1.29.2016

respostas a perguntas inexistentes (362)

Pára com isso!

Tenho um dedo torto. Quase ninguém sabe porque não se nota. É preciso mexer-me nas mãos para perceber esta pequena deficiência no meu mindinho esquerdo. Às vezes quando estou sozinho, mesmo sabendo que isso é impossível, tento endireitá-lo com a mão direita, forçando-o a esticar-se. Ele estala, mas nunca me dói. Depois paro.
Acabei de o fazer agora mesmo, sentado na areia húmida desta praia que as ondas do mar estão a beijar como se beija repetidamente a face duma mulher que se Ama. São beijos pequenos e repetidos. Lembro-me da Ana, que às vezes me segurava as mãos, mas mandava-me sempre parar quando me via a esticar o dedo.

 - Pára com isso! - Dizia.

Depois dava uma estalada no ar, como se estivesse a enxotar moscas das minhas mãos. Eu parava. Enquanto caminhávamos os meus lábios iam dar à pele das bochechas dela em pequenas e inofensivas ondas de mar, até ela me informar que já estava cansada.

- Pára com isso! - Dizia.

Repetia o gesto da estalada no ar, mas enxotando as moscas da minha cara.
A Ana não sabe, mas às vezes parece-me que vou ouvir o "pára com isso" dela. Aconteceu-me neste exacto momento em que tentei esticar o meu dedo torto. Não ouvi, claro. Ela não está comigo.
Aquilo que ela me ensinou, no entanto, ainda está comigo. É a passagem do tempo e de como algumas coisas nos ficam para sempre. Outras não.

1.28.2016

coisas que fascinam (202)

Se uma mulher nos diz que gostava de fugir connosco para um sítio qualquer, está a fazer-nos uma declaração de Amor. Não por causa da intenção de fugir, mas sim por causa do sítio qualquer. As mulheres têm uma enorme vontade de fugir do sítio onde estão, mas nunca fogem. Os homens preferem ficar, mas às vezes fogem. Só que não é para um sítio qualquer.
Ela descasca uma laranja e diz-me que aquela parte branca, entre a casca e os gomos, é a melhor. Faz bem a tudo, insiste. Eu acabei de abrir uma cerveja e, tendo a garrafa na mão direita, brinco com a carica na mão esquerda. Não sei muito bem a que é a cerveja me faz bem. A não ser, talvez, à alma. Na verdade nunca penso no benefícios dos alimentos que ingiro. Limito-me a ingeri-los e pronto.

- Repete lá isso que disseste. - peço.
- A parte branca da laranja é a melhor...
- Não, não. Antes disso.
- Fugia contigo para um sítio qualquer...
- E que sítio qualquer é esse?

Ela abana os ombros. Por um momento tenho o desejo absurdo de que a minha cerveja nunca mais acabe nem a parte branca da laranja dela. Podíamos ficar aqui os dois, na varanda da casa dela, a olhar para a estrada em silêncio como se esperássemos alguma coisa. Mesmo sem esperar nada, digo.
A primeira linha que um homem e uma mulher podem atravessar juntos não é a do sexo. É a das palavras. Quando aquilo que dizem um ao outro não é óbvio nem claro, mas sim um pântano do qual ambos teimam não  abandonar.
A laranja acabou. A cerveja também. Ela é a primeira a levantar-se do sítio qualquer onde nos refugiámos durante alguns minutos. Tem os longos cabelos negros amarrados atrás das costas e põe as cascas no caixote do lixo com a mesma delicadeza de quem guarda um objecto precioso. 

- Queres outra cerveja?
- Não, obrigado... - respondo.
- Eu também não quero outra laranja.

É  estranho apaixonarmo-nos por uma mulher durante apenas uns minutos, mas é mais estranho percebermos que uma paixão pode durar apenas isso mesmo. O tempo de falarmos um com o outro apenas para sacudirmos a solidão do tempo. Desse tempo nesse lugar qualquer.

