1.20.2009

respostas a perguntas inexistentes (48)

ou o amor em quatro actos

1] Talvez uma cerveja e um abraço. Talvez um abraço e uma cerveja. Nem sequer sabem bem. Sabem que a ordem das coisas não interessa. O dia até pode seguir-se à noite e não a noite ao dia. Não interessa.
Do abraço passa-se a um beijo. O amor passa a ser aproveitar o facto de estarem vivos. Aliás, o amor é só isso, mas esse é um só tão grande que não lhe percebem a ordem. Sempre a merda da ordem, e passam a detestar essa palavra.

2] Talvez um filme qualquer. Um filme qualquer porque sabem que não o vão ver. Os filmes sempre foram uma boa desculpa para duas pessoas se sentarem uma ao lado da outra, apagarem a luz, e depois foderem. Devagar, até à ficha técnica.
Talvez pousem a cerveja no chão e se fiquem pelo abraço. Depois, talvez a cabeça dela pouse no ombro dele. Talvez a mão dele lhe percorra desordenadamente o queixo, os cabelos, as pernas, a barriga, a face e por fim a vagina. Talvez ela gema, talvez não. Talvez ela sorria e ele goste. Talvez sim.

3] Talvez as cervejas tenham caído com um pontapé excitado e agora rolem no chão flutuante. Talvez eles rolem também, um no outro, ou talvez flutuem. E se a cerveja vertida se infiltra nas fendas do chão, ele infiltra-se nela. Ela nele. Talvez se venham. Talvez as cataratas do Niágara não vertam tanto e talvez não morram tanto. Não há vida e morte nas cataratas. Naquela sala dum apartamento emprestado, sim, há. Ou houve, porque talvez tenham morrido.

4] Talvez não, não estejam mortos. Os corpos reagem a um lençol de brandura que os tapa de frio. De calor e de frio, aliás. A ordem não interessa. Talvez a mão dela ainda abrace um pénis cansado e a mão dele um seio usado. Talvez respirem e abram os olhos devagar. Talvez a ficha técnica passe na televisão e ninguém saiba o fim do filme. Talvez não faça mal. O amor é só isso: aproveitar o facto de estar vivo. Talvez os dois o saibam. E isso é saber tanto.

12 comentários:

Anónimo disse...

Gostei muito.
Continua.

Ivar C disse...

Miss G, obrigado. :)

SRRAJ disse...

O amor é uma dádiva e há que aproveitar o presente.
(Adorei este teu post.)

CCF disse...

É dos mais bonitos que escreveste. E também é sobre mulheres.
~CC~

sem-se-ver disse...

é um dos teus melhores, de sempre.

Anónimo disse...

Talvez não haja mesmo ordem, nem ficha técnica, nem cerveja, e eles estejam mortos-vivos, mas que aproveitem: amem-se e nem se questionem :)

Anónimo disse...

Isso de facto é saber tanto!!!!!

Anabela

Ivar C disse...

srraj, aproveitar o presente é a chave, sim. :)

cf, é sobre mulheres, sim. :)

sem-se-ver, :)

closet, :)

anabela, é saber praticamente tudo o que interessa. :)

Hope disse...

Provavelmente o melhor texto que lí neste blog, e olha que quando o descobri passei algumas horas a lê-lo. :)
Parabéns.

Mas continuo a achar que o amor é um bocadinho mais do que aproveitar o facto de estar vivo. Se calhar o estar vivo é que é aproveitar o facto de existir amor. Ou se calhar a ordem não interessa.

Ivar C disse...

hope, obrigado pela simpatia. ou se calhar a ordem não interessa... exactamente. :)

Anónimo disse...

É saber que se está vivo! É sentir o coração a fugir pela boca, sentir o calor percorrer cada célula do corpo, sentir o corpo do outro em nós, sentir a angústia do prazer... É sentir que estamos vivos!
Gostei muito!

Ivar C disse...

sónia, obrigado. :)