2.14.2024

Como pode a revolução não estar num ovo estrelado?

 A Ana está a cozinhar um ovo. Pega nele com delicadeza apertando-o nas extremidades, numa com a ponta do dedo indicador e na outra com a ponta do dedo polegar. Exerce alguma pressão sobre ambas e levanta a própria mão até ao nível do seu olhar. Observa agora o ovo como se este fosse uma pequena escultura, uma obra de arte. Mas não é, os ovos são todos praticamente iguais e não são fruto de nenhuma mente criativa.

Ela sabe, no entanto, por que motivo maneja aquele ovo como se fosse uma preciosidade única. É que há alguns anos comprou uma máquina de cozer ovos automaticamente e desde então nunca mais os cozinhou de outra forma. Optou pelo facilitismo da tecnologia, que apenas lhe pede que coloque seis ovos numa placa própria, adicione 10 decilitros de água e ligue um botão. Quando a máquina apita é porque os ovos estão prontos.

Hoje, precisamente há alguns minutos atrás, decidiu que ia cozinhar um ovo de novo à maneira antiga e por isso fita-o com o mesmo interesse que um estudante de arte teria pela sua primeira pintura académica. É claro que um ovo não é uma obra de arte, repete ela para si mesma, mas o que sair daquele procedimento será com certeza.

Talvez a revolução esteja apenas num ovo estrelado. Não uma revolução que revolucione o mundo, claro, mas que a revolucione a ela. Às vezes ela até é mais difícil de mudar do que o próprio mundo, pensa agora. E, afinal de contas, não somos cada um nós um mundo?

Do outro lado do ovo, mesmo por cima de um fogão onde o tempo tatuou algumas rugas de ferrugem, Ana vê-se no reflexo do vidro de uma das portas dos armários da cozinha a sorrir. Só ela sabe que os seus sorrisos se transformam tão facilmente em riso como em choro e só ela sabe porquê. É uma vida inteira de murros no estômago, de abraços quentes, de despedidas frias, de dores silenciadas a ferro e fogo, de esperanças vãs e certezas perdidas. E repete para ela mesma, afinal de contas, não somos cada um nós um mundo?

Vem-lhe à memória a doçura da mãe, cujo amor lhe permitia optar sempre optar por um ovo estrelado com batatas fritas quando a família se reunia num jantar de peixe cozido e couve escura. E ela, criança, comia as batatas e o ovo com as mãos enquanto os adultos abriam e fechavam a boca para emitir sons que ela não percebia. Como pode a revolução não estar num ovo estrelado?

Vem-lhe à memória o convite de um patrão num emprego mal pago para jantar num restaurante perto de um motel nos subúrbios. E ele, babado, comia pedaços de carne enquanto a chantageava com sexo para que pudesse manter o emprego e único meio de subsistência. Oh Ana, eu não quero a tua virgindade, apenas a tua boca. E ela levantou-se e saiu do restaurante, não sem antes lhe atirar o ovo do seu prato à cara. Como pode a revolução não estar num ovo estrelado?

Depois passou fome, mas vem-lhe à memória a filha e o seu desmame do biberão e do leite da mama. A primeira refeição sólida foi um ovo estrelado que a cria cuspia como se fosse uma torneira de rega a jorrar água num campo de trigo. E riam-se as duas como se estivessem bêbadas de felicidade. Como pode a revolução não estar num ovo estrelado?

Vem-lhe à memória um salário que não chegava até ao fim do mês. Depois de pagar as contas fazia refeições de ovo estrelado com tomate, de ovo estrelado com batatas fritas, de ovo estrelado com pão e de ovo estrelado com ovo estrelado. Uma por dia, não mais. E no fim sentia-se tão cheia quanto uma vida cheia de aventuras. Como pode a revolução não estar num ovo estrelado?

Vem-lhe à memória a violência do marido. As promessas de que ela era especial transformaram-se com o tempo em “és uma inútil” e “não fazes nada de jeito". E um dia ele chegou a casa e bateu-lhe porque era o segundo dia seguido em que o jantar era composto por ovos estrelados, sem perceber que a partir desse dia e até um divórcio litigioso todos os jantares seriam de ovos estrelados. Como pode a revolução não estar num ovo estrelado?

A Ana vê-se no seu reflexo desfocado. Reconhece cada ruga, cada lábio trémulo, cada brilho nos olhos, cada silêncio. Parte o ovo que segurava como se a sua vida dependesse da delicadeza com que o faz. Na frigideira forma-se imediatamente um círculo laranja rodeado de uma clara branca sem forma definida. É como se fosse um planeta numa galáxia.