1.27.2016

Um pente, um secador e um frasco quase vazio de champô

1 | As mulheres não deviam beijar na face um homem com quem já fizeram Amor

Só há duas ocasiões em que falo com ela. Quando estou com ela e quando estou sozinho. Na verdade, como quando estamos juntos deixo-a falar a maior parte do tempo e limito-me a ouvi-la, é mais quando estou só que lhe dirijo a palavra. É por isso que termino sempre as nossas conversas a concluir que ando louco. Falo sozinho e ela não me ouve. Claro.
Quando penso que estou louco, levanto o olhar e lanço-o para longe como se fosse uma rede. Quero apanhar pessoas. Se estiver na rua, pesco transeuntes; se estiver num bar, pesco bêbados e grupos de amigos; se estiver no estádio, pesco adeptos. Se estiver em casa, não pesco nada que não seja a minha solidão. E então o meu olhar cai na garrafa de uísque que um amigo me ofereceu num jantar. Bebo e continuo a conversar com ela.
Apanhar pessoas com o meu olhar faz-me sentir melhor. Pelo menos, menos louco (passe a redundância do menos). A minha loucura dilui-se na diferença que há entre cada um de nós, na individualidade de cada olhar e forma de andar, e torna-me apenas mais um. É óptimo. Sinto-me um falhado na mesma, mas democratiza o falhanço que é a vida.
A Sandra é a culpada da minha solidão. Não por me ter deixado, mas por ter gostado de mim antes disso e por me ter permitido Amá-la. Ao contrário das outras coisas essenciais à vida, como a comida a água e o sexo, o Amor só nos faz falta quando já o tivemos antes. É por isso que o Amor é a pior das boas notícias que podemos ter. Quando nos bate à porta nunca vem por bem.
Passei uma grande parte do tempo que já passou por mim a ver filmes pornográficos. Não voluntariamente, mas por ser essa a minha profissão. Era projeccionista num cinema improvisado numa garagem da cidade que vivia da solidão sexual alheia. Várias vezes me perguntei se teria clientes num mundo perfeito, onde toda a gente tivesse alguém para Amar, mas nunca me consegui responder.
Os meus clientes eram quase sempre pessoas sós, mas às vezes apareciam grupos de jovens estudantes que vinham mais numa lógica de diversão do que de solidão. Passavam a sessão toda a rir e a contar piadas, estragando a intimidade que qualquer solitário precisa de ter com uma película pornográfica. As únicas mulheres que apareciam vinham incluídas nesse tipo de grupos. De resto, novos ou velhos, eram sempre homens.
Foi por isso que reparei facilmente na Sandra. Era mulher e estava sozinha. Sentou-se na última fila, bem perto de toda a maquinaria que eu montara durante vários anos para poder exercer a minha actividade com regularidade, pensei eu que para se sentir protegida dos olhares dos homens solitários que iam fazendo sons orgásmicos durante o filme. Aos cinquenta minutos já todos se tinham ido embora, depois de terem colocado um guardanapo sujo no cesto de papéis na entrada. Menos ela. Virou-se para trás e disse-me que, se eu quisesse, podia parar o filme e acender a luz.
Era jornalista e queria fazer uma reportagem sobre mim, mas acima de tudo era bonita. Aceitei. Com medo, mas aceitei.
Em duas ou três perguntas, a Sandra já sabia mais de mim e da minha vida do que qualquer um dos meus amigos habituais. Na verdade já sabia tudo. Que eu era um homem de meia idade deprimido, solitário e sem qualquer tipo de ambição que não fosse viver em paz e sossego. Fizemos sexo logo ali, nas cadeiras de veludo gasto do meu cinema improvisado, debaixo da luz dum filme pornográfico que eu me tinha esquecido de parar. Viemo-nos ao mesmo tempo que os actores e depois começou a ficha técnica.
Ela disse "que bom!".
A segunda vez foi uma hora e duas cervejas depois, no meu apartamento minúsculo num subúrbio da cidade. Não disse "que bom!", mas disse que até parecia que eu nunca tinha tido sexo com uma mulher antes dela. Sorri-lhe. Ainda bem que ela nem desconfiou que eu ainda era virgem aos quarenta anos.
A maior parte das mulheres não sabe, ou finge não saber, que os homens são o sexo frágil. Eu acho que é mais fingimento, porque assim aproveitam-se do facto de termos que parecer fortes. Fazemos tudo por isso, desde transportar sacos de compras pesados enquanto encolhemos a barriga até escondermos as lágrimas quando elas nos deixam. E eu, homem que frágil me confesso, chorei assim que a senti sair para sempre.
Quando uma mulher se despede de um homem pela última vez torna-se o pretérito mais que perfeito, um passado anterior ao nosso próprio passado. Foi assim quando ela se despediu de mim, porque o nosso Amor já tinha morrido, mas o meu Amor por ela não.
Que mau!
Mais que perfeita, lembro-me dela com o vento. Os cabelos negros e longos a dançarem no meu peito nu e os seios firmes a voarem num céu à distância dos meus braços. Depois mandava-me estar quieto e algemava-me as mãos com um beijo para se poder concentrar no cata-vento vertical. Às vezes sorria, outras vezes não. Às vezes vinha-se, outras vezes não.
Depois foi-se embora. Para sempre, disse ela abanando um saco de plástico com o logótipo de um supermercado que ia enchendo com as coisas dela. Não muitas. Um pente, um secador e um frasco quase vazio de champô. Passámos os dois cerca de meia hora à procura do resto das coisas dela, mas por muito que nos custasse acreditar não havia resto. Só isso, em dois duma relação intensa. Um pente, um secador e um frasco quase vazio de champô. E eu a querer que aquela meia hora durasse toda a minha vida.
Não durou. Deu-me dois beijos na face e bateu a porta com determinação.
As mulheres não deviam beijar na face um homem com quem já fizeram Amor. É o que eu lhe estou a dizer agora, mesmo que ela não me ouça. Beijos assim são como balas no coração. Um homem vai sangrando devagar até morrer de Amor, se tiver azar, ou de uma bebedeira fatal se tiver sorte. Os beijos na face duma mulher que já nos Amou são o crime capital.
Peço mais um uísque. Lá fora, alguém verteu no céu uma imensa aguarela negra. Lanço a minha rede e pesco um casal apaixonado numa das mesas do canto do bar. Reparo nas mãos dadas, nos copos vazios e nas vidas cheias. Falam um com ou outro apenas com os olhos e acreditam que vai ser sempre assim. Ao meu lado, no balcão de madeira marcado pelo tempo, um homem fala com uma mulher que também não está presente. É a Sandra dele, provavelmente, e canta-lhe uma música desafinada com uma letra que não entendo. Para além da mulher que agora me traz a bebida, não há mais ninguém aqui. Dou um gole suave e sorrio. Sinto-me mais só do que se estivesse apenas sozinho.

