tag:blogger.com,1999:blog-338192882024-03-15T13:01:25.691+00:00não compreendo as mulheresIvar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.comBlogger5402125tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-56466123382158407112024-02-14T12:10:00.002+00:002024-02-14T12:10:09.906+00:00Como pode a revolução não estar num ovo estrelado?<p> <span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A Ana
está a cozinhar um ovo. Pega nele com delicadeza apertando-o nas
extremidades, numa com a ponta do dedo indicador e na outra com a
ponta do dedo polegar. Exerce alguma pressão sobre ambas e levanta a
própria mão até ao nível do seu olhar. Observa agora o ovo como
se este fosse uma pequena escultura, uma obra de arte. Mas não é,
os ovos são todos praticamente iguais e não são fruto de nenhuma
mente criativa.</span></p>
<p style="margin-bottom: 0in;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ela
sabe, no entanto, por que motivo maneja aquele ovo como se fosse uma
preciosidade única. É que há alguns anos comprou uma máquina de
cozer ovos automaticamente e desde então nunca mais os cozinhou de
outra forma. Optou pelo facilitismo da tecnologia, que apenas lhe
pede que coloque seis ovos numa placa própria, adicione 10
decilitros de água e ligue um botão. Quando a máquina apita é
porque os ovos estão prontos.</span></p>
<p style="margin-bottom: 0in;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Hoje,
precisamente há alguns minutos atrás, decidiu que ia cozinhar um
ovo de novo à maneira antiga e por isso fita-o com o mesmo interesse
que um estudante de arte teria pela sua primeira pintura académica.
É claro que um ovo não é uma obra de arte, repete ela para si
mesma, mas o que sair daquele procedimento será com certeza.</span></p>
<p style="margin-bottom: 0in;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Talvez
a revolução esteja apenas num ovo estrelado. Não uma revolução
que revolucione o mundo, claro, mas que a revolucione a ela. Às
vezes ela até é mais difícil de mudar do que o próprio mundo,
pensa agora. E, afinal de contas, não somos cada um nós um mundo?</span></p>
<p style="margin-bottom: 0in;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Do
outro lado do ovo, mesmo por cima de um fogão onde o tempo tatuou
algumas rugas de ferrugem, Ana vê-se no reflexo do vidro de uma das
portas dos armários da cozinha a sorrir. Só ela sabe que os seus
sorrisos se transformam tão facilmente em riso como em choro e só
ela sabe porquê. É uma vida inteira de murros no estômago, de
abraços quentes, de despedidas frias, de dores silenciadas a ferro e
fogo, de esperanças vãs e certezas perdidas. E repete para ela mesma,
afinal de contas, não somos cada um nós um mundo?</span></p>
<p style="margin-bottom: 0in;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Vem-lhe
à memória a doçura da mãe, cujo amor lhe permitia optar sempre
optar por um ovo estrelado com batatas fritas quando a família se
reunia num jantar de peixe cozido e couve escura. E ela, criança,
comia as batatas e o ovo com as mãos enquanto os adultos abriam e
fechavam a boca para emitir sons que ela não percebia. Como pode a
revolução não estar num ovo estrelado?</span></p>
<p style="margin-bottom: 0in;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Vem-lhe
à memória o convite de um patrão num emprego mal pago para jantar
num restaurante perto de um motel nos subúrbios. E ele, babado,
comia pedaços de carne enquanto a chantageava com sexo para que
pudesse manter o emprego e único meio de subsistência. Oh Ana, eu
não quero a tua virgindade, apenas a tua boca. E ela levantou-se e
saiu do restaurante, não sem antes lhe atirar o ovo do seu prato à
cara. Como pode a revolução não estar num ovo estrelado?</span></p>
<p style="margin-bottom: 0in;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Depois
passou fome, mas vem-lhe à memória a filha e o seu desmame do
biberão e do leite da mama. A primeira refeição sólida foi um ovo
estrelado que a cria cuspia como se fosse uma torneira de rega a jorrar
água num campo de trigo. E riam-se as duas como se estivessem
bêbadas de felicidade. Como pode a revolução não estar num ovo
estrelado?</span></p>
<p style="margin-bottom: 0in;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Vem-lhe
à memória um salário que não chegava até ao fim do mês.