Cada vez que estrelamos um ovo começamos tudo de novo. Como pode a revolução não estar num ovo estrelado?

1.18.2024

O planeta voltará ao sítio em poucos minutos

De todas as sensações de vazio que se pode ter, a melhor de todas é aquela que vem depois do sexo. Se isto não não for verdade, não interessa, porque é aquilo em que ele acredita agora, neste preciso momento que se segue àquele em que o seu corpo engatilhou toda a energia dos cosmos e disparou uma bala de esperma dentro dela. O que for realmente verdade não interessa.

Ela está ali, viva com corpo de morta e a luz fria do Inverno a aquecer-lhe a pele branca embrulhada pelo silêncio. Um dos braços, o esquerdo, passa-lhe por baixo da cabeça e depois ergue-se na vertical num perfeito equilíbrio de árvore. A mão cai como se os seus dedos fossem as folhas preguiçosas de uma palmeira. É bonita. Tão bonita.

Que raio de momento para pensar na palavra Amor. Depois do sexo nunca se ama ninguém. É sempre preciso esperar que o planeta volte ao sítio, como quando se acaba de dar corda a um boneco e ele se engasga nos seus primeiros movimentos mecânicos. Enfim, é preciso que aquele delicioso silêncio termine, que os aviões voltem a riscar o céu, que o trânsito nas ruas volte a buzinar e que o relógio de parede volte a contar os segundos. 

É assim o momento depois do sexo. O mundo não mexe e não se Ama ninguém.

E agora que os ponteiros começam lentamente a contar o tempo apressado, lembra-se dela num passeio qualquer que deram há uns anos. Numa cidade qualquer, numa estação do ano qualquer, numa rua qualquer em que um Mimo fazia bolas de sabão invisíveis e uma criança de vestido e sapatos verdes saltava para as rebentar. Um homem gordo e sem cabelo lia um jornal de folhas grandes enquanto na mesma esplanada quase todos olhavam para o telemóvel, um Sem Abrigo bêbado estendia a mão invisível aos transeuntes apressados e o vento preguiçoso serpenteava algumas folhas de árvore e pedaços de lixo no chão.

E ela disse que o Amava.

Ele lembra-se desse momento de vez em quando. Talvez o tenha guardado na memória da mesma forma que se guarda uma fotografia entre as páginas de um livro que só se lê e relê de vez em quando. Estamos então no meio duma história que não nos pertence e de repente pegamos na fotografia e vem-nos à memória um momento que é só nosso.

A mão em forma de palmeira mexeu-se. O corpo morto dela respira e, portanto, voltou à vida, que as balas de esperma nunca mataram ninguém definitivamente. E então ela pergunta-lhe se ele gostava de voltar a Berlim.

Berlim, sim, era essa a cidade. Hum hum, responde ele acenando afirmativamente a cabeça sem ela ver.

A seguir vão tomar decidir quem toma banho primeiro, enquanto os aviões no céu e os automóveis na rua recuperam o movimento. O planeta voltará ao sítio em poucos minutos.

 

9.20.2023

Que noite para deixar de fumar

Aquele seria o seu último cigarro e como último cigarro de uma vida que levava quarenta e quatro anos tinha tanto de angustiante como libertador. Não era para menos. No espaço de apenas três dias a sua vida mudara radicalmente e, apesar de ela ter primeiramente interpretado as mudanças como más, no seu íntimo sabia que as vantagens apareceriam lentamente como se fossem bolhas de ar a subir num profundo e escuro oceano. 

A sua filha única, Ana, emigrara repentinamente para a Roménia, onde ia começar a trabalhar num call center qualquer; o seu marido, cujo nome não queria tornar a dizer nem para si mesma, deixara um curto bilhete de despedida na porta do frigorífico e fazia agora setenta e duas horas que não aparecia em casa. Curiosamente, a sua primeira reação ao ler o bilhete foi sorrir, mas perante a repetição do feito e a memória de que ele voltava sempre no dia seguinte depois destes bilhetes, o seu sorriso esmorecera como um dia que se faz noite. Estas setenta e duas horas eram portanto uma esperança real de que desta vez talvez ele não voltasse. 

