Yanka
A Yanka contou-me
a vida dela enquanto bebia Guiness num bar irlandês em Sófia. Ë um dos bares
mais conhecidos, mesmo no centro, mas ainda assim não sei o nome. Sei que, enquanto
me contava tudo, eu ia bebendo cerveja em goles cada vez menos espaçados.
Guiness também.
Mantive-me sempre
em silêncio total. Não perguntei nada, não tossi e nem sequer a respirar fiz
qualquer tipo de ruído. Fiquei a ver os riscos da espuma que iam ficando
agarrados aos copos das minhas cervejas formando círculos que se assemelhavam a
lama derretida. Ela não se chegou a aperceber disso, mas alguns desses riscos
marcavam a mudança de episódios da sua vida.
Por algum motivo
que não consigo explicar, desde o princípio que eu soube que toda a vida dela
naquela noite equivaleria a quatro pints de cerveja negra e que a sua última
frase coincidiria com o meu último gole. A voz dela desenhava-se no ar mesmo à
minha frente, soltando um suave aroma de perfume de rosas em cada palavra, não
porque ela cheirasse propriamente bem, mas sim porque eu estava apaixonado pela
primeira vez desde a minha chegada à Bulgária. Estar com a Yanka em silêncio o
dia todo tinha sido bom, mas ouvi-la era ainda melhor. A voz dela é o
ponto-rebuçado da sua presença.
Nunca me sinto
apaixonado quando não estou perto dela. Não sinto saudades nem vontade de lhe
telefonar. Não a ressaco de forma nenhuma, mas assim que a tenho perto de mim
não consigo afastar-me. A sua presença tem um enorme poder sedutor, muito
provavelmente concentrado nos seus olhos. São pretos e são grandes. Aventurar-me
neles dá-me medo. Posso perder-me para sempre. Daí preferir concentrar-me nos
riscos de cerveja que decoravam os copos.
Há mulheres pelas
quais um homem se apaixona uma vez e já está. Mesmo a distância nunca atenua
essa paixão. No caso da Yanka, apaixono-me de novo cada vez que a vejo como se
fosse sempre a primeira. Basta ela, por exemplo, ausentar-se de mim enquanto
tomamos um café para ir falar ao telemóvel com alguma privacidade que, assim
que regressa, tudo começa de novo. Apaixono-me.
Nessa noite ela
nunca se ausentou, ou seja, quando a história da vida dela terminou a minha
paixão por ela já ia em quarenta e seis minutos. Quase uma hora, portanto. Uma
eternidade para uma paixão tão forte. Os nossos olhares encontraram-se mais ou
menos a meio de nós e ela disse que quando voltou de Portugal o automóvel preto
estava estacionado no mesmo sítio de sempre. Dei o último gole na minha quarta
cerveja e ela sorriu.
Apeteceu-me
beijá-la, mas não o fiz. Às vezes os beijos são apenas uma bomba. Explodem bem
no centro de um Amor enorme e destroem-no para sempre. Acabam com tudo. Acho
que ela percebeu a minha vontade e a minha hesitação. Sorriu, não sei se com alívio
ou desilusão, mas sei que ela foi
sincera quando me pediu desculpa por ter estado tanto tempo a falar dela mesma.
- Gostei muito de
te ouvir! – respondi.
Era verdade, mas
também era verdade que a história do automóvel preto tinha-me interessado ainda
mais do que tudo o resto.
A Yanka foi a
primeira amiga que fiz na Bulgária por uma razão muito simples: fala português
perfeitamente. Quando eu, como um náufrago perdido num imenso mar de solidão,
abri um perfil num site de engate na internet, ela foi a primeira a
responder-me. Foi também a única, mas valeu a pena. Entretanto já me apaixonei
por ela tantas vezes quantas as que estivemos juntos.
Encontrámo-nos no
Borisova Gradina, um dos maiores jardins da cidade, num dia de Primavera.
