5.15.2017

Yanka



A Yanka contou-me a vida dela enquanto bebia Guiness num bar irlandês em Sófia. Ë um dos bares mais conhecidos, mesmo no centro, mas ainda assim não sei o nome. Sei que, enquanto me contava tudo, eu ia bebendo cerveja em goles cada vez menos espaçados. Guiness também.
Mantive-me sempre em silêncio total. Não perguntei nada, não tossi e nem sequer a respirar fiz qualquer tipo de ruído. Fiquei a ver os riscos da espuma que iam ficando agarrados aos copos das minhas cervejas formando círculos que se assemelhavam a lama derretida. Ela não se chegou a aperceber disso, mas alguns desses riscos marcavam a mudança de episódios da sua vida.
Por algum motivo que não consigo explicar, desde o princípio que eu soube que toda a vida dela naquela noite equivaleria a quatro pints de cerveja negra e que a sua última frase coincidiria com o meu último gole. A voz dela desenhava-se no ar mesmo à minha frente, soltando um suave aroma de perfume de rosas em cada palavra, não porque ela cheirasse propriamente bem, mas sim porque eu estava apaixonado pela primeira vez desde a minha chegada à Bulgária. Estar com a Yanka em silêncio o dia todo tinha sido bom, mas ouvi-la era ainda melhor. A voz dela é o ponto-rebuçado da sua presença.
Nunca me sinto apaixonado quando não estou perto dela. Não sinto saudades nem vontade de lhe telefonar. Não a ressaco de forma nenhuma, mas assim que a tenho perto de mim não consigo afastar-me. A sua presença tem um enorme poder sedutor, muito provavelmente concentrado nos seus olhos. São pretos e são grandes. Aventurar-me neles dá-me medo. Posso perder-me para sempre. Daí preferir concentrar-me nos riscos de cerveja que decoravam os copos.
Há mulheres pelas quais um homem se apaixona uma vez e já está. Mesmo a distância nunca atenua essa paixão. No caso da Yanka, apaixono-me de novo cada vez que a vejo como se fosse sempre a primeira. Basta ela, por exemplo, ausentar-se de mim enquanto tomamos um café para ir falar ao telemóvel com alguma privacidade que, assim que regressa, tudo começa de novo. Apaixono-me.
Nessa noite ela nunca se ausentou, ou seja, quando a história da vida dela terminou a minha paixão por ela já ia em quarenta e seis minutos. Quase uma hora, portanto. Uma eternidade para uma paixão tão forte. Os nossos olhares encontraram-se mais ou menos a meio de nós e ela disse que quando voltou de Portugal o automóvel preto estava estacionado no mesmo sítio de sempre. Dei o último gole na minha quarta cerveja e ela sorriu.
Apeteceu-me beijá-la, mas não o fiz. Às vezes os beijos são apenas uma bomba. Explodem bem no centro de um Amor enorme e destroem-no para sempre. Acabam com tudo. Acho que ela percebeu a minha vontade e a minha hesitação. Sorriu, não sei se com alívio ou desilusão, mas sei que  ela foi sincera quando me pediu desculpa por ter estado tanto tempo a falar dela mesma.
- Gostei muito de te ouvir! – respondi.
Era verdade, mas também era verdade que a história do automóvel preto tinha-me interessado ainda mais do que tudo o resto.
A Yanka foi a primeira amiga que fiz na Bulgária por uma razão muito simples: fala português perfeitamente. Quando eu, como um náufrago perdido num imenso mar de solidão, abri um perfil num site de engate na internet, ela foi a primeira a responder-me. Foi também a única, mas valeu a pena. Entretanto já me apaixonei por ela tantas vezes quantas as que estivemos juntos.
Encontrámo-nos no Borisova Gradina, um dos maiores jardins da cidade, num dia de Primavera. Reparei que ela tinha uma face bonita e que todos os sorrisos lhe morriam à nascença. Olhos pretos, capazes de entrar dentro dos meus e de me revistar como faz um polícia a um prisioneiro algemado. Veio até mim.
- Olá! És o português, não és?
E eu imediatamente a tentar libertar-me sem o conseguir.
- Sim...
Acabámos sentados num dos bancos verdes de madeira que pontilham o parque, a comer milho cozido comprado na entrada que dá para o edifício principal da Universidade de Sófia. A maior parte das pessoas passava à nossa frente sem sequer reparar na nossa presença, mas a certa altura pareceu-me que as árvores segredavam algo sobre o nosso encontro. Olhei para cima e vi que algumas folhas abanavam no que me parecia ser um movimento controlado e consciente. Tentei apurar os sentidos, mas ela interrompeu-me.
- É o vento... – disse.
No bar irlandês não havia vento, mas ainda assim eu olhava para as marcas de cerveja como se elas contivessem um segredo qualquer sobre nós, nem que fosse o pequeno pormenor de saberem que eu me apaixono por ela sempre que a vejo e que só por isso conseguia ouvir toda a sua história sem pestanejar.
Fiquei a saber que, depois da queda do regime comunista, a Bulgária passou alguns anos muito difíceis, principalmente já a meio da década de noventa. A inflação galopante percorreu o país e a fome entrou sem avisar nos lares búlgaros. Nessa altura Yanka era estudante universitária e tinha perdido o seu primeiro grande Amor logo a seguir à queda do muro de Berlim, na primeira vaga de emigração que o país sofreu e que acabou por atingir quatro milhões de pessoas. Lembra-se, por exemplo, de juntar todo o dinheiro com alguns dos seus colegas de quarto para poder comprar um pão negro que dividiam entre si. Às vezes era o único alimento que tinham durante vários dias.
Ainda assim, Yanka tinha casa. O direito à habitação do regime comunista transformara-se automaticamente em títulos de propriedade para os moradores. Apesar da fome, quase ninguém dormia ao relento e ela contou-me que se deitou muitas vezes no conforto da sua cama, sem comer, à espera que a fome adormecesse com ela. Chegou a sonhar que a sua casa era um enorme estômago esfomeado e ela um pequeno pedaço de pão à deriva lá dentro.
Foi num desses momentos que o som seco de três pancadas a acordou e a trouxe de volta ao mundo real. Alguém forçara a porta da entrada e invadira o seu apartamento. Ouvia os passos dos invasores, que seriam dois ou três, e gastou os últimos recursos energéticos para se manter alerta. Agarrou-se às barras metálicas da cama com a força com que um petroleiro se amarra ao cais e fechou-se num manto de silêncio. Um fio de saliva fria escorreu-lhe dos lábios quando eles entraram no quarto.
- Não me violaram! – disse olhando-me como se esperasse uma reacção de alívio.
Os quatro homens encostaram-lhe uma pistola à cabeça e deram-lhe dois dias para ela decidir vender-lhes a casa por tuta e meia. Era a máfia búlgara a fazer os seus primeiros negócios. No dia seguinte emigrou. O último vizinho que viu foi um homem do rés-do-chão que estacionava o carro preto sempre no mesmo sítio, debaixo duma árvore centenária da altura de quatro andares. Tinha acabado de o fazer e sorriu-lhe. Não podia imaginar que ela ia andar várias semanas à boleia até acabar em Portugal, numa pequena aldeia algarvia.
Quando voltou, muitos anos depois, ao chegar a casa viu exactamente o mesmo homem a estacionar o mesmo carro no mesmo sítio. Para ela, o mundo tinha mudado radicalmente, mas para aquele senhor a vida continuava como sempre, estacionando o carro exactamente no mesmo local.