Deixar bilhetes de despedida na porta do frigorífico era apenas mais uma decepcionante característica daquele homem. Nem para se despedir conseguia inovar, ser único, surpreendê-la. Até nas anedotas baratas os amantes deixam bilhetes na porta do frigorífico e, na verdade, talvez fosse esse o motivo. Ele nunca tinha lido um livro na vida nem sequer visto um filme mais complexo do que o Sozinho Em Casa. Agora que pensa nisso, ela já nem se lembra por que motivo se apaixonou por ele. Talvez a paixão às vezes seja só uma necessidade estúpida no coração, que depois de morrer nos vicia na carne. E na carne ele tinha sido realmente bom, num período da vida que ela já consegue identificar.

Apagou a angústia do cigarro no tablier do próprio carro, um Dacia Sandero branco comprado em segunda mão dois anos antes e que era agora o seu melhor amigo, e inspirou as réstias do seu fumo libertador. Precisava de se intoxicar de liberdade, pensou. Naquela rua de Lisboa a prostituição de homens era  a lei e ela queria voltar a sentir esse vício da carne, tudo o que apenas um fugaz e descomprometido ato de sexo consegue. Ligou o motor do automóvel e avançou cerca de trinta metros para perto de um grupo de homens que se exibia debaixo da tímida luz de um candeeiro público. Depois abriu o vidro da janela lateral do lugar do morto e três deles aproximaram-se.

- Olá querida - disse um.

Era curioso que se chamasse lugar do morto àquele onde por norma se senta quem se prostitui, mas esse pensamento também se desfez em fumo imediatamente. Um dos homens era demasiado baixo e estava nitidamente em bicos de pé enquanto os outros dois se curvavam para dentro do veículo. Tinha sido ele a dizer o "olá querida" mas a sua atenção caiu sobre os outros por esse motivo. Um tinha barba e outro não, o que desampatou a contenda de imediato.

- Se essa barba arranhar, entra, por favor.

O homem que se sentou ao lado dela devia ter cerca de um metro e oitenta, cheirava demasiado a um perfume barato qualquer mas pelo menos parecia ter os dentes todos e o seu olhar era bonito. Não tinha a barriga sobressaída, o que era bom sinal, e os seu braços já estavam cruzados como se se preparasse para uma longa viagem. Não tinha cara de estúpido, mesmo que naquele momento ela não soubesse sequer descrever como seria essa cara, o que era suficiente. 

Foi nesse momento que ela percebeu que não sabia o que fazer. Devia ir para um motel, para casa ou poderiam ter sexo mesmo no carro num qualquer canto escuro da cidade? Não quis perguntar para não ficar em desvantagem naquele estranho negócio a dois, por isso optou pela estratégia de parecer decidida e, talvez também porque existia uma pequena hipótese do seu ainda marido ter voltado, disse:

-Vamos para minha casa, está desarrumada e espero que gostes de sexo no sofá! - No fim da frase os lábios tremeram-lhe um pouco.

- Eu não tenho que gostar, querida. Afinal de contas estou a ser pago.

Em apenas cinco minutos, aquele homem já lhe tinha chamado "querida" duas vezes. Era definitivamente estranho, o negócio de prostituição. O Dacia arrancou como se tivesse dúvidas que o queria fazer e desapareceu devagar na primeira curva. Pelo espelho retrovisor ainda viu os outros dois homens a olhar na sua direção. 


Um silêncio amargo ia com eles no automóvel, por isso ela ligou o som do rádio que, mesmo sem sintonia perfeita, fazia o favor de justificar a falta de palavras entre ambos.
 

Ela tinha razão, ele não era estúpido. Estava ali a trabalhar e fizera questão de o sublinhar na primeira oportunidade, o que punha toda a estética do sexo que se aproximava à sua responsabilidade. Ela ia decidir o que ele ia fazer, depois pagava-lhe, provavelmente com um extra para que ele pudesse regressar de táxi. 


A casa estava realmente bastante desarrumada, tão desarrumada pelo menos quanto a vida dela. Ele tirou os sapatos, que alinhou perfeitamente na entrada, e os seus olhos procuraram de imediato o sofá num irrequieto voo por todas as portas abertas do pequeno T2. Sentou-se decidido e contou os livros espalhados pelo chão e pela pequena mesa da sala, que eram doze; os cinzeiros cheios de beatas, que eram três; as garrafas de vinho e cerveja vazias, que eram cinco. Quando acabou de contar ela já estava com as mãos no sexo dele.

- Não é difícil! - disse ela decidida - só me penetras quando eu estiver húmida e não quero beijos. Podes fazer isso?

- Posso!

