquelas páginas estão, ainda que de forma imperceptível para a maior parte dos potenciais leitores, tantos princípios como finais de Amores que sempre imaginei eternos.
Há algum tempo que não lhe pegava. Na verdade, tinha-a guardado numa pen de sessenta e quatro megabytes que comprei há sete anos e que estava cheia de pó numa gaveta onde guardo todo o tipo de recordações que não tenho coragem de ver de forma regular. Até hoje, dia em que a estive a ler porque, mais uma vez, preciso de lhe fazer alterações.
Das poucas coisas que aprendi com as diversas histórias de Amor que vivi, a mais importante é que a seguir a uma acaba sempre por vir outra. É assim que mantenho as forças para, em tempos estéreis, conseguir escrever sobre Amor.
Para além disso, e ao ler sobre os abraços que cada uma dessas mulheres me deu, percebi também que nenhuma mulher abraça da mesma forma. Sei, pelo menos, que o que um homem sente quando é abraçado por uma mulher nunca é igual ao que sente quando é abraçado por outra. Talvez seja assim que um homem se apaixona ou não. Através da singularidade de um abraço.
Se algum dia fizer o filme, quero que o último abraço, na última cena, pareça tão longo e tão curto como todos os abraços que recebi até hoje.

11.20.2015

coisas que fascinam (198)

O plano A

Para tudo podemos ter um plano B.  Menos no Amor. Se no Amor tivermos um plano B, então não é de Amor que falamos. É só por isso que nos sentimos perdidos quando alguma coisa corre mal com as nossas emoções. É que todos os planos, que não verdade são só um, parecem estar a falhar.
Ainda assim, o tempo que passa por nós e nos engelha a pele é o mesmo que nos ensina que podemos ter vários planos. Apenas não podem ser contemporâneos. Os planos A podem suceder-se, os planos B nunca existem.
Porque é de tempo que falamos quando falamos de Amor, foi esse mesmo tempo que me ensinou a perceber até quando me devo manter no meu plano A. É enquanto os olhares que se cruzam no ar se agarram como borboletas tontas e os braços se amarram como cordas de um navio. É só isso que define um Amor. É só isso que me mantém no meu plano A.


11.08.2015

coisas que fascinam (197)

O Amor deve ser das poucas coisas neste mundo que só acaba depois de já ter acabado. Ao contrário de um copo de vinho, de um prato de comida, de uma amizade ou de uma viagem, nunca damos pelo fim do Amor a não ser algum tempo depois dele já se ter ido. Ainda assim, o Amor é isso tudo: um copo de vinho, um prato de comida, uma amizade e uma viagem.
A diferença está na linha do horizonte que se desenha em tudo, mesmo que com traços indecisos, menos no Amor. Um copo de vinho satisfaz, um prato de comida também, uma amizade e uma viagem também. Um Amor não.
Bebo esse copo enquanto almoço na companhia de um amigo, numa curta viagem de fim de semana, e explico-lhe que talvez o Amor me tenha avisado do seu fim antes de ter acabado. 
Ele ouviu-me, mas não reagiu. No televisor silencioso, alguns polícias americanos perseguem latino-americanos no vídeo duma música que não conheço nem passei a conhecer, o que dá um ar surrealista à conversa. Talvez esteja a pensar na hipótese do seu próprio Amor ter terminado.
Não sabemos muito bem onde a viagem nos vai levar, mas a descoberta do momento é que podemos repetir o vinho. Diz ele como se tivesse acabado de descobrir a pólvora. Pede mais uma garrafa, redesenhando com um copo vazio no ar e um "outra, por favor" um dos nossos horizontes.
Descobriu mesmo a pólvora. Talvez eu possa repetir-te também.