5.12.2016

O fim do mundo

Acho que muitas vezes escrevi sobre um bar em que nunca entrei. Um bar do fim do mundo, tão agressivo quanto convidativo, tal como a vida que nos calhou a cada um de nós. Como se caminhássemos sozinhos durante quilómetros, num ambiente agreste, e nos doessem os pés e a alma. Depois um bar pequeno, com uma lareira, uma puta simpática, um dono enlouquecido pela solidão serôdia e uma mulher imperceptível.
Pois esse bar conheci-o aqui, num bairro pobre em Mladost. É tudo o que eu escrevi no parágrafo anterior mais um piloto de aviões que só está às vezes, quando não voa. Isso e uma decoração vermelha e decadente. Passam músicas búlgaras do youtube e um televisor mostra o boletim meteorológico da Bulgária. Talvez o elemento comum mais absurdo entre países diferentes seja esse: o boletim meteorológigo ter sempre uma apresentadora sexy.
O dono, que me reconhece de visitas anteriores, grita “Ronaldo” quando entro. A puta, que já sabe que não estou ali para lhe pagar meia hora de sexo triste, abraça-me e segreda-me algum aroma de gin tónico. A mulher imperceptível sorri-me e vira a cara para lugar nenhum, desprezando-me. Não há melhor desprezo do que esse, o que vai dar a lugar nenhum.
Peço uma Ariana, que é a cerveja mais barata neste fim do mundo e parto para uma discussão sobre aviões com o piloto, que também bebe cerveja, mas mais cara do que a minha. O F-16 americano e o SU- russo voam entre as nossas bocas numa solidão cada vez maior.
É só um bar escondido numa esquina de um bairro pobre de Sófia, onde por uma noite escondo  todos os meus medos e receios, todas as minhas inseguranças e os meus desejos biológicos. É para isso que servem os bares, mesmo que no fim do mundo, para aprendermos a rejeitar a merda da Biologia que se mostra tão intensa em cada copo que bebemos.
Depois saio e a mulher imperceptível dá-me a mão direita, a puta dá-me outro abraço e o dono grita de novo “Ronaldo”. Despeço-me com a sensação que faço um bocadinho parte deste fim do mundo, tão agressivo e convidativo tal como a vida que me calhou.

5.08.2016

O caminho de caracóis

Da estação de metro de Sofiska Sveta Gora até ao edifício onde trabalho há uma ferida de cimento que rasga alguns terrenos onde as plantas crescem de forma caótica e aleatória. À medida que o metro vai passando e vomitando trabalhadores sem rosto, vêem-se pessoas a percorrer essa ferida em fila indiana, como se fossem manadas isoladas de elefantes.
Às vezes eu sou um desses elefantes. Olho sempre para o chão, para não pisar nenhum dos caracóis que procuram escapar à humidade matinal. Nem todos têm o mesmo cuidado e é normal ouvir a casca de um ou outro a rachar. São cerca de doze minutos em que converso com todas as pessoas de quem tenho saudades, num silêncio interior que só me pertence a mim e a elas.
Quando tiramos um bilhete só de ida para outro país, não é apenas pelo espaço que viajamos, mas também e principalmente por nós mesmos. Conheço-me hoje melhor do que me conhecia há dois meses atrás. Sei como reajo à solidão e à saudade, sei como enfrento a hostilidade pontual de um desconhecido e como me aqueço na bondade de um sorriso alheio. Sei como choro sem chorar e como rio sem rir e sei, sobretudo, quem são aqueles que formam o pedaço de mim que ficou em Portugal.
De alguma forma, o corpo é tão importante quanto a energia, e é por isso que uma conversa ao telefone ou no messenger não apaga a saudade. Ajuda, mas não apaga. O corpo, aqui, é o dos outros. A voz, os gestos e os cheiros são sempre dos outros, porque a Bulgária ainda é um país em que as pessoas são outras. As outras.
Quando eu era criança, num tempo em que me era inimaginável vir um dia viver para a Bulgária, brincava à carica com as outras crianças da rua num piso de cimento parecido com este, num pátio traseiro de um prédio solitário em Aveiro. Uma vez o João pôs-se a esmagar caracóis enquanto cantava qualquer coisa. Eu bati-lhe. Depois ele bateu-me a mim. Nunca mais o vi, mas ainda assim sei que ele não pertence a esse grupo de outros de que falo aqui. É dos meus, e é a primeira vez que tenho este sentimento absurdo de pertença a um país.
Também o terei com a Bulgária, mais tarde ou mais cedo. Soube-o quando recebi um telefonema de um desconhecido a oferecer-me um quarto quando me encontrava economicamente mais frágil, soube-o no primeiro abraço de uma mulher num dos parques centrais da cidade e no sorriso da funcionária do Ministério do Interior que me ajudou a preencher os papéis da imigração.
Quando estamos sozinhos cada gesto de bondade é uma pepita de ouro que encontramos e, por pequeno que seja, nunca mas nos esquecemos dele.
Penso nisto de manhã, enquanto me desvio de mais um caracol ao qual desejo sorte com os passos dos elefantes que vêm atrás de mim. Somos todos tão pequenos e é tão fácil sermos pisados que, às tantas, devíamos perceber que é isso que nos une a todos.

Obs: só tenho net no telefone e por isso não tenho escrito neste blogue. Se dei erros, peço desculpa. Não me é fácil teclar. Vou tentar ser mais assíduo.