Ele decidiu fingir que adora o timbre da voz dela, mas não adora. Na verdade às vezes até o irrita, principalmente quando atinge um leque de frequências mais agudas que o faz lembrar uma mulher a ralhar com uma criança. Fê-lo de forma consciente, para não perder aquilo de que realmente gosta nela: o sexo. Ela decidiu fingir que gosta das piadas dele durante as refeições, mas não adora. Na verdade normalmente nem as percebe muito bem, já que são quase sempre sobre futebol, e do pouco que percebe até as acha estúpidas. Fê-lo de forma consciente, para não perder aquilo de que realmente gosta nele: o sexo.
Andam assim há anos, desde o deslumbramento da primeira noite na cama. A ela nunca lhe tinham feito um minete tão certo, e certo é o adjectivo que o qualifica realmente, pela pontaria e pela subtileza. Tanto, que a fez esquecer-se da língua de gato do seu ex-marido. A ele nunca lhe tinham feito um felatio tão profundo, e profundo é o adjectivo que o qualifica realmente, pela forma como ele se lembra dos lábios dela a beijarem-lhe os pêlos púbicos. Tanto, que o fez esquecer-se das constantes recusas da ex-namorada em fazer sexo oral. Desde então que estão juntos numa relação que depende exclusivamente do sexo. Quando este acabar, acaba também a relação. Algumas relações são assim, outras não. Ambos sabem disso.
É por ambos saberem disso que hoje aceitaram a mentira um do outro. Ele telefonou-lhe do escritório a meio da tarde, disse que tinha que trabalhar durante toda a noite e não podia ir dormir a casa. Ela fingiu acreditar e desejou-lhe boa sorte. Um “boa sorte” honesto até, já que sabia perfeitamente que ele ia sair para o engate. Depois de desligar desejou boa sorte a si mesma também.
Sair para o engate quando não se precisa de sexo é diferente de sair para o engate quando não se quer outra coisa. Ele percebeu isso na primeira tentativa, enquanto se oferecia para pagar, ao balcão de um botequim de esquina, uma bebida a uma desconhecida que se apressou a encostar-lhe as mamas na barriga e apertar-lhe o falo com os seus dedos de aranha. Ia perguntar se ele tinha alguma coisa no bolso ou se estava contente por a ver, mas ele não estava nada contente por vê-la. Infelizmente também não tinha nada no bolso. Pagou-lhe a bebida e foi-se embora fazer aquilo que pensara fazer por uma vez na vida com uma mulher: passear na marginal e falar. E fê-lo, só que falando consigo mesmo.
Sair para o engate quando não se precisa de sexo é diferente de sair para o engate quando não se quer outra coisa. Ela percebeu isso na primeira tentativa, enquanto apreciava os lábios dum homem a remexer um palito entre dentes com nódoas verdes de esparregado. Do peito saiam-lhe alguns pêlos arduamente penteados e da boca alguma palavras arduamente soletradas. Tens uns pára-choques fixes, cuspiu ele. Ela acabou por fugir aproveitando uma suposta ida à casa de banho. Queria, por uma vez, dar a mão a um homem e dividir o prazer de ver montras com ele, mas acabou por dar as suas próprias mãos uma à outra enquanto encostava a cabeça ao vidro duma loja abandonada.
Talvez por isso continuem os dois a dividir a vida. Ele fingindo que gosta da voz dela, ela fingindo que percebe as piadas dele. Sempre com muito sexo que, afinal, talvez não seja só isso.