Depois de pagar as contas fazia refeições de ovo estrelado com
tomate, de ovo estrelado com batatas fritas, de ovo estrelado com pão e
de ovo estrelado com ovo estrelado. Uma por dia, não mais. E no fim
sentia-se tão cheia quanto uma vida cheia de aventuras. Como pode a
revolução não estar num ovo estrelado?</span></p>
<p style="margin-bottom: 0in;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Vem-lhe
à memória a violência do marido. As promessas de que ela era
especial transformaram-se com o tempo em “és uma inútil” e “não
fazes nada de jeito". E um dia ele chegou a casa e bateu-lhe porque
era o segundo dia seguido em que o jantar era composto por ovos
estrelados, sem perceber que a partir desse dia e até um divórcio
litigioso todos os jantares seriam de ovos estrelados. Como pode a
revolução não estar num ovo estrelado?</span></p>
<p style="margin-bottom: 0in;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A Ana
vê-se no seu reflexo desfocado. Reconhece cada ruga, cada lábio
trémulo, cada brilho nos olhos, cada silêncio. Parte o ovo que
segurava como se a sua vida dependesse da delicadeza com que o faz.
Na frigideira forma-se imediatamente um círculo laranja rodeado de
uma clara branca sem forma definida. É como se fosse um planeta numa
galáxia. </span>
</p>
<p style="margin-bottom: 0in;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Cada
vez que estrelamos um ovo começamos tudo de novo. Como pode a
revolução não estar num ovo estrelado?</span></p>
Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-14976224094495676172024-01-18T11:13:00.003+00:002024-01-18T11:13:55.309+00:00O planeta voltará ao sítio em poucos minutos<p>De todas as sensações de vazio que se pode ter, a melhor de todas é aquela que vem depois do sexo. Se isto não não for verdade, não interessa, porque é aquilo em que ele acredita agora, neste preciso momento que se segue àquele em que o seu corpo engatilhou toda a energia dos cosmos e disparou uma bala de esperma dentro dela. O que for realmente verdade não interessa.</p><p>Ela está ali, viva com corpo de morta e a luz fria do Inverno a aquecer-lhe a pele branca embrulhada pelo silêncio. Um dos braços, o esquerdo, passa-lhe por baixo da cabeça e depois ergue-se na vertical num perfeito equilíbrio de árvore. A mão cai como se os seus dedos fossem as folhas preguiçosas de uma palmeira. É bonita. Tão bonita.</p><p>Que raio de momento para pensar na palavra Amor. Depois do sexo nunca se ama ninguém. É sempre preciso esperar que o planeta volte ao sítio, como quando se acaba de dar corda a um boneco e ele se engasga nos seus primeiros movimentos mecânicos. Enfim, é preciso que aquele delicioso silêncio termine, que os aviões voltem a riscar o céu, que o trânsito nas ruas volte a buzinar e que o relógio de parede volte a contar os segundos. </p><p>É assim o momento depois do sexo. O mundo não mexe e não se Ama ninguém.</p><p>E agora que os ponteiros começam lentamente a contar o tempo apressado, lembra-se dela num passeio qualquer que deram há uns anos. Numa cidade qualquer, numa estação do ano qualquer, numa rua qualquer em que um Mimo fazia bolas de sabão invisíveis e uma criança de vestido e sapatos verdes saltava para as rebentar. Um homem gordo e sem cabelo lia um jornal de folhas grandes enquanto na mesma esplanada quase todos olhavam para o telemóvel, um Sem Abrigo bêbado estendia a mão invisível aos transeuntes apressados e o vento preguiçoso serpenteava algumas folhas de árvore e pedaços de lixo no chão.