2 | Um homem não devia ficar indiferente aos beijos duma mulher que já Amou

Estou há mais de meia hora na casa de banho, sentada na sanita com o portátil nas mãos a jogar um jogo estúpido do Facebook. Já plantei vários tipos de legumes e alimentei animais duma quinta virtual da qual me tornei escrava e agora penso no tempo que gastei a fazê-lo. O que é que cabe em meia hora?
Foi o tempo, por exemplo, que gastei à procura das minhas coisas na casa dele. Ele, com aquela sua presença absurda, a espreitar para baixo da cama e para os livros do armário da sala. Eu, desesperada, a abrir todas as gavetas e compartimentos da casa. Aquela meia hora demorou muito mais tempo do que esta em que não fiz mais nada do que alimentar vaquinhas, ovelhas e cavalos. Tudo para trazer um pente, um secador e um frasco quase vazio de champô. Mais valia ter deixado lá tudo, só para não ter que o ver a chorar sem chorar.
Os homens são estranhos. Só se sentem sós quando ficam fisicamente sozinhos. As mulheres sentem-se sós quando simplesmente não são ouvidas, mesmo que estejam acompanhadas todos os dias. É uma das coisas que eles não entendem. Disse-lhe tantas vezes para parar de organizar a sua colecção de filmes pornográficos por ordem alfabética e ano de produção e para me ouvir. Mas ele não ligava. Limitava-se a sorrir e a acreditar que eu lhe achava piada.
O Mário era o culpado da minha solidão. Não por não me ouvir, mas sim por ter começado por fazê-lo. Ao contrário das outras coisas essenciais à vida, como a comida, a água e o ar, o Amor só nos faz falta quando alguém que nos dá atenção deixa de o fazer.
Depois de um dia de silêncio era a rotina do sexo. Comecei a prender-lhe as mãos à cama no dia em que deixei de gostar do seu toque no meu corpo. Ainda bem que ele pensava que era um jogo erótico. Meu Deus! Tanto filme pornográfico e tão pouca sabedoria. Às vezes fingia que me vinha, outras vezes não.
Cheguei a pensar que estava louca por me deixar andar naquele Amor, como um peixe quase morto que se deixa ir na corrente do rio. Saía à rua só para, por um momento que fosse, sentir que o mundo era maior do que a minha vida miserável. Procurava qualquer sinal positivo no olhar dos transeuntes e às vezes encontrava um sorriso anónimo que me salvava o dia. Sabia-me bem, mas depois voltava ao mesmo.
Depois aconteceu aquele sorriso diferente de todos os outros, de um homem que parou e me convidou para um café. Primeiro escondi a cara por vergonha, mas depois aceitei por desespero. Acabei a fazer Amor nos bancos de trás do carro dele, num parque de estacionamento de um supermercado onde acabei por comprar apenas um saco de plástico para poder trazer tudo o que era meu. Um pente, um secador e um frasco quase vazio de champô.
Dei-lhe dois beijos e ele nem se mexeu. Tinha a pele fria e o olhar mais ausente do mundo. Um homem não devia ficar indiferente aos beijos duma mulher que já Amou. É como se ela não valesse nada, afinal. Como se a sua importância se resumisse à condição de companheira sexual.
Que mau! 
Fecho o computador e levanto-me. Aposto que tenho a marca da sanita no rabo. Ele dizia-me sempre isso quando eu passava muito tempo na casa de banho. Lá fora, o fim da tarde adquiriu vários tons de um cinzento triste. Se bem o conheço, perdeu-se por aí num bar qualquer e está a tentar embebedar-se duma saudade que não tem. É a terapia dele, sentir-se triste e só. Por falar nisso, sinto-me menos só do que quando estava com ele.

1.26.2016

conversa 2182

Eu - Temos que jantar os dois um dias destes...
Ela - Se dizes um dia destes, nunca mais é. Ou dizes um dia concreto, ou nem vale a pena estares com essas coisas...
Eu - Sexta-feira, então...
Ela - Sexta não posso. Já combinei...
Eu - Sábado...
Ela - Sábado também não estou cá. Deixa-me ver a minha disponibilidade e um dia destes telefono-te.

visita

A Li veio visitar-me. Sentou-se ao meu lado direito na mesa quadrada do café. Depois trocou de lugar para ficar à minha frente. Não o disse, mas eu sei que ela teve medo que ambos ficássemos hipnotizados pelo televisor que estava a olhar para nós. Sei-o porque me lembro do nosso último encontro, talvez há oito anos atrás, onde isso aconteceu e ela detestou. Fez questão de o dizer, pelo menos.
Parece-me mais bonita agora do que nessa altura, embora tenha perdido alguma jovialidade. O tempo desenhou-lhe frágeis rugas no olhar e nos lábios, talvez apenas para a lembrar de que vai passando, todos os dias de manhã quando ela se vê ao espelho. Além disso, ganhou doçura no olhar e o seu sorriso tornou-se sincero. 

- Estás tão bonita!

E ela atira os olhos para o chão. Nesse aspecto não mudou nada, nem sequer na forma inclinada que dá ao pescoço quando quer esconder a face. Os cabelos longos parecem ganhar vida própria quando lhe pousam nos ombros e depois deslizam suavemente para a frente ou para trás.

- Foi nesta mesa que estivemos a última vez? - Pergunta.
- Não. Na altura este café estava diferente e as mesas eram outras...
- Ah! bem me queria parecer...

Na verdade não foi apenas o café que mudou desde esse dia. Fomos nós. Ela emigrou, apaixonou-se por um australiano, casou e teve filhos lá. Nunca mais veio a Portugal. Eu não emigrei, mas também me apaixonei por cá. As nossas vidas pareciam duas linhas que se separavam lentamente uma da outra com o tempo que passa, mas que de repente se desviaram e cruzaram novamente neste momento. 
Vi a fotografia dela numa aplicação para conhecer pessoas e ela viu a minha. Trocámos duas ou três palavras e ela conduziu duzentos quilómetros para vir tomar café comigo. Entretanto, a empregada do café pousa duas cervejas e uma empalhada na mesa. Esqueço-me de tudo o que entretanto se passou e lembro-me apenas de uma simples semana da minha vida, aquela em que vivemos um Amor que parecia ser para sempre.

- Lembras-te de como acabaram as férias em que nos apaixonámos? - Pergunto.
- Claro. Connosco aqui a olhar para a televisão...

1.21.2016

se não morrer até lá

Se não morrer até lá, lá mais para o fim do ano este blogue faz dez anos. Terei quarenta e cinco nessa altura e, neste preciso momento, não faço a mínima ideia do lugar onde vou estar, com quem vou estar e a fazer o quê. Sei que cerca de vinte e dois por cento da minha vida foi a escrever regularmente nestas páginas brancas.

Isto é bom e é mau ao mesmo tempo. Quer dizer que a vida profissional me tem corrido um bocado mal nos últimos anos e que, no seguimento, a minha vida emocional também. Abri uma empresa de produção de filmes, formação em audiovisual e venda de equipamento que ainda está no princípio. É a minha área de formação e espero que até lá a coisa entre nos eixos e eu comece a fazer dinheiro suficiente para viver sem grandes preocupações. Não tem ajudado muito o facto de eu ter tornado a ficar sozinho, o que me surpreendeu e me deixou um bocado abalado. Tudo bem. Como sempre, as coisas recompor-se-ão.

Nem tudo é mau. Neste momento estou a escrever este texto com umas meias grossas calçadas que a minha filha me deu e acabei de receber uma mensagem a desejar-me um bom dia, com um sorriso à frente como aqueles que faço quase sempre nos comentários. Alguns amigos e a família têm sido um bom apoio nesta fase menos boa. Acho que no fim é sempre o que se mantém.

Lembro-me de quando comecei a escrever aqui. Andava triste por causa do fim da mais longa relação Amorosa que tive até hoje e usei a escrita como terapia. Fez-me bem. Foi através deste blogue que conheci, entretanto, algumas das pessoas que me são próximas, outras que já foram e já não são e também a minha mais recente companheira.

Tudo o que eu escrevo aqui é verdade, apesar de ser quase tudo mentira. A escrever tem que ser assim mesmo. Mente-se para dizer a verdade. Sei que quando leio textos antigos me lembro de como me sentia nessa altura ou momento e, por aí, nunca me minto.

Estou a dizer isto tudo por um motivo muito simples. No próximo dia quatro de Setembro voltarei aqui, a este texto, para me lembrar do que estou a sentir hoje. Se não morrer até lá, espero estar bem melhor.

1.20.2016

conversa 2181

Ela - Acho que nunca tive tanta vontade de ter uma vida sexual intensa como a partir do momento em que fiz quarenta e oito anos.
Eu - A sério?! E quando eras mais nova?
Ela - Quando era mais nova cheguei a estar dois anos em jejum, por minha opção.
Eu - Que estranho. E quando é que fizeste quarenta e oito anos?
Ela - Ontem.

1.19.2016

Porque é que os homens têm sempre que foder?


A luz da casa dela é diferente da luz exterior. É como se a manhã tivesse passeado pela cidade e entrado pela janela da sala para se esconder nos móveis e nas paredes. Sinto-me estranho. Vê-la em camisa de dormir a fazer torradas e sumo de laranja para o pequeno-almoço é duma intimidade maior do que aquela que temos. Por causa das torradas e do sumo, não pela camisa de dormir. Ainda assim ela age como se nem pensasse nisso.

- Tira o casaco! - ordena. Talvez não pense mesmo.

Põe uma torrada no prato e dá-mo. Não me apetece comê-la, apesar da fome. Sei que assim que a trincar vou cortar o silêncio que se veio esconder com a luz. Começo por dar um gole no sumo e espero que seja ela trinque primeiro a sua.

- Onde é que ias com tanta pressa? - Pergunta.
- Para casa, acho.

Foi uma noite mais ou menos difícil, passada num sofá que não é cama. Quase não dormi e, assim que amanheceu, vesti o casaco para sair. Ela apanhou-me já com a mão na porta e pediu-me para tomarmos o pequeno-almoço juntos. Depois leu o bilhete que eu deixara em cima da mesa.

Obrigado pelo abrigo e pelo vinho. Beijo.

Não está nada preocupada em disfarçar o ruído que faz quando trinca a torrada. As migalhas chovem-lhe na camisa de dormir, mas ela não liga. Está a olhar para mim e para um pequeno bibelot translúcido que me parece ser um golfinho de vidro. Também o olho e reparo que ele reflecte a nossa imagem, ou seja, mesmo quando ela desvia os olhos de mim continua a ver-me.

- Nunca dormes com uma mulher na noite em que a conheces?
- Às vezes sim, outras vezes não.
- E quando é que é sim e quando é que é não?