Os corpos despiram-se um ao outro, primeiro com a vista e depois com as mãos. Quando estavam nus começaram por se estranhar e familiarizaram-se depois lentamente, primeiro com as mãos, depois também com a vista. Tornaram-se só um até que ela o imobilizou com a voz para poder controlar sozinha o final.

-Já está! - disse.

Gemeu alguns segundos.

Ele não estava, mas isso pouco interessava. Vestiu-se rapidamente e em dificuldade até o falo amolecer. Deu-lhe um cartão com os dados bancários para que ela pudesse fazer uma transferência bancária de imediato.

- Quanto é?

- Um mínimo de cem. A partir daí é o que quiser.

Ela transferiu cento e vinte e levou-o até à porta. Deu-lhe mais uma nota de vinte para o táxi e trancou-se mal ele saiu. Não lhe disse Adeus nem obrigado. Ele também não disse nada. Desta vez nem lhe chamou "querida".

Dentro de casa ficaram ela e o silêncio, um silêncio tão volumoso como o interior de um ovo. Aquele rápido e intenso momento de sexo permitia-lhe agora pela primeira vez olhar para esse caos da sua casa e percebê-lo, estabelecer uma analogia entre tudo o que é material e a sua solidão. Os cigarros, os livros e o álcool, mas também os pequenos objectos decorativos nas estantes da sala, os ímanes de viagens distantes no frigorífico e algumas pinturas na parede das quais já se tinha esquecido que estavam ali,

Aproximou-se da janela. Lá fora a cidade continuava um formigueiro ignorando-a totalmente, ao sangue quente que lhe corria nas artérias e aos pensamentos enublados que lhe corriam na mente. Na verdade, toda aquela quietude só servia para ela entender isso mesmo, que tinha passado a vida a correr atrás de coisa nenhuma.

 O Amor, que tinha sido tudo, encolhera-se lentamente como um figo seco até ser nada e permanecera naquele apartamento a fingir ser vida. 

Sorriu. Que noite para deixar de fumar, pensou.

4.02.2023

Esparguete com Ovos

Ela sentou-se ao meu lado enquanto eu jantava. Não trouxe um segundo prato para a mesa nem talheres, o que significava que não queria jantar. Apenas sentar-se ao meu lado. Abri as hostilidades que o sorriso dela anunciava e perguntei-lhe se estava bem. Que sim, respondeu.
Por uns segundos, entre duas garfadas, percebi que é uma sorte termos alguém que se senta ao nosso lado só para estar ali e o meu pensamento voou indelevelmente por alguns passados de solidão. Depois pousou novamente no meu prato.

- Quando te conheci nunca imaginei que fosses um homem tão simples.

A frase dela ficou a pairar alguns segundos ao som duma música que passava baixinho na rádio e cujo nome eu não sei. Depois desfez-se no ar e eu voltei a viajar no tempo para o dia em que a conheci. Estávamos num jardim na cidade de Sófia em Abril de 2016 e ela dizia-me que na Bulgária é costume deixar sempre algumas moedas de gorjeta, mesmo quando se bebe apenas uma cerveja. Pela dança dos seus cabelos, parecia-me óbvio que era o vento a segredar-lhe o que me devia dizer. E eu a explicar-lhe que em Portugal nunca deixava gorjeta quando bebia uma cerveja fosse onde fosse.

- Estás a comer esparguete com ovos escalfados e apenas sal. Isso é duma enorme simplicidade até no gosto. Acho giro. 

Eu sei que quando cozinho só para mim faço um bife com batatas fritas ou massa com ovos. Ela é diferente. Os seus pratos, mesmo solitários, parecem pequenas e complexas obras de arte.
Explico-lhe agora, com o mesmo tom apaixonado de 2016, que como assim desde criança e pretendo continuar a fazê-lo, o que não me impede de cozinhar mais elaboradamente  noutras alturas.
E é assim que concluo que o tempo voou e estamos juntos há sete anos. 

1.31.2023

A Dança das Folhas

Lembro-me de algumas folhas secas outonais que dançavam na rua deserta ao som de um vento harmonioso. Primeiro pensei que fossem alguns pardais a lutar por algumas migalhas de pão esquecidas no alcatrão, mas depois percebi que não.

O táxi tinha-me deixado ali com duas malas grandes e um saco de desporto igualmente generoso no tamanho, a dona do hostel onde eu alugara um quarto barato à pressa no terminal dois do aeroporto de Sófia ainda não tinha chegado para me abrir a porta e portanto restava-me esperar. Os meus olhos saltavam entre essa tola dança das folhas de árvore e toda a minha bagagem como uma bola de ténis batida lentamente por dois jogadores que nunca falham, quando se concentravam nas malas mergulhavam também na minha própria vida, que começava ali do zero outra vez.

