e se a vida for só isto?
Primeiro ele. Sabes onde é que está a minha camisa às riscas azuis? Pergunta e ela sabe. Está passada e num cabide do armário do quarto, responde. Depois os filhos. Um que quer o pequeno-almoço e outro que salta em cima do sofá da sala. E ela também sabe. Sabe que quantidade de leite deve aquecer para misturar com os cereais de forma a que o miúdo não diga "não gosto", sabe que não vale a pena gritar "não saltes no sofá", sabe que o lanche da escola é um pão sem sal com queijo para cada um. Mais um pacote de leite branco, repete para dentro.
Ele, o da camisa às riscas azuis, já saiu entretanto, perdido nessa repetição interior como se de um labirinto infinito se tratasse. Ela sabe-o porque as chaves do carro já não estão no cinzeiro da mesa da entrada nem o casaco, que ela pendura cuidadosamente todos os dias no cabide ao pé da porta, está lá. Ela sabe tudo. Na verdade, agora que pensa nisso, só não sabe porque é que um dia se apaixonou por ele e depois casou. Esqueceu-se.
Ele, o da camisa às riscas azuis, lembra-se agora que não se despediu dela. Agora que entrou no escritório em cuja janela o Sol insiste em nascer todas as manhãs e, da mesma forma mecânica que o Sol nasce, cumprimentou os colegas de trabalho cabisbaixos. Responderam todos um "bom dia" imperceptível, apenas para colmatar a obrigação do cumprimento. Ele, agora que pensa nisso, talvez seja o que anda a fazer da vida há muito tempo: colmatar a obrigação de respirar. Encosta a testa quente ao vidro frio da janela enquanto os colegas continuam cabisbaixos.
Ela suspira de alívio, interrompendo temporariamente a normal asfixia matinal. Ele já saiu e os miúdos também e ela, que sabe sempre o que eles precisam, percebe agora no embalo desse alívio que não sabe nada sobre ela própria. Nem sequer sabe porque é que não se lembra da última vez em que sorriu com vontade. Ela, que sabe sempre tudo, talvez não saiba viver. E se a vida for só isto? Pergunta-se. Depois assusta-se. E procura numa agenda amarelada um número de telefone que lhe saiba responder. Talvez uma amiga antiga, talvez um namorado antigo, talvez qualquer coisa antiga.
La fora parece que tudo e todos se aperceberam que sim, que a vida é só isto, e ele, enquanto desaperta involuntariamente o botão de cima da camisa com riscas azuis, contempla essa desistência da janela do escritório: um semáforo que muda de cor repetidamente, um cão que morde um saco de lixo, um homem que se fuma no banco triste dum jardim daninho e depois ela. Ela passeia-se rareando uma cor viva no cinzentismo da cidade. E vai com um homem... e vai sorrindo... e deixa-a ir. Se a vida for só isto é preciso vivê-la.