12.10.2010

vingança

O Amor é muitas vezes um cão sem faro, uma sequência de erros sucessivos que formam um erro enorme e absoluto. É uma pega de frente a um touro agressivo de cornos bem afiados. No fundo é uma cegueira total. E ainda bem que é assim, porque se assim não fosse o Amor nunca poderia ser ele mesmo. Para acertarmos é preciso falhar primeiro. Uma, duas, três, ou quantas vezes for preciso.
Eu sentia que ia passar a noite a seguir um grupo de homens e mulheres a alguns metros de distância, como um lobo que ainda não foi aceite pela matilha, mas quando a Márcia me telefonou a perguntar se eu queria ir jantar com ela e uns amigos aceitei sem hesitar. Depois disso veio uma viagem de automóvel, umas apresentações mornas que confirmavam que eu não era bem vindo no grupo e uma aprendizagem sobre como parecer que se está bem disposto quando de facto não se está.
Apaixonei-me por Márcia uns dias antes na internet, e quando um dos meus melhores amigos me criticou por eu me sentir apaixonado por alguém que nunca tinha visto, rebati o seu pessimismo com a certeza que um amor que começa pelas palavras é de certeza mais forte do que um que começa pelo prazer do sexo. Enganei-me. E foi assim que conheci a Sandra.
Márcia sentou-se à minha frente na longa fila de mesas e cadeiras no restaurante e era a única pessoa disponível para falar comigo. Por isso, quando o deixou de fazer passei a sentir-me numa ilha. Eu, uma garrafa de vinho e uma mesa enorme vazia cercada por um mar de gente a dançar em fila uma música pateta qualquer. Até que da maré brava deu à costa Sandra, uma mulher em quem eu tinha reparado por ter passado o jantar calada a cinco ou seis cadeiras de distância de mim, e que de repente, talvez embalada por aquela dança frenética, se sentou ao meu lado e bebericou directamente do meu copo de vinho.

- Vamos até lá fora? - Perguntou.
- És a minha única companhia. Faço tudo o que tu quiseres. - Mendiguei.
- Tudo mesmo?
- Tudo.
- Dormes comigo se eu te pedir? - Riu-se, não percebi se pelo vinho ou pela pergunta.
- Durmo.

Segui-a de perto para não a perder. Primeiro entre todos os que dançavam, depois lá fora entre a noite que entretanto se deitara na cidade e por fim de automóvel, até ela passar o portão do jardim duma casa de campo e me fazer sinal para estacionar na rua. Veio-me buscar ao carro e levou-me para dentro pela mão.

- Não quero sexo. - Disse. - Não te esqueças que disseste que fazias tudo o que eu quisesse.

Assenti que sim com a cabeça. Na verdade nem me importava. Para mim estar ali significava pelo menos salvar aquela noite de um vazio total. Deitámo-nos e falámos de tudo, que às vezes é mais fácil falar com um desconhecido do que com um amigo sobre as coisas que nos ocupam o espírito. Por fim adormecemos, talvez ao mesmo tempo.
O som dum cão a ladrar chegou antes da luz do Sol, mas só com ela é que acordei definitivamente. Tapei Sandra que parecia ter dormido com o vento, pelo menos pela forma dos lençóis do seu lado da cama, e saí para lavar a cara e urinar. Dei de frente com a Márcia a sair do quarto, que pelos vistos chegara já bastante alcoolizada a casa e dormira mal por causa da correspondente dor de cabeça.

- Eu convido-te para vires cá e tu acabas na cama com a minha irmã? - Perguntou pondo a mão na testa como se a sua recente descoberta lhe tivesse agravado a enxaqueca.
- É bem feita! - Gritou a irmã lá de dentro.

Eu, que nem sabia que elas eram irmãs, tinha servido para uma vingança qualquer. Talvez por isso, e por ter simpatizado com Sandra, não revelei que debaixo daqueles lençóis só se tinham trocado palavras.
Vim embora. Nunca mais as vi.

16 comentários:

Salsa disse...

devias ter voltado a conversar com a Sandra, averiguado o sentido da vingança, embora também ela possa ter estado na mesma situação que tu naquele restaurante a jantar e ter-se criado a empatia necessária para que se aproximassem para trocar umas palavras.

Ivar C disse...

salsa, isto é ficção.:)

Vitor Bustamante disse...

Difícil eu comentar aqui, mas esse texto me agradou muito! Belo conto!

Ivar C disse...

vitor bustamante, obrigado. :)

Jessica disse...

É uma boa ficção :)

mosKa disse...

Curioso! Deveras curioso. Este texto embora ficção transporta-me para uns bons pares de anos atrás e deixa de ser ficção. Dois pequenos pormenores apenas: não eram irmãs mas sim mãe e filha e os lençois mexeram-se mais.

... dessa vez a mãe ganhou...

Ivar C disse...

jessica red, obrigado. :)

moska morta, ena... ganhaste. :)

EJSantos disse...

É ficção?
Caramba, já passei por uma história semelhente, há muito tempo atrás. Até foi no milénio passado...

Mas algo estranho, esta coincidência. R

ecentemente recordei-me desse episódio, e venho aqui dar com uma história de ficção parecida.

Ivar C disse...

ejsantos, pelos visto é normal... :)

H. Santos disse...

se é ficção podias tentar melhorar a vida ao protagonista, coitado do rapaz, foi cheio de dores lombares pra casa xD

Sairaf disse...

Bem que história!!!
Seja ficção ou real quantas Sandras e Márcias não existem por ai.
Abraço
Com carinho
Sairaf

Ivar C disse...

mr Z, a ficção não supõe mentira, supõe a construção duma realidade. esse é o meu problema. :)

sairafa, exacto. :)

Loup Garpu disse...

Eu sei que é uma ficção, mas já me aconteceram situações similares.

Fatyly disse...

Mas a ficção existe? ou existe mas sempre com uma base/suporte/pontinha de verdade, vivida ou porque se ouviu?

Adorei!

Pelos comentários já viste que não é tão invulgar e eu há uns anos soube da boca de uma colega, que ainda vinha com dores de cabeça da vivência de uma história quase idêntica,
não eram irmãos, mas pai e filho e venceu o filho.

Nesses casos o melhor é de facto "nunca mais os(as)ver".

Ivar C disse...

loup garou, :)

fatyly, é isso mesmo. a ficção não é uma mentira. :)

memyselfandi disse...

Ele há histórias tstststs!