O caminho de caracóis
Da estação de metro de Sofiska Sveta Gora até ao edifício onde trabalho há uma ferida de cimento que rasga alguns terrenos onde as plantas crescem de forma caótica e aleatória. À medida que o metro vai passando e vomitando trabalhadores sem rosto, vêem-se pessoas a percorrer essa ferida em fila indiana, como se fossem manadas isoladas de elefantes.
Às vezes eu sou um desses elefantes. Olho sempre para o chão, para não pisar nenhum dos caracóis que procuram escapar à humidade matinal. Nem todos têm o mesmo cuidado e é normal ouvir a casca de um ou outro a rachar. São cerca de doze minutos em que converso com todas as pessoas de quem tenho saudades, num silêncio interior que só me pertence a mim e a elas.
Quando tiramos um bilhete só de ida para outro país, não é apenas pelo espaço que viajamos, mas também e principalmente por nós mesmos. Conheço-me hoje melhor do que me conhecia há dois meses atrás. Sei como reajo à solidão e à saudade, sei como enfrento a hostilidade pontual de um desconhecido e como me aqueço na bondade de um sorriso alheio. Sei como choro sem chorar e como rio sem rir e sei, sobretudo, quem são aqueles que formam o pedaço de mim que ficou em Portugal.
De alguma forma, o corpo é tão importante quanto a energia, e é por isso que uma conversa ao telefone ou no messenger não apaga a saudade. Ajuda, mas não apaga. O corpo, aqui, é o dos outros. A voz, os gestos e os cheiros são sempre dos outros, porque a Bulgária ainda é um país em que as pessoas são outras. As outras.
Quando eu era criança, num tempo em que me era inimaginável vir um dia viver para a Bulgária, brincava à carica com as outras crianças da rua num piso de cimento parecido com este, num pátio traseiro de um prédio solitário em Aveiro. Uma vez o João pôs-se a esmagar caracóis enquanto cantava qualquer coisa. Eu bati-lhe. Depois ele bateu-me a mim. Nunca mais o vi, mas ainda assim sei que ele não pertence a esse grupo de outros de que falo aqui. É dos meus, e é a primeira vez que tenho este sentimento absurdo de pertença a um país.
Também o terei com a Bulgária, mais tarde ou mais cedo. Soube-o quando recebi um telefonema de um desconhecido a oferecer-me um quarto quando me encontrava economicamente mais frágil, soube-o no primeiro abraço de uma mulher num dos parques centrais da cidade e no sorriso da funcionária do Ministério do Interior que me ajudou a preencher os papéis da imigração.
Quando estamos sozinhos cada gesto de bondade é uma pepita de ouro que encontramos e, por pequeno que seja, nunca mas nos esquecemos dele.
Penso nisto de manhã, enquanto me desvio de mais um caracol ao qual desejo sorte com os passos dos elefantes que vêm atrás de mim. Somos todos tão pequenos e é tão fácil sermos pisados que, às tantas, devíamos perceber que é isso que nos une a todos.
Obs: só tenho net no telefone e por isso não tenho escrito neste blogue. Se dei erros, peço desculpa. Não me é fácil teclar. Vou tentar ser mais assíduo.
17 comentários:
Que bom saber novas tuas. E bem hajas pelas lições.
Ivar, para já não dei conta de erros no texto. :)
Fiquei sensibilizada com o relato.
E esta frase ficou bem gravada: "Quando estamos sozinhos cada gesto de bondade é uma pepita de ouro que encontramos e, por pequeno que seja, nunca nos esquecemos dele."
Força!
Força campeão e continua em frente.
Um enorme abraço
sao rosas, obrigado. beijinho. :)
Isabel pires, beijinho. :)
fatyyly, beijinho ;)
Somos todos tão pequenos e é tão fácil sermos pisados que, às tantas, devíamos perceber que é isso que nos une a todos.
Um forte abracinho!
Maria
Que delicadeza e sensibilidade em seu texto! Faço votos de que seja breve a chegada do tempo em que você se sinta em casa, rodeado de novos queridos e que a saudade possa ser apenas doce e amiga.
Que consigas muitos sorrisos genuínos por aí.
E que vivas muitas aventuras para relatares por aqui. :)
Gostei de voltar ter postagens por aqui.
Tudo a correr bem.
"Quando estamos sozinhos cada gesto de bondade é uma pepita de ouro que encontramos e, por pequeno que seja, nunca mas nos esquecemos dele." :)
Não que tenha saído do país, mas há muitos anos que vivo em cidades mais dos outros do que minhas e sei bem o sorriso inerente por trás desta frase. É o que nos aquece o coração, o que nos dá esperança nas pessoas.
Também fiz de algumas cidades minhas como acontecerá contigo e com esse país. É algo que se sente logo no início. Se vai resultar ou não. Tal como com as relações.
É mesmo um relato de quem está só e longe. As saudades e a sensibilidade apurada para tudo o que é bom e menos bom, misturados em doses nem sempre reconhecíveis. Sem dúvida um momento de crescimento interior sem igual.
Daqui votos de muita sorte, muitas experiências. Mesmo os desconhecidos (como eu) aguardam pacientemente os teus textos e visões. Estaremos sempre aqui, demores o tempo que demorares. Afinal, seremos sempre dos teus ;) Beijinho
Que bom voltar a ler-te.
Gabs
Estava com saudades de ler-te, tenho passado por aqui outras vezes e hoje felizmente tinhas voltado!
Lembro-me de ti muitas vezes, estou a torcer para que tenhas sorte e encontres muitas pessoas boas, com gestos-pepitas assim
um beijinho grande
Gábi
infelizmente não consigo responder um a um. obrigado a todos por estarem aí. :)
Continuo a vir aqui e não posso não te deixar...um sorriso.
Há um melhor conhecimento de nós próprio que, no curto prazo, se pode achar totalmente dispensável, mas que nos prepara para uma versão melhor de nós próprios. Espero sinceramente que consigas encontrar o que procuras.
Também me apetece deixar um beijo.
Fiquei muito contente por teres voltado a este cantinho. Obrigada por mais este texto maravilhoso.
Torço para que tudo te corra pelo melhor. Não deixes que os elefantes te pisem. ;)
c, obrigado... soube-me bem. :)
pequeno caso serio, obrigado. :)
ivar, ivar corajoso. tudo de bom. carla fardilha
carla fardilha, obrigado. :)
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