Sorrio com a pergunta e como a torrada toda de uma só vez. É o meu momento de libertação. A questão dela não tem a ver com ter passado a noite sozinha, mas sim em saber se eu a considero suficientemente boa para mim. Ou não, claro.

- Sim é quando me apetece, não é quando não me apetece. Mas isso tem só a ver comigo e não contigo. Quando não gosto duma mulher nem sequer subo cinco andares a pé para entrar na casa dela.

Ela levanta-se, junta os pratos e os copos e desaparece em passo apressado. Os tornozelos dela estalam. Ouço-a pousar a louça na banca da cozinha e acender um cigarro. Depois, enquanto expele uma quantidade controlada de fumo, aproxima-se e diz-me para ir embora.

- Vai-te embora, então...

Visto o casaco propositadamente devagar, para não parecer que quero fugir. Há na voz dela uma agressividade qualquer que me incomoda. Lá fora, nas escadas do prédio, ouço algum movimento do que me parece ser uma família numerosa, talvez com um carrinho de bebé e muita pressa de sair. Tenho saudades de ter uma vida normal, penso.
Tenho a mão novamente na maçaneta da porta, mas ainda não a abri. Dou alguns passos atrás e fito a silhueta dela em contraluz na janela da cozinha. Talvez já vá no segundo cigarro. Não sei.

- Explica-me uma coisa! - peço.
- Diz...
- Porque é que os homens têm sempre que foder?

Ela não responde. Saio.

1.18.2016

conversa 2180

Ela - Eu, normalmente, prefiro sexo com a luz apagada. É um dos problemas que tenho com o meu marido...
Eu - E se for durante o dia?
Ela - Fecho a persiana.
Eu - Não percebo. Não queres que ele veja exactamente o quê?
Ela - Não o quero é ver a ele.

coisas que fascinam (201)

Depois de qualquer Amor, há coisas belas que se tornam insuportáveis. Pode ser uma música, um filme ou até um cheiro. Tudo aquilo que se experimentou durante esse Amor deixa de servir com o seu fim. Não sobrevive.
Peço-lhe que mude a música que escolheu no Spotify e ela não entende porquê. 

- Não gostas? - pergunta.
- Adoro! Mas tira, por favor.
- Queres ouvir alguma coisa especial?
- Não.

Estou com uma chávena de chá a fumegar nas mãos. Ela viu-me da janela do seu quarto andar a estacionar o carro e ferveu água enquanto eu subia no velho elevador. Assim que entrei, mandou-me sentar e passou-ma para as mãos.

- Bebe.

Sei que lhe agradeci o gesto, mas acho que o fiz tão baixinho que tenho dúvidas que ela tenha ouvido o meu "obrigado". Para não correr o risco de o dizer duas vezes, elogio-a.

- Nunca bebi um chá tão bom como este.
- Podes estar calado. A sério...

A Eva tem um olhar e uma face indecifráveis. Neles, parece que todo o mundo se perdeu. Quando está triste é igual a quando está feliz, quando está calma é igual a quando está ansiosa. Sem palavras entre nós, somos apenas dois planetas distantes. Uma vez disse-lhe isso e ela não mudou de expressão. Ainda assim abraçou-me.

- Quando quiseres estar calado perto de mim, telefona-me cinco minutos antes só para saberes se eu estou em casa.

É isso que eu estou aqui a fazer. Nada. E de repente percebo que era o que eu estava  precisar...

1.15.2016

respostas a perguntas inexistentes (361)

Deus

E eu a pensar que o Amor era uma necessidade. Uma necessidade que encontramos na solidão dos dias e que nos faz procurar alguém.
Quando ela se aproximou de mim e me perguntou se se podia sentar ao meu lado, eu ia na segunda cerveja. Tinha o livro que ando a ler fechado numa das cadeiras vazias e procurava as minhas próprias palavras para explicar o momento. É isso que a literatura nos faz, explicar-nos cada um dos momentos da nossa vida. O pensamento também.

- É um desenho?
- Mais ou menos...

Cada vez que eu pousava o copo de cerveja, a sua transpiração desenhava um círculo na madeira escura da mesa. Aquele segundo copo já me tinha permitido fazer o símbolo dos Jogos Olímpicos. Cinco círculos entrelaçados a que ela chamou desenho...
Deu-me um jornal para a mão e eu percebi ao que vinha. Era duma religião tão desinteressante para um ateu como eu como um pente para um careca. Ainda assim, queria saber o que é que ela tinha visto em mim para pensar que eu podia querer fazer parte duma seita chamada Igreja Universal do Reino de Deus.

- Também andei assim sozinha, muito tempo, pelos cafés...
- Eu adoro andar sozinho pelos cafés. Se puder fazer isto o resto da minha vida, faço.

Dei mais um gole na cerveja, com a sensação que ela acompanhou com o olhar todo o trajecto do copo, da mesa aos meus lábios e dos meus lábios à mesa. Pousei-o inadvertidamente no meio do símbolo dos Jogos Olímpicos e rodei-o de forma a destruí-lo.

- Eu também pensava isso mas depois, mesmo sem acreditar, encontrei Deus.
- E onde é que estava Deus quando o encontrou?
- Ele está em todo o lado, mas nós às vezes não o sentimos.
- Se ele está aqui, queira convidá-lo a sentar-se à nossa mesa, por favor. Eu pago-lhe um copo.

