Nazdrave
Sou um homem de meia idade. É assim
que se diz, não é? Meia idade. Como se a vida soubesse sempre
quando vai acabar e qual o princípio, o meio e o fim. Vejo-me, sem
se me ver, no espelho da pequena farmácia da casa de banho. O que
quero é o pormenor e não a face. Procuro na minha pele os sinais de
como aqui cheguei. Os meus dedos percorrem-na como se lessem braile e
na sua textura pudessem descobrir algo: uma memória ou uma história.
É a minha pele, pá. Deve ter alguma coisa escrita.
Tenho um copo de uísque pousado no
lavatório, o que indica que estava a beber quando decidi vir aqui
procurar os caminhos vazios do meu passado. Não percebo nada disto,
pá. Como é que vim aqui parar? Não era suposto a vida ser um dos
muitos sonhos que tivemos em jovens? Eu nunca sonhei viver aqui,
nesta casa longe da minha infância e com uma namorada que escreve
num alfabeto que não é o meu.
Sou um homem de meia idade. Não tenho
a certeza que a luz que decidiu entrar pela janela e deitar-se no meu
corpo saiba disso. Gostava que sim. Assim podia aceitar esse gesto
como uma carícia, como uma lógica apaziguadora da Natureza. Como um
gesto. É isso, gosto de gestos. A última vez que me apaixonei foi
por um gesto. Já me lembro.
Foi num jardim da cidade de Sófia. As
árvores estavam a dançar no silêncio do vento e eu tinha-a acabado
de conhecer. Estávamos num velho banco de madeira a dividir o tempo
e uma garrafa de vinho branco barato. O mundo estava todo ali
condensado. Um casal de namorados deitado na relva num beijo que
parecia ser eterno, um bêbado adormecido num muro baixo que parecia
ter sido construído exactamente para bêbados, um yuppie numa
conversa com um telemóvel nervoso e um pedinte que ziguezagueava no
espaço pedindo moedas.
Os nossos copos eram de plástico e o
vinho já estava quente. Então ela quis brindar. Nazdrave, disse.
Depois aproximou o copo dela do meu e eu o meu do dela. As nossas
mãos pararam perto uma da outra e por fim brindaram sem saberem
muito bem porquê. Vi-a a beber com a delicadeza de um deus, como se
uma barragem enorme pudesse por opção deixar passar apenas uma gota
para hidratar-lhe os lábios. Foi esse o gesto. Nazdrave, repeti.
Depois esbocei um Sorriso.
É ela que aparece agora na porta da
casa de banho. Traz dois copos de vinho e encosta-se à parede a
ver-me a ler a minha pele. Pergunta-me o que é que estou a fazer.
Não sei, respondo.
Sou um homem de meia idade. Para além
dos cabelos brancos que se insurgem na minha cabeça contra o que
ainda permanece da minha juventude noto duas ou três rugas. Não
sei, repito. A vida não é muito mais do que um gesto. Ela
passa-me um copo para a mão. Brindamos. Nazdrave, dizemos.
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