9.27.2013

serpentinas

Era um dos meus passatempos de criança. Durante a época carnavalesca, eu e o meus amigos da rua onde cresci abríamos um saco de serpentinas, desenrolávamos uma a uma e passámos a tarde a deixá-las ir nas antenas dos automóveis que passavam. A técnica era fácil, mas apurada. Cada um ficava numa das margens da rua com a serpentina esticada. Quando víamos um carro ao longe, se ele trouxesse antena (dantes só alguns automóveis é que tinham rádio), tentávamos que ela engatasse na serpentina e ficávamos a vê-la ir até aos limites do nosso mundo, ou seja, até à primeira curva.
As cores das serpentinas era normalmente um pouco apagadas, como se tivessem secado ao Sol durante décadas. Além disso variavam pouco. Havia o vermelho, o amarelo, o azul, o verde e, tanto quanto me lembro, a coisa ficava por aí. Mesmo assim eram essas as serpentinas dos meus sonhos. Na minha cabeça, os carros que as levavam nunca mais paravam. Com ela acabariam por colorir todas as regiões do mundo.
Lembrei-me desta minha sensação de criança há uns dias atrás, quando, com uns colegas meus da política, ocupei um lugar de estacionamento numa das principais avenidas de Aveiro e o ajudei a transformar num espaço verde. Hoje os meus sonhos são outros, mas tenho essa sorte de ainda conseguir sonhar. Sonho, por exemplo, que todos tenham direito ao que é fundamental, como a água, a mobilidade, a educação, a saúde, o lazer, o trabalho e... enfim. a própria vida.
Por isso mesmo, por causa desses sonhos, é que não tenho vindo aqui. Durante as últimas semanas tenho estado envolvido com a campanha do Bloco de Esquerda em Aveiro e foi por isso arranjei uns minutos para vir aqui escrever agora. É que pelas ruas só tenho encontrado desânimo e tristeza, o que eu compreendo perfeitamente. Também estou estou desempregado, por exemplo. Também eu pago a segunda água mais cara do país, também eu tenho uma filha a crescer num país onde não se vê futuro.
O que eu não compreendo é a desistência. Ouço demasiados jovens a dizer que desistiram da política, que não votam, que não querem saber. Cada um dos que diz isto, cada um dos que desiste em nome de nada, está a contribuir para que quem nos rouba há anos continue a fazê-lo por muito mais tempo. E era só isso que eu queria dizer-vos hoje. Não desistam, pelos vossos sonhos!
No Domingo saiam de casa, vão até às urnas e votem. Não vos estou a dizer para votarem no Bloco. Estou a pedir-vos que votem de forma consciente, que não deixem que os outros falem por vocês. Só isso. E se tiverem tempo e paciência, deixo-vos aqui alguns vídeos do que fomos fazendo por aqui nestas duas semanas.





9.12.2013

pensamentos catatónicos (299)

Hoje de manhã estava um casal de idosos a tomar o pequeno-almoço no café. Entre o ruído mais ou caótico das chávenas, dos talheres e da máquina de café expresso, era como se uma bolha de silêncio os envolvesse. Olhei-os de lado e fiquei com a sensação que não diziam nada um ao outro porque as palavras já se tinham esgotado há muito. As palavras esgotam-se com a vida? - Perguntei-me. Restava-lhes um incógnito olhar para duas chávenas de café vazias e uma presença ausente.
Do outro lado, na mesa à minha direita, um homem começou a levantar a voz à companheira. Não num tom violento, mas numa tentativa óbvia de a anular. Percebi que a conversa vinha já da noite anterior e se baseava toda na futilidade dela como companheira de vida dele. O Amor deve ser útil? - Perguntei-me. Restava-lhes um ar desconsolado para duas chávenas de café nervosas e tristes.

- Nunca dizes nada de jeito! - repetia ele.

