1.27.2007

open, close, play

Pega-se num cd da estante da sala e caminha-se, com ele balançando entre o polegar e o indicador da mão direita, até à cozinha. Open. A tampa da mini hi-fi abre tão devagar que parece que naquele momento cabia uma vida. Close. Play. Open, close, play: três passos que qualquer divorciado já deu. Open quando casou e acreditou que valia a pena, close quando se divorciou e acreditou que nada vale a pena, play quando começo a respirar a outra vez. Talvez valha a pena, pensa-se. Música vocal cigana do princípio do século já se espalhou pelos cantos da cozinha. Monocórdica, como uma tarde que se escreve involuntariamente só.
Open. Uma mulher é sempre open. Mesmo uma que se cruzou connosco num autocarro, e é tão bonita; levantou-se antecipadamente para sair depois dum túnel, e é tão bonita; foi batendo com o polegar no corrimão vertical em que tocou a campainha, e é tão bonita; olhou-nos de relance quando as portas abriram, e é tão bonita. Saiu: close. Era tão bonita.
Play, o bicho continua em movimento tortuoso serpenteando a cidade. Com mais fome. Engole pessoas pela porta da frente e vomita-as pela porta de trás, sem ligar merda nenhuma à minha vontade de ter ficado estacionado no momento em que os nossos olhos se cruzaram, e ela era tão bonita. Os autocarros não estacionam, o tempo não estaciona, as relações também não. Vivemos e temos que decidir tudo em andamento. Open, close, play. Open, close, play...
Se eu lhe pudesse dizer alguma coisa era open. Agradecia-lhe a existência e ter-se cruzado comigo neste mundo tão povoado, e de me ter povoado a mim. Tanto, ainda que pouco. Que eu sou um cais, pois, onde a fugacidade se atraca com a força dum navio petroleiro. Pois sou: um cais deserto onde à noite vou fumando as nuvens que poluem o horizonte, desenhando-a hirta, batendo com o polegar ao ritmo duma música qualquer. Uma música qualquer? Não, talvez uma música cigana, vocal e monocórdica, que se espalha em momentos involuntariamente sós. Open, Close, Play.

11 comentários:

Elipse disse...

o gajo é artista!

acho... acho mesmo que é um dos melhores textos teus que já li.

não acho. tenho a certeza.

Ivar C disse...

lol, fausta. obrigado. já posso editar outro livro, um dia destes... ;)

Anónimo disse...

Não necessariamente, com essa dinâmica. Open, play, close, também pode ser interessante.

Anónimo disse...

Gostei...gostei muito! A vida é feitas desses momentos e, se pudesse, tambem muitas vezes parava o tempo no exacto instante em que eles acontecem....

Beijos

Fausta Paixão disse...

"uma mulher é sempre open"

... e desta vez não meteste secreções na coisa!

mesmo assim saíu fascinante, Ivarzinho! Será efeito do baixo nível do índice?

(esta sim, sou eu... que mania de confundir as personagens!)

Ivar C disse...

karla, neste caso acho interessante, até muito... ;)

obrigado nina :)

fausta... desculpa lá ter-te confundido... nem sei que te diga. :)

vague disse...

Gostei muito. Tem um ritmo muito equilibrado e a leveza dos mundos densos que se tentam abrir e play.
O close já passou :)

osmi disse...

olá

asdrubal tudo bem disse...

Vai atrás dela procura-a não te fiques pelo se...

Ivar C disse...

vague, obrigado... ;)

olá, osmi.

asdrubal, se tudo fosse assim tão fácil... o mundo era melhor. :)

asdrubal tudo bem disse...

O segredo é mesmo esse é enfrentar as dificuldades por maiores que elas sejam