Reparei que ela tinha uma face bonita e que todos os sorrisos lhe morriam à
nascença. Olhos pretos, capazes de entrar dentro dos meus e de me revistar como faz um polícia a um prisioneiro algemado. Veio até mim.
- Olá! És o
português, não és?
E eu
imediatamente a tentar libertar-me sem o conseguir.
- Sim...
Acabámos sentados
num dos bancos verdes de madeira que pontilham o parque, a comer milho cozido
comprado na entrada que dá para o edifício principal da Universidade de Sófia.
A maior parte das pessoas passava à nossa frente sem sequer reparar na nossa
presença, mas a certa altura pareceu-me que as árvores segredavam algo sobre o
nosso encontro. Olhei para cima e vi que algumas folhas abanavam no que me
parecia ser um movimento controlado e consciente. Tentei apurar os sentidos,
mas ela interrompeu-me.
- É o vento... –
disse.
No bar irlandês
não havia vento, mas ainda assim eu olhava para as marcas de cerveja como se
elas contivessem um segredo qualquer sobre nós, nem que fosse o pequeno
pormenor de saberem que eu me apaixono por ela sempre que a vejo e que só por
isso conseguia ouvir toda a sua história sem pestanejar.
Fiquei a saber
que, depois da queda do regime comunista, a Bulgária passou alguns anos muito
difíceis, principalmente já a meio da década de noventa. A inflação galopante
percorreu o país e a fome entrou sem avisar nos lares búlgaros. Nessa altura
Yanka era estudante universitária e tinha perdido o seu primeiro grande Amor
logo a seguir à queda do muro de Berlim, na primeira vaga de emigração que o
país sofreu e que acabou por atingir quatro milhões de pessoas. Lembra-se, por
exemplo, de juntar todo o dinheiro com alguns dos seus colegas de quarto para
poder comprar um pão negro que dividiam entre si. Às vezes era o único alimento
que tinham durante vários dias.
Ainda assim,
Yanka tinha casa. O direito à habitação do regime comunista transformara-se
automaticamente em títulos de propriedade para os moradores. Apesar da fome,
quase ninguém dormia ao relento e ela contou-me que se deitou muitas vezes no
conforto da sua cama, sem comer, à espera que a fome adormecesse com ela.
Chegou a sonhar que a sua casa era um enorme estômago esfomeado e ela um
pequeno pedaço de pão à deriva lá dentro.
Foi num desses
momentos que o som seco de três pancadas a acordou e a trouxe de volta ao mundo
real. Alguém forçara a porta da entrada e invadira o seu apartamento. Ouvia os
passos dos invasores, que seriam dois ou três, e gastou os últimos recursos
energéticos para se manter alerta. Agarrou-se às barras metálicas da cama com a
força com que um petroleiro se amarra ao cais e fechou-se num manto de
silêncio. Um fio de saliva fria escorreu-lhe dos lábios quando eles entraram no
quarto.
- Não me
violaram! – disse olhando-me como se esperasse uma reacção de alívio.
Os quatro homens
encostaram-lhe uma pistola à cabeça e deram-lhe dois dias para ela decidir
vender-lhes a casa por tuta e meia. Era a máfia búlgara a fazer os seus
primeiros negócios. No dia seguinte emigrou. O último vizinho que viu foi um
homem do rés-do-chão que estacionava o carro preto sempre no mesmo sítio,
debaixo duma árvore centenária da altura de quatro andares. Tinha acabado de o
fazer e sorriu-lhe. Não podia imaginar que ela ia andar várias semanas à boleia
até acabar em Portugal, numa pequena aldeia algarvia.
Quando voltou,
muitos anos depois, ao chegar a casa viu exactamente o mesmo homem a estacionar
o mesmo carro no mesmo sítio. Para ela, o mundo tinha mudado radicalmente, mas
para aquele senhor a vida continuava como sempre, estacionando o carro
exactamente no mesmo local.