Ela nada dizia.
O Amor é antidemocrático, eu sei. Pior ainda, é um golpe de Estado e uma usurpação do nosso trono. O poder do povo termina no momento exacto em que se apaixona. Compreendo bem a coisa. A sério que sim. O que não aceito é esta mania de viver em casamentos cansados e violentos. As revoluções nunca fizeram mal a ninguém. Muito menos ao Amor.
O casal de idosos levantou-se e saiu. Fiquei a vê-los pelo canto do olho. Deram as mãos e desapareceram lentamente na primeira curva, levando com eles o seu silêncio único. Ao meu lado direito a discussão agravou-se. Ela decidiu responder. Talvez as palavras não se esgotem sempre, mas era bom que às vezes o fizessem. Pelo menos foi o que pensei.

9.10.2013

conversa 2035

Ela - É tão bom quando um palerma tenta engatar uma mulher à noite.
Eu - Bom?! Porquê?!
Ela - Não há maior prazer nesta vida do que dar falsas esperanças a um homem durante uma noite inteira e, no fim, dizer-lhe simplesmente adeus com a mão e ir embora.

9.06.2013

respostas a perguntas inexistentes (260)

acordar

Uma vez disse à Marta que gostava de não ter que dormir. Claro que o disse com a suposição de que, mesmo não dormindo, o meu corpo não se ressentiria minimamente. Não dormia, mas também não andava cansado e, acima de tudo, não perderia tempo de vida por isso. A Marta deu um gole no copo de vinho branco e respondeu-me de forma lacónica.

- Eu gosto de dormir! - disse.

Depois expliquei-lhe que o que eu estava a dizer, de facto, é que estava a gostar imenso de estar ali com ela, a meio da noite, apenas com a Lua e o silêncio da cidade a acompanhar a nossa conversa. Eram quase quatro da manhã e nas ruas até os candeeiros públicos pareciam querer adormecer. Era como se a sua luz tivesse enfraquecido de propósito para não atrapalhar o ambiente. A generosa varanda do apartamento da Marta era, para mim, uma espécie de refúgio. Quando ali estava, era como se o mundo desconhecesse a minhas coordenadas e, talvez por isso, a Lua cheia parecesse mais curiosa e concentrada em mim.
Nunca cheguei a perceber muito bem o que a Marta significava naquela altura. Sei que tinha que fazer exactamente trinta e dois quilómetros para estar com ela na varanda e, mesmo assim, fazia-os regularmente. Talvez não estivesse, de facto, apaixonado por ela. Mas tenho a certeza que queria estar.Essa é, talvez, umas das mais desconfortáveis condições emocionais por que um homem pode passar.
A Marta tinha também uma estranha qualidade. Quase sempre, nos nossos silêncios, adivinhava o que eu estava a pensar. Nunca me ofereceu um tostão furado pelos meus pensamentos.

- Eu gosto de dormir, não apenas para descansar. O meu prazer está essencialmente em acordar. Acordar para um dia novo é uma espécie de viagem no tempo. Desapareço da vida num momento e regresso noutro, já no futuro. Mesmo que o mundo esteja praticamente na mesma quando regresso, posso sempre acreditar que não, nem que seja por una momentos... - desviou o seu olhar do meu e tornou a encher os copos.

A Lua continuava ali, suspensa no céu como se quisesse continuar a ouvir os nossos segredos, mas eu calei-me. Pedi à Marta que me emprestasse uma t-shirt e me arranjasse uma escova de dentes (sabia que ela tinha a mania de ter escovas descartáveis lá em casa). Fui dormir. Talvez no dia seguinte acordasse apaixonado por ela e ela por mim. 
É verdade que isso nunca aconteceu, mas eu passei a dar uma nova importância ao sono.
Por estes dias também dou. Talvez amanhã acorde e tudo esteja diferente...

conversa 2034

Ela - Há quantos dias é que eu não vinha a tua casa?
Eu - Estiveste aqui na segunda-feira, não foi?
Ela - Acho que foi. Há quatro dias, portanto.
Eu - Sim.
Ela - Muito interessante.
Eu - Porquê?
Ela - Porque ainda tens a mesma roupa a secar.
Eu - E depois?!
Ela - Não achas que já secou o suficiente?
Eu - Já está seca, sim.
Ela - E estás à espera de quê, para a apanhar?
Eu - De precisar duma peça qualquer que esteja pendurada.
Ela (suspiro)
Eu - O que é que foi?
Ela - Não interessa. Nada do que eu te diga te pode salvar.

