8.31.2016

respostas a perguntas inexistentes (374)

Tempestade

No meio do nada há um edifício. É onde trabalho. Tem um ar futurista por fora e ainda mais por dentro. Um jardim interior e portas que se abrem com cartões de identificação. Sempre que o vejo, ainda ao longe, lembro-me das noites que passei sozinho numa das suas salas de vidro, no último andar, no meio duma tempestade de Verão. Souberam-me bem, essas noites. Eu estava em paz e o céu estava zangado, o que me dava uma ainda maior sensação de conforto.
Lá dentro encontra-se o mundo. Pessoas de diferentes partes do planeta que falam línguas também diferentes. Algumas sorriem-me, outras não. São como eu. Às vezes sorrio, outras não. E no meio dessas tempestades lembrava-me duma mulher que nunca sorri.
É uma pequena criminosa e eu apanhei-a em flagrante delito numa manhã qualquer. Uma fila generosa de pessoas dessas que vêm de diferentes parte do globo esperavam vez na entrada principal do meu andar. Cada uma delas passava o seu cartão de identificação, que respondia com um pequeno e agudo sinal sonoro, bip, para depois dar um pequeno empurrão à porta. Sem ninguém perceber, é um gesto bonito, esse empurrão. Permite que a porta não se feche totalmente e evita que o próximo faça o esforço todo para a abrir de novo. Ela não o fez. Sem sorrir, aproveitou o empurrão anterior para passar e a porta fechou-se atrás de si com um estrondo.
Felizmente, atrás dela vinha um homem que sorri. Passou o seu cartão, bip, e a fila de formigas voltou à rotina de sempre. Eu também voltei à minha rotina de sempre, mas com aquele pequeno crime guardado na minha mala de memórias recentes.
Quando voltei a esta memória já ela estava noutra mala, naquela que guarda experiências mais antigas. Era fim de tarde e alguém pintara no céu uma imensa aguarela negra. O meu corpo chorava algumas lágrimas de suor por causa do calor intenso e eu dirigira-me a um bar perto do edifício para beber qualquer coisa. Antes de entrar, pela vidraça fumada reparei nela. Ia a sair exactamente naquele momento e eu abri a porta e dei-lhe passagem. Ela olhou para mim durante três ou quatro segundos e agradeceu-me em italiano. Não sorriu.
Nessa noite trabalhei no meio da tempestade.

Sem comentários: