5.31.2007

há um gesto por surgir

Há um gesto por surgir. Ligo o PC e pouso na mesa uma sandes mal comida. Primeiro o Windows está a iniciar, depois carrega as minhas definições pessoais. Definições pessoais, diz ele. Vá-se foder, digo eu. Quem é o gajo para pensar que me conhece? Há mais Windows. Há, há, e há um gesto por surgir.
Encosto o ombro a um dos vidros da janela da cozinha, depois de tirar uma chávena de chá quente do micro-ondas. Está muito quente e faço barulho a beber um gole inepto. Lá fora há várias definições pessoais que, não sendo minhas, vou carregando. A vizinha da frente estende lençóis brancos que tapam as janelas do andar de baixo, enquanto o marido entra no automóvel sem olhar para cima nem lhe dizer adeus. É um silêncio explosivo. Acho que ela está a olhar para os lençóis e a perguntar-se porque é que dorme neles, com ele, todas as noites.
Há um gesto por surgir. Talvez o do cão que cheira as pernas da dona lá em baixo no passeio. Ela é bonita, penso. É sempre o primeiro pensamento que tenho quando vejo uma mulher qualquer: é bonita, é mais ou menos bonita, é isto ou aquilo. É também o pensamento menos importante, e por isso apresso-me a embrulhá-lo noutra inteligência qualquer. Não gosto dela. É bonita mas não gosto dela. Não gosto da forma como trata o cão, subjugando todos os seus movimentos. Posso estar a ser injusto mas não interessa. Ela não sabe.
Há um gesto por surgir. Talvez o da mulher que espreita para dentro do contentor de reciclagem de papel. Ainda respira mas já não está viva, penso eu. Pelo menos é que me parece pela quietude dos seus olhos. O corpo mexe-se mas os olhos não, o que indicia que já não procura nada de novo na vida. Deixa-se ir, como um galho seco numa ribeira amortecida. Não tenho pena dela. Se não está viva também não está triste. E eu dou mais gole no chá. Queimo a ponta do lábio.
Há um gesto por surgir. E é meu. Volto ao computador e desligo-o. Imbecil, não me apetece estar numa máquina com as minhas definições pessoais. Procuro um gesto qualquer. Volto à janela. A vizinha da frente diz-me adeus. Depois pousa a cabeça entre as duas mãos em forma de taça, suportadas pelos cotovelos alicerçados na janela. Talvez assim o silêncio do seu marido, que ficou estacionado na rua quando ele partiu, se vá também. Digo-lhe adeus. Ela é bonita. Que pensamento pouco importante, penso. Mas é o primeiro e é normal que o seja. É simpática também, ou parece, pelo menos. Digo-lhe adeus. Encontrei o gesto. É tudo.

9 comentários:

L u i s P e s t a n a disse...

Um gesto pode encher um dia

Ivar C disse...

pois pode, Luis, ou esvaziá-lo...

deKruella disse...

Ainda bem que o fizeste! ;)

Ivar C disse...

;)

vague disse...

Lindo o gesto por surgir, lindo o gesto que surgiu. E bem traduzido em poesia.

Ivar C disse...

vague, obrigado pelo teu gesto. A sério...

Anónimo disse...

um gesto diz mais que palavras

Anónimo disse...

um gesto diz mais q palavras!

Ivar C disse...

josé, :)