Tinha quarenta e quatro anos e uma sucessão de empregos mal pagos, recorrentemente com salários em atraso, que mesmo assim todos somados não chegavam ao montante das minhas dívidas. A sensação era a de que o país onde eu vivera a maior parte desses anos me abandonara e como qualquer homem abandonado decidira afastar-me. Sem amuos. Apenas afastar-me.

Até àquele momento a minha vida na Bulgária resumia-se a uma conversa com o taxista sobre os jogadores búlgaros que tinham passado por Portugal e a esse primeiro momento de paz. Paz porque estava longe, só isso. Eu ainda não fazia ideia de que a minha próxima companheira de vida seria búlgara e que a ia conhecer num jardim não muito longe dali cerca de três meses depois.

O ano era 2016 e não estávamos no Outono mas sim no fim de Março. Foi também nesse ano de recomeço que me fui desligando deste blogue que começara dez anos antes, após o meu primeiro divórcio. Desde então muita coisa mudou e hoje vivo no Reino Unido, numa pequena cidade chamada Newcastle Under Lyme. A S. veio comigo, ou melhor, veio ter comigo meio ano depois da minha partida da Bulgária para este país e ainda cá está. Quer dizer, ainda cá estamos. 

Vou com cinquenta e um anos de idade e apetece-me escrever de novo sobre os dias que passam. Vou fazê-lo aqui,  recomeçando sem apagar o passado, alternando o meu olhar entre o que me rodeia e eu mesmo. Talvez as folhas ainda dancem  de um lado as minhas malas cheias de nada ainda estejam por abrir. Vocês são bem vindos. Se quiserem, claro.

5.17.2020

O Síndrome do Peixinho Vermelho

Estou com o síndrome do Peixinho Vermelho, disse ela. Estávamos numa floresta dum país que não era o nosso, até porque eu sou português e ela de lugar nenhum. Só me lembro que as árvores eram muitas e cada uma se tinha vestido duma cor diferente, como se estivessem num baile de finalistas.

E eu perguntei-lhe que raio de síndrome é esse. Não perguntei porque realmente estivesse interessado em saber, mas sim porque tinha acabado de me apaixonar por ela. Sempre que me apaixono por alguém e não tenho coragem de o dizer, faço perguntas. Sabia que se ela fosse respondendo, pelo menos ficava perto de mim.

A alguns metros de nós seguia um lobo que de vez em quando se aproximava apenas para pedir uma festa no focinho. Era esse o pagamento para ele nos guardar. De vez em quando rosnava para afugentar os sinais de vida que se moviam por ali como se fossem um vento esguio. Eu não os via, mas sentia-os a abanar as folhas e os ramos coloridos.

E então ela explicou-me o síndrome. É ouvir a mesma música muitas vezes seguidas com auscultadores como se a nossa vida dependesse disso e reparar que as pessoas falam umas com as outras como se fossem eternas.

Eu sorri. As árvores dançaram num assobio e o lobo rosnou. Não sei muito bem explicar porquê, mas foi a primeira vez que fiquei realmente feliz por ele estar ali. Aproximou-se e fiz-lhe uma festa.

E eu perguntei-lhe como é que as pessoas que pensam que são eternas falam. Não que eu quisesse realmente saber, claro. Falam das coisas que não interessam nada para sermos felizes mas sim e apenas para uma entidade abstrata qualquer chamada Economia, disse. São como aqueles peixinhos vermelhos que andam sempre em círculos num aquário redondo.

O lobo rosnou. As árvores fizeram silêncio. Eu também.

E ela olhou para mim e disse-me para continuar a fazer perguntas. Enquanto eu as fizesse, ela responderia e ficaria perto de mim. Precisava saltar fora do aquário.

Pode não parecer, mas esta é uma história de Amor.

2.19.2020

pensamentos catatónicos (351)

Estou no comboio entre Manchester e Londres. Entrei apenas em Stoke-On-Trent e vou sair em Wolverhampton, onde tenciono apanhar uma ligação secundária para Cosford. É lá que existe um museu da Royal Air Force e uma base aérea militar importante que pretendo visitar.

Levo no pensamento que esta viagem de comboio pode ser um pouco como a vida. Entramos ignorando o passado e saímos desconhecendo o futuro. São assim o nascimento e a morte. É assim a vida e tento reconfortar-me precisamente com a ideia de que quando sair vou para outro lugar.