9.04.2013

engole o teu piropo

ou solta o grunho que há em ti!

Duas aderentes do Bloco de Esquerda decidiram fazer, durante um evento anual que o partido organiza há já alguns anos, uma conferência chamada “Engole o teu piropo”. A mesma destinava-se a uma reflexão sobre o machismo no nosso país, ou seja, mais concretamente sobre a forma invasiva e desrespeitosa como alguns homens tratam as mulheres. Esse evento chama-se Socialismo e é composto por conferências com diversas e variadas temáticas. Eu próprio, no ano de 2012, fiz uma sobre o filme Blade Runner e o livro de Philip K. Dick que esteve na sua origem.
Voltando aos piropos, umas das coisas que eu gosto no Bloco é precisamente a sua capacidade de discutir tudo e mais alguma coisa que diz respeito à organização política. Machismo, feminismo, bem estar dos animais, exploração no trabalho, injustiça na Economia, etc. Não creio que haja temas menores quando neles há vítimas directas que, muitas vezes, sofrem em silêncio.
É o caso dos piropos, por exemplo, que na verdade me preocupam enquanto Homem e, já agora, enquanto pai duma menina que está a entrar na adolescência e a começar a perceber o grunho que existe dentro de alguns portugueses. É preocupante, tanto porque define um pouco o país em que vivemos, como porque afecta a vida de todas as raparigas que, tal como a minha filha, estão expostas a essa grunhice. Para mim, não restem dúvidas, é um tema a discutir. Sempre.
Fiquei ainda mais preocupado quando percebi a reacção de um vasto sector da sociedade portuguesa, maioritariamente masculino, a esta iniciativa. Vi, ouvi e li de tudo. Chamaram lésbicas às minhas camaradas, inúteis e, em tom jocoso num cartoon do Expresso, podres de boas. Enfim, todos deram razão à existência da iniciativa, porque todos pareceram soltar com vontade o grunho que tinham reprimido lá dentro. E não, não estou a exagerar. O piropo é para acabar.
Lembro-me muito bem de, quando tinha vinte anos de idade, uma colega minha entrar na sala de aula a chorar, como se uma nova e doentia condição humana lhe tivesse sido revelada naquela manhã de Outubro. Um homem qualquer, bastante mais velho, tinha-a perseguido durante alguns minutos e, antes dela entrar na escola, prometido que estaria ali à espera que lhe fizesse uma mamada. Só isso. Ela não aguentou. Alguns grunhos acharam que era normal. Eu não.
Percebi agora que, quase trinta anos depois, os homens portugueses evoluíram muito pouco ou nada. A questão atingiu uma proporção tão dantesca que ouvi comentários de quem nem sequer sabia o que se passava. Parecia que o Bloco tinha feito um projecto de lei sobre o assunto e esquecido que estamos em crise. Não esqueceu, mas a crise não implica esquecer o resto, o resto, ou seja, o respeito por cada um de nós, independentemente do género, da etnia, da religião ou doutra coisa qualquer.

E, por favor, poupem-me ao contraditório. Eu sei muito bem que há piropos e piropos. Há os que devem ser engolidos e os que devem ser livres. Por isso mesmo acabo este texto com um piropo a todas as mulheres que aqui me visitam: “Obrigado por existirem!”. Infelizmente, muitos homens homens não percebem que a normalidade em que vivem não é normal.

