1] Entro num café onde um homem colecciona garrafas vazias de cerveja em cima da mesa. Deve ir aí na décima e, de tão gordo que é, parece que nunca saiu dali em toda a sua vida. Dá um gole final em mais uma, arrota, passa a mão pela barba por fazer e coça discretamente os tomates. Depois, em silêncio, pede à empregada mais uma bebida levantado preguiçosamente o braço, e instala-se melhor na velha cadeira de madeira que range de dor. Os seus olhos voltam a fixar-se no ecrã de plasma da parede onde, no canal Fashion TV, algumas mulheres vão desfilando com vestidos decotados. Algo me diz que ele, apesar de estar a ver o programa com toda a tenção do mundo, se está perfeitamente nas tintas para a Moda.
2] Não o censuro. Na verdade a moda também não me interessa nadinha. Compro sempre a roupa mais barata que encontro desde que seja fácil de vestir, lavar, passar a ferro e, pronto, não desgoste assim muito. Tenho t-shirts que já têm alguns buracos mas continuo a vesti-las porque gosto delas. É o caso. Sento-me no balcão, peço um croissant e um galão à mesma empregada que acabou de levar mais uma cerveja ao gordo. Ela atende-me com um tom agressivo que não percebo muito bem e depois avisa-me que eu tenho a camisola rasgada nos sovacos. Eu sei, respondo. Já agora quero o croissant prensado.
3] O croissant não vem prensado mas eu não protesto. O gordo, atrás de mim e fora do meu ângulo de visão, diz que não percebe porque é que não vê na rua gajas com vestidos como aqueles. Depois conclui para ele mesmo, mas ainda em voz alta, que as portuguesas se vestem muito mal. Viro-me para trás e fixo-o de alto a baixo, curioso que estou pela sua forma de vestir. Calça uns sapatos pretos com meias brancas com raquetes que, por causa das calças de ganga serem muito curtas, se vêem perfeitamente. Tem uma coisa em comum comigo: a camisola dele também tem buracos na zona dos sovacos.
4] Já bebi o galão. Apetece-me um café e chamo a empregada. Olhe, faxavor. O gordo dá mais um arroto. Ela está a limpar os dentes com os dedos enquanto o seu olhar se perdeu algures atrás de mim. Tem as unhas pintadas dum vermelho vivo mas já a sair. Pode tirar-me um café? Limpa os dedos ao avental sujo que, reparo agora, também tem alguns buracos. Põe-me o café à frente sem colher e sem açúcar e, mais uma vez, não protesto. Desta vez só porque nunca adoço a bebida. Também tem uns buracos no avental, digo-lhe. Ela não liga nada e volta à sua manual higiene oral.
5] O gordo arrota de novo. A empregada peida-se, mas tão alto que provavelmente se ouviu lá fora. Fica atrapalhada e, num gesto nervoso, limpa agora as mãos às calças mas na zona das nádegas, como se castigasse o rabo pelo que acabou de fazer. Diz-me que o avental está roto mas é do trabalho. Afinal tinha-me ouvido, só não me tinha respondido.
6] Preparo o pagamento. Entra uma mulher sensivelmente da minha idade que se aproxima do balcão mas não se senta. Olho-a discretamente. É tão bonita que me sinto capaz de me apaixonar já. É melhor não. Viro-me também para a televisão onde ainda passam mulheres com vestidos que, para mim, são demasiado esquisitos. Elas, as modelos, são bonitas, mas normalmente demasiado magras. Nem uma barriguinha para amostra têm. É nisso que penso quando a nova cliente pede uma pata de veado e uma meia de leite. Afinal não pago já, fico ali a curtir a proximidade física àquela mulher bonita. A empregada torna a limpar a boca com os dedos. O gordo arrota e pede uma malga de "tramoços".