Pensei que ela ia desistir, mas não. Pôs-me a mão no ombro e explicou-me o que é uma corrente, ou seja, uma assembleia em que várias pessoas se juntam para poderem sentir Deus. E eu a pensar que o Amor era uma necessidade. Uma necessidade que encontramos na solidão dos dias e que nos faz procurar alguém. Foi o que pensei, pelo menos. Várias pessoas reúnem-se numa sala qualquer e não se vêem umas às outras. Preferem ver uma coisa que não existe quando, na verdade, o que elas precisam está mesmo ali ao lado: mais pessoas.
Apesar de tudo, era o que me estava a acontecer. Tinha uma pessoa ao meu lado para falar durante algum tempo, mesmo não acreditando minimamente no que ela me estava a vender. Depois de a informar de que não havia a mínima hipótese de me convencer, pedimos duas cervejas e gastámos o resto da tarde a conversar. Com palavras, claro. Não as do livro que ainda estava pousado, não as do meu pensamento solitário, mas as nossas...

1.13.2016

coisas que fascinam (200)

Trânsito de Vénus

Em contraluz, as pessoas que passeiam na praia são apenas sombras. Como tal, perdem a identidade. Cada uma delas podia ser outra. Deixa de me interessar quem são, a mim que me estendi sobre a areia invernosa e as vejo num trânsito constante à frente do Sol. Passa-me a interessar apenas a sua silhueta. Já fiz o mesmo com Vénus, ficar sentado a vê-lo passar lentamente à frente do Sol, sem motivo aparente.
Acompanho as sombras de um homem e de uma mulher de mãos dadas. Ele pára por um momento e baixa-se para apertar os atacadores dos sapatos enquanto ela, dois metros à frente, espera por ele e admira o Pôr do Sol. Depois ele levanta-se e continuam a caminhada, novamente de mãos dadas.
Por um momento apercebo-me que o Amor é apenas isso: ter alguém cuja mão nos espera quando paramos por um momento e, nessa espera, nunca se desespera. Aproveita-se a vida de uma forma qualquer. A olhar para um Pôr do Sol pela enésima vez, por exemplo, igualzinho ao que já vimos em postais foleiros para turistas e ao que se repete há tanto tempo quanto o trânsito de Vénus.
Quando um homem se apaixona de forma incondicional perde a noção desse tempo. Passa a acreditar que tudo parou e que vai ser sempre assim. Cada vez que se baixar para atar os atacadores terá uma mão à espera, numa cena. Até ao dia em que percebe que afinal nada parou e, sem ele dar conta, tudo se transformou.
A Lei da Amor é um pouco como a Lei da Conservação da Massa. Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. A mulher que lhe estendia a mão perdeu a brandura no olhar e a doçura na voz, mas essas características não desapareceram. Andam por aí, entre as silhuetas que passam.

1.12.2016

pensamentos catatónicos (343)

Fechar a porta

As mulheres não sabem gostar dos homens. Acho que é por isso que passam a vida a explicar porque é que gostam deles. Quando calha gostarem, claro. Quando se explica muito é porque não se gosta assim tanto. Por isso procura-se uma justificação.
Os homens são mais palermas. Quando calha gostarem de uma mulher gostam e pronto. Nem sequer precisam saber porquê. É o chamado Amor porque sim.
Nunca fui capaz de explicar o meu Amor a uma mulher, mas sempre ouvi explicações da parte dos Amores que tive a sorte de ter e, apesar de elas me assustarem, sorri e calei-me. Calo-me sempre, tendo consciência que um dia, mais tarde ou mais cedo, a explicação dá lugar a coisa nenhuma.
Talvez por isso os homens não saibam fechar a porta a um Amor vivido. Fechar a porta precisa duma explicação qualquer e só as mulheres é que a sabem dar.

1.11.2016

Para adopção

Confio-te a minha solidão. Guarda-a bem em tua casa e dá-lhe de comer todos os dias. Algumas festas também. Ela não é muito diferente da maior parte das solidões, mas é contigo que quer ficar quando eu vou de viagem. És só tu que a fazes sentir quem realmente ela é...
Entretanto eu vou sair um bocado. Andar por aí e tentar conhecer alguém que a queira adoptar. Pode ser que num café ou numa cerveja isso aconteça. Se não acontecer, assim que eu voltar levo-a comigo para casa.
Sabes... hoje em dia as solidões andam muito abandonadas. É uma tristeza, vê-las por aí a abanar a cauda em busca de um dono. Ainda ontem alguém me disse que dantes não era nada disto. Havia mais respeito pela solidão de cada um.
Ela come duas a três vezes por dia e não precisa de trela. Normalmente nem dás por ela, aliás. É uma solidão de trato fácil. Adormece num canto da casa e só acorda se te sentir passar.
Obrigado.

1.08.2016

E é assim que parto...