9.03.2013

conversa 2033

Ela - Ando a tirar um curso de pintura.
Eu - Fixe. Vou precisar de ti, então.
Ela - Porquê?
Eu - Porque as paredes da minha casa estão um nojo e vou ter que as pintar, coisa em que não tenho grande experiência.
Ela - Sabe-me sempre bem conversar contigo de vez em quando.
Eu - Porquê?
Ela - Porque me apercebo sempre do motivo pelo qual as coisas nunca resultaram entre nós.

9.02.2013

respostas a perguntas inexistentes (259)

Depois do meu divórcio e antes do meu novo casamento, marquei diversos encontros com mulheres um pouco por todo o país. Alguns correram melhor, outros pior. Algumas dessas mulheres ficaram minhas amigas, outras nem por isso. Lembro-me com frequência de alguns desses encontros, doutros nem por isso. 
Alguns amigos meus, com base num pensamento a que arrisco chamar mais conservador, criticaram-me ou avisaram-me, sempre com as melhores das intenções, que não é através de encontros com desconhecidas que se deve conhecer uma mulher. Ainda hoje discordo, até porque se se conhece uma mulher, é porque até então ela era desconhecida, seja numa saída à noite, numa inscrição num workshop de dança ou outra coisa qualquer. Eu queria conhecer pessoas. A internet é apenas um (mais um) meio para o fazer.
Apesar da minha actual relação ter sido uma das maiores coincidências da minha vida, creio que mesmo a maior, acabou por ser essa a via para a relação mais longa que já tive com uma mulher depois de me ter divorciado. Por isso, e independentemente da coisa continuar a resultar por muito mais tempo ou não, não me arrependo. 
Hoje, daquilo que mais me lembro dos meus encontros, é sobre como nos apresentamos ao outro e o que realmente somos. Nunca corresponde, ou quase nunca. Talvez por isso os ingleses lhes chamem blind date (encontro às cegas). Muitas vezes fui ter com mulheres que nunca tinha visto, nem sequer em fotografia, mas das quais fazia uma ideia. Aliás, fazemos sempre uma ideia sobre como são os outros, seja alguém com quem conversamos na net, seja um locutor de rádio ou outra coisa qualquer.
Entre esta distância que separa a forma como nos vemos e aquilo que realmente somos, existe também a variável do que somos e do que queríamos ser, variável essa que pode ser muito cruel. Acho que foi por isso mesmo que na primeira vez que vi a Anabela ela estava a chorar. É assim que me lembro dela hoje, sete anos depois. A chorar.
Saí de Aveiro num fim de tarde em direcção a Coimbra para tomar um café com ela. Nunca a tinha visto, mas a descrição dela, feita por ela mesma, revelava uma mulher morena de um metro e sessenta e cinco, magra, lábios grossos, tímida e que se escondia frequentemente nos seus longos cabelos negros. 
A primeira conclusão a que cheguei é que é que se atrasava bastante, porque apesar de termos combinado às oito da noite num café central, às nove ainda não tinha vislumbrado ninguém que se assemelhasse a tal apresentação. Foi nesse momento que uma "outra" mulher, loira, de cabelo curto e certamente com mais de cem quilos, se sentou na minha mesa a chorar. Estava ao meu lado, em segredo, desde o princípio, a ganhar coragem para se revelar.
Pediu-me mil desculpas por me ter feito andar tanto em busca do inexistente. A sua descrição baseara-se na minha assumida admiração pela Mayra Andrade.

- E o que é que bebes? - Perguntei como que querendo fugir àquela pequena explosão do meu dia.
- Não estás zangado?
- Estou zangado com o mundo. Contigo, obviamente que não.
- Tu também não és bem o que eu estava à espera... - concluiu.

Eu não era o que a Anabela estava à espera. A Anabela não era o que eu estava à espera. Depois mandámos vir vinho, bebida que nos acompanhou numa conversa até às três da manhã, já no seu pequeno apartamento. Dentro daquilo que não éramos, ficámos amigos até hoje. Estava aqui a pensar na quantidade de vezes que dei de caras com mulheres que correspondiam fisicamente ao que diziam, mas com quem não fui capaz de dividir um copo desse néctar da amizade que é o tinto maduro.