Em Stafford a vida faz uma paragem. As portas abrem-se e ajudo uma mulher a carregar duas malas pesadas para dentro do comboio. É a única passageira que entra, pelo menos pela porta onde eu estava encostado e perdido nos meus pensamentos. Dou-me então conta de que sou o único que decidiu não se sentar e seguir a viagem em pé. Ela agradece-me com um sorriso forçado. É bonita e é Inverno. Tem a pele feita de neve e o olhar azul e frio esculpido em gelo.

Enquanto eu coloco as malas, uma a uma, nas prateleiras que os comboios da Cross Country têm para o efeito, ela vira-se para a porta aberta. Lá fora três pessoas acenam um adeus em gestos lentos. São duas mulheres mais velhas e um rapaz que não deve ser ainda maior de idade. Bye, vão dizendo como se fossem um coro desafinado.

Conheço aquele adeus. Vi-o na minha mãe quando emigrei. É um adeus tortuoso, uma tristeza grande escondida por um sorriso maior. Depois o comboio apita e a porta fecha-se. É a vida que continua apesar de nós, apesar do que sentimos e do que queremos. Apetece-me abraçar a menina Inverno mas não o faço. Ela torna a agradecer-me e vai-se sentar. Thank you, diz.

Pudesse eu ser Primavera por um momento e abraçava-a. Ter a pele quente e os olhos dum campo florido qualquer. Mas não tenho. Adivinho que ela amanhã vai estar tão longe quanto eu estou agora e desejo-lhe sorte. Se é que isso existe.

2.17.2020

Nazdrave

Sou um homem de meia idade. É assim que se diz, não é? Meia idade. Como se a vida soubesse sempre quando vai acabar e qual o princípio, o meio e o fim. Vejo-me, sem se me ver, no espelho da pequena farmácia da casa de banho. O que quero é o pormenor e não a face. Procuro na minha pele os sinais de como aqui cheguei. Os meus dedos percorrem-na como se lessem braile e na sua textura pudessem descobrir algo: uma memória ou uma história. É a minha pele, pá. Deve ter alguma coisa escrita.
Tenho um copo de uísque pousado no lavatório, o que indica que estava a beber quando decidi vir aqui procurar os caminhos vazios do meu passado. Não percebo nada disto, pá. Como é que vim aqui parar? Não era suposto a vida ser um dos muitos sonhos que tivemos em jovens? Eu nunca sonhei viver aqui, nesta casa longe da minha infância e com uma namorada que escreve num alfabeto que não é o meu.
Sou um homem de meia idade. Não tenho a certeza que a luz que decidiu entrar pela janela e deitar-se no meu corpo saiba disso. Gostava que sim. Assim podia aceitar esse gesto como uma carícia, como uma lógica apaziguadora da Natureza. Como um gesto. É isso, gosto de gestos. A última vez que me apaixonei foi por um gesto. Já me lembro.
Foi num jardim da cidade de Sófia. As árvores estavam a dançar no silêncio do vento e eu tinha-a acabado de conhecer. Estávamos num velho banco de madeira a dividir o tempo e uma garrafa de vinho branco barato. O mundo estava todo ali condensado. Um casal de namorados deitado na relva num beijo que parecia ser eterno, um bêbado adormecido num muro baixo que parecia ter sido construído exactamente para bêbados, um yuppie numa conversa com um telemóvel nervoso e um pedinte que ziguezagueava no espaço pedindo moedas.
Os nossos copos eram de plástico e o vinho já estava quente. Então ela quis brindar. Nazdrave, disse. Depois aproximou o copo dela do meu e eu o meu do dela. As nossas mãos pararam perto uma da outra e por fim brindaram sem saberem muito bem porquê. Vi-a a beber com a delicadeza de um deus, como se uma barragem enorme pudesse por opção deixar passar apenas uma gota para hidratar-lhe os lábios. Foi esse o gesto. Nazdrave, repeti. Depois esbocei um Sorriso.
É ela que aparece agora na porta da casa de banho. Traz dois copos de vinho e encosta-se à parede a ver-me a ler a minha pele. Pergunta-me o que é que estou a fazer. Não sei, respondo.
Sou um homem de meia idade. Para além dos cabelos brancos que se insurgem na minha cabeça contra o que ainda permanece da minha juventude noto duas ou três rugas. Não sei, repito. A vida não é muito mais do que um gesto. Ela passa-me um copo para a mão. Brindamos. Nazdrave, dizemos.