Há lugares em Portugal de que não me esqueço. Ou porque neles já fui feliz, ou porque fui imensamente triste. Dos lugares em que fui assim-assim quase nunca me lembro. Depois desses lugares de Portugal estão os lugares do mundo, que são menos porque sempre visitei mais Portugal do que o mundo.
Esses lugares não servem para nada, a não ser para me lembrar deles durante conversas com amigos ou para regressar a eles quando preciso de voltar a ser feliz ou triste. Na fase que atravesso, jamais regressaria a um lugar onde me senti assim assim, porque de coisas mornas está o mundo cheio e eu, por acaso, também. Além disso, não quero visitar lugares onde fui feliz na minha última história de Amor, porque é apenas a essa história que esses lugares pertencem.
Vou visitar um lugar fora de Portugal onde já fui imensamente feliz e imensamente triste ao mesmo tempo. Na verdade, acho que é o único lugar que neste momento compreende aquilo por que estou a passar e, por uma questão de sobrevivência emocional, preciso dele durante uns dias. Estou a falar de uma cidade onde vivi várias histórias de Amor, todas elas mais curtas do que um simples fim de semana.
As cidades são tão inconclusivas como o Amor. É nelas que nos perdemos até um dia as conhecermos tão bem que nos cansamos. Além disso, voltar a uma cidade dez anos depois da última vez quer dizer que também é possível voltar a um Amor que já terminou.
E é assim que parto...

1.06.2016

As avós sabem tanto como as árvores

As árvores calavam-se quando eu passava por elas. Estavam nuas naquela altura do ano, mas não me pareceu que sentissem frio. Na verdade, acho que cochichavam sobre mim como velhas no café que falam sempre dos netos. Agradeço-lhes por isso, por terem sido minhas avós nesse dia.
Sabiam que eu voltava de um adeus para sempre, na janela duma casa antiga que ficava longe. Tinha andado mais de duas horas a pé para a ver despedir-se de mim em silêncio, acenando com a mão e com uma face inexpressiva, mais o ladrar de um pastor alemão que também não me queria lá.

- Coitado. Sempre foi assim, o rapaz. Por Amor, faz tudo... - segredou uma avó.
- Isso passa-lhe! Ele já sabia que ela não o queria... - respondeu outra.
- Mesmo assim foi lá, vê-la uma última vez... - concluiu a primeira.

A minha avó, a verdadeira, nunca me perguntava nada. Sentava-me na pequena mesa da sala e dava-me uma colher de sobremesa e um pudim amarelo que eu comia em apenas duas dentadas. Depois dizia-me que tudo havia de correr melhor. Foi com ela e com as árvores que aprendi que as avós sabem sempre o que se passa com os netos, mesmo que eles não lhes contem nada.
As avós sabem tanto como as árvores.
É por isso que sempre que passo por uma lembro-me da minha avó a segredar-me a minha própria vida enquanto engolia a sua num silêncio sofredor. Aconteceu-me ainda agora. Escondi a cabeça no capucho do meu casaco, para a cidade não perceber quem eu era, e parei junto à berma da estrada para calcular o melhor percurso para atingir a outra margem sem pisar as poças de água.

- Vai tudo correr melhor!

Um automóvel travou para me deixar passar. Dei quatro ou cinco passos em corrida e acenei-lhe com a mão para agradecer. Um pastor alemão que costuma andar por ali esperou por mim e pela festa habitual que lhe costumo fazer. 
Vim para casa devagar. As árvores calavam-se quando eu passava por elas. Estão nuas nesta altura do ano, mas não me parece que tenham frio. 

1.05.2016

respostas a perguntas inexistentes (360)

Moamba de Galinha

Não dei pelo tempo a passar. Reparo nisso enquanto olho para o prazo de validade dos pacotes de comida desidratada e latas de conserva que guardo no armário. Na maior parte dos casos já passou. Há, inclusive, uma lata de molho para Moamba de Galinha cujo prazo já terminou há mais de dois anos. Lembro-me perfeitamente de a ter comprado.

- Para que é que queres isso? - Perguntou-me ela.
- Vou experimentar... - Respondi.

E ela sorriu. Depois deu-me a mão e saímos da loja com a ansiedade de um abraço que só se concretizou lá fora, entre a indiferença dos transeuntes que se desviavam do nosso pequeno acto de Amor. Entretanto passaram pelo menos três anos e eu não sei onde é que eles estão. Sei que ela já não me dá a mão nem me abraça e que, ao pôr esta lata no saco do lixo, tenho a sensação que fiz o mesmo com o tempo.
Na é verdade, mas o Amor dá-me sempre esta sensação injusta de que não o aproveitei o suficiente. Neles, no tempo e no Amor, apenas o presente é importante. Tudo o resto, o passado e o futuro, se reduz à magnífica insignificância do Universo. É sempre o presente que nos torna grandes ou pequenos, felizes ou tristes.
É por isso que no curto caminho entre o meu apartamento e o contentor do lixo, que inclui três lanços de escadas e cinquenta metros de alcatrão, consigo revisitar o passado como se ele fosse dentro do saco que transporto na mão direita. Percebo no presente que o probabilismo é o Amor e o Amor é o probabilismo.
Se há uns anos eu soubesse que ia acabar por deixar passar o prazo de validade da lata de molho para Moamba de Galinha, aquele abraço tinha sido outra coisa qualquer. Ainda bem que o Amor nos engana.

conversa 2179

Ela - Tenho que ver se este ano me apaixono...
Eu - Eu tenho que ver se me desapaixono...
Ela - Para quê?
Eu - Para me poder apaixonar outra vez.
Ela - Ah! Nem sei se estou melhor ou pior do que tu...
Eu - Estás um passo à frente.
Ela - E atrás também...
Eu - Acho que sim...

1.03.2016

Só as mulheres é que se protegem da chuva


- Estás com um ar cansado.

