a pele é uma estrada
E eu ali, de cerveja já quente na mão a olhar para o alcatrão, com algumas feridas que me lembravam rugas próprias da velhice. Foi a primeira vez que me veio à ideia comparar o piso duma estrada com a pele de alguém mas, de facto, ambas tinham uma coisa em comum: a idade.
E ela a perguntar-me em que é que eu estava a pensar. Nada, respondi. Só então reparei que não falávamos há pelo menos meia hora. Enquanto eu me perdia no labirinto dos meus pensamentos, ela não disse uma única palavra. Manteve-se em silêncio, ao meu lado, creio que com os olhos pousados em mim.
Em alguma coisa estavas pensar, disse. Depois sorriu sem eu ver, que ainda estava concentrado numa das feridas abertas no alcatrão, a maior de todas e de onde sangravam algumas ervas daninhas.
Os meus olhos voaram pelo espaço à procura de um caixote do lixo onde pudesse colocar a garrafa e ela adivinhou. Pegou-lhe, verteu o líquido amarelo para dentro da ferida como se a quisesse desinfectar e afastou-se.
As mulheres sabem sempre onde estão as coisas que os homens não conseguem ver. Um caixote do lixo, por exemplo, que estava ali a uns dez metros. Ouvi os passos dela, depois o som do vidro a bater no plástico e os passos de novo, a regressarem, tão certos que mais pareciam o ritmo de um piano. Ainda estás a olhar para o chão, concluiu assim que voltou. E estava, agora era a espuma da cerveja que me lembrava uma onda de mar.
Não lhe quis dizer que eu sabia que dali, seguindo por aquela estrada e depois por inúmeras outras, podia chegar ao meu país, à minha praia, ao meu lugar. Se ela entendesse que eu estava a propor fazer quase quatro mil quilómetros a pé, pareceria algo absurdo. Ainda assim, senti um certo conforto com esse pensamento final.
Levantei os olhos e ela ainda sorria. Dás-me a mão? Perguntei. E ela deu. Começámos a caminhar. Nunca percebi porque é que duas pessoas que se estão a apaixonar começam a caminhar assim que dão as mãos, mas creio que é porque se pararem a tendência é abraçarem-se. E então parei e ela abraçou-me. Estava o chão, eu, ela e as nuvens. Não sei bem quanto durou esse abraço porque deixei de contar o tempo... talvez uns dez segundos ou uns quinze minutos. Só sei que foi o primeiro.
Depois a pele é uma estrada. Percorremo-la os dois, um no outro, até chegarmos a nós. Pelas nossas rugas, a alguns milhares de quilómetros de onde tínhamos começado. Emigra para mim, mandou-me. Mas eu não esqueço de onde vim.
6 comentários:
São lufadas de ar fresco estas "imagens" figurando momentos.
eli, obrigado. :)
Tão bom! <3
sophie eu, obrigado. :)
gosto do paralelismo entre a pele e a estrada. Era bem capaz de conseguir ver as veias nela, as rugas, as vicissitudes da vida nesses caminhos.
marguinha, obrigado. )
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