A Márcia diz-me isto, assim com um misto de ternura e de aviso. Há poucos minutos ouvi a voz dela escondida na chuva. Tinha os sapatos encharcados de tanto caminhar sem me desviar das poças de água. Procurei-a entre o pequeno grupo de mulheres que esperavam, no alpendre de um edifício velho, que as nuvens se cansassem e agora estou aqui, com ela ao alto a dizer-me que estou com um ar cansado.
Na verdade, foi também o que pensei quando a vi. Há dez anos, pelo menos, que não sabia nada dela. Parece que entretanto o vento lhe provocou alguma erosão na face, da mesma forma que o faz nas montanhas de pedra que se tentam manter em pé junto ao mar. Levou-lhe os sorrisos e o brilho de que me lembro. Deixou-lhe a beleza, mas entristeceu-a.

- Estás bonita.

E ela sorri encolhendo o sorriso, como se o quisesse engolir e não fosse capaz. Estou tão molhado e desconfortável que me apetece deitar no sorriso dela. Imagino-a a tapar-me com ele e a fazer-me uma festa na testa. Já não tenho a certeza, mas acho que foi assim que ela se despediu de mim a última vez.

- Talvez um dia eu volte...

Não voltou.
Os nossos olhares já se cruzaram algumas vezes, mas ainda não se fixaram um no outro. Parecem borboletas bêbadas a voar sem lógica. Tenho dúvidas que ela se lembre do que me disse quando me deixou e não me parece que a deva lembrar. O que eu sei é que são os Amores que terminam que me cansam, que me fazem andar à chuva sem me preocupar com as poças de água e, agora que penso nisso, o grupo de mulheres que se abriga neste alpendre aumentou. No passeio mais ou menos movimentado apenas homens andam à chuva. Talvez seja isso... talvez sejam sempre as mulheres a despedirem-se dos homens e a cansá-los assim.

- Só as mulheres é que se protegem da chuva?

Sorrio. Ela também, mas desta vez conseguiu engolir o sorriso.
Qualquer Amor, por curto que seja, é uma escultura que se ergue na nossa memória para sempre. De vez em quando, ao passearmos pelos dias que já passaram, paramos para a ver e ficamos a admirá-la. Como em qualquer obra de arte, descobrimos sempre um pormenor novo. Talvez seja mesmo isso. Todas as histórias de Amor são uma obra de arte.

- Parece que tens razão. Só as mulheres é que se protegem da chuva...

O que me apetece é abraçá-la. Os dois beijos que lhe dei souberam-me a quase nada. Acho que num deles nem sequer nos tocámos. Foda-se lá para o tempo que passa, para o fim dos Amores e para as mulheres que se abrigam da chuva.
Entre os homens há uma que passa e não se abriga. Leva um grande guarda-chuva amarelo com uma marca de uísque impressa. Não lhe vejo a face, mas sigo-a até desaparecer na primeira esquina.

- Vamos beber um galão quente e comer uma torrada cheia de manteiga?

Ela responde que sim apenas com a cabeça. Acho que o Inverno serve para isto mesmo, para nos sentirmos desconfortáveis sozinhos e nos lembrarmos que precisamos de alguém. Mesmo que não chegue para voltarmos um para o outro, que chegue para leite com café e pão torrado. 

1.02.2016

respostas a perguntas inexistentes (359)

Assim que saíste

Reparo nas paredes. Só o faço quando me sinto só. Quando não me sinto, mesmo que o esteja nunca reparo nelas.
Tu entraste e disseste-me olá ainda do lado de fora da porta, demoraste alguns segundos a mais do que o normal a limpar os sapatos no tapete da entrada e esperaste por mim com o longo casaco preto vestido. Eu tinha ido à casa de banho deitar algum cotão na sanita, com a perfeita consciência de que estava a subtrair provas do meu crime masculino que é preocupar-me mais com a organização dos discos de música do que com a sujidade que se acumula pelos cantos da casa.
Por isso é que tinha as mãos molhadas, ainda com resquícios do sabonete líquido, quando te vi. Dei-te dois beijos na face enquanto as sacudia como se os meus braços fossem as asas de um pássaro que quer levantar voo.
Estavas com uma mão numa das paredes da entrada. Percebi que, assim que te fosses embora, ia sentir a solidão de não te ter quando olhasse para ela. Para a parede, digo.

- Casa comigo só hoje, mas como se fosse para sempre! - pensei, mas não te disse, antes de sorrir.
- Tens planos para jantar? - Respondeste tu ao meu pedido inexistente.

Nessa noite quis Amar-te com a energia duma preguiça. Tu olhavas para mim no escuro e o meu braço demorava uma eternidade a aterrar na tua pele deserta. Era assim, num movimento tão longo quanto iminente, que eu perdia o medo de estar entre quatro paredes brancas, tão brancas como esta da entrada, para onde acabei de olhar assim que saíste.

1.01.2016

pensamentos catatónicos (342)

Estou quieto

É dia 1 de Janeiro e eu estou quieto. Tenho a sensação que a chuva veio com a intenção de tornar as ruas desertas. Talvez o céu não tenha gostado muito do fogo de artifício da última noite, nem das pessoas que gritavam frases imperceptíveis nas ruas.
Lembro-me de ouvir em qualquer lado que vozes de burro não chegam ao céu. Não gostando do princípio sobranceiro da frase, ela serviu pelo menos para eu saber que de vez em quando o céu até nos ouve.
Foi só por isso que repeti várias vezes a palavra "Amo-te", à espera que tu a ouvisses. Se isso acontecer, por favor reage. Se não gostares, chove-me. Eu estou quieto.