</p><p>E ela disse que o Amava.</p><p>Ele lembra-se desse momento de vez em quando. Talvez o tenha guardado na memória da mesma forma que se guarda uma fotografia entre as páginas de um livro que só se lê e relê de vez em quando. Estamos então no meio duma história que não nos pertence e de repente pegamos na fotografia e vem-nos à memória um momento que é só nosso.</p><p>A mão em forma de palmeira mexeu-se. O corpo morto dela respira e, portanto, voltou à vida, que as balas de esperma nunca mataram ninguém definitivamente. E então ela pergunta-lhe se ele gostava de voltar a Berlim.</p><p>Berlim, sim, era essa a cidade. Hum hum, responde ele acenando afirmativamente a cabeça sem ela ver.</p><p>A seguir vão tomar decidir quem toma banho primeiro, enquanto os aviões no céu e os automóveis na rua recuperam o movimento. O planeta voltará ao sítio em poucos minutos.<br /></p><p> <br /></p>Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-67569061464638715962023-09-20T19:26:00.000+01:002023-09-20T19:26:00.114+01:00Que noite para deixar de fumar<p>Aquele seria o seu último cigarro e como último cigarro
de uma vida que levava quarenta e quatro anos tinha tanto de
angustiante como libertador. Não era para menos. No espaço de apenas
três dias a sua vida mudara radicalmente e, apesar de ela ter
primeiramente interpretado as mudanças como más, no seu íntimo sabia que
as vantagens apareceriam lentamente como se fossem bolhas de ar a subir
num profundo e escuro oceano. </p><p>A sua filha única, Ana, emigrara
repentinamente para a Roménia, onde ia começar a trabalhar num <i>call
center</i> qualquer; o seu marido, cujo nome não queria tornar a dizer nem
para si mesma, deixara um curto bilhete de despedida na porta do
frigorífico e fazia agora setenta e duas horas que não aparecia em casa.
Curiosamente, a sua primeira reação ao ler o bilhete foi sorrir, mas
perante a repetição do feito e a memória de que ele voltava sempre no
dia seguinte depois destes bilhetes, o seu sorriso esmorecera como um
dia que se faz noite. Estas setenta e duas horas eram portanto uma
esperança real de que desta vez talvez ele não voltasse. </p><p>Deixar bilhetes de despedida na porta do frigorífico era apenas mais uma decepcionante característica daquele homem. Nem para se despedir conseguia inovar, ser único, surpreendê-la. Até nas anedotas baratas os amantes deixam bilhetes na porta do frigorífico e, na verdade, talvez fosse esse o motivo. Ele nunca tinha lido um livro na vida nem sequer visto um filme mais complexo do que o <i>Sozinho Em Casa</i>. Agora que pensa nisso, ela já nem se lembra por que motivo se apaixonou por ele. Talvez a paixão às vezes seja só uma necessidade estúpida no coração, que depois de morrer nos vicia na carne. E na carne ele tinha sido realmente bom, num período da vida que ela já consegue identificar. <br /></p><p>Apagou a angústia do cigarro no <i>tablier</i> do próprio carro, um Dacia
Sandero branco comprado em segunda mão dois anos antes e que era agora o
seu melhor amigo, e inspirou as réstias do seu fumo libertador.
Precisava de se intoxicar de liberdade, pensou. Naquela rua de Lisboa a
prostituição de homens era a lei e ela queria voltar a sentir esse vício da carne, tudo o
que apenas um fugaz e descomprometido ato de sexo consegue. Ligou o
motor do automóvel e avançou cerca de trinta metros para perto de um
grupo de homens que se exibia debaixo da tímida luz de um candeeiro
público. Depois abriu o vidro da janela lateral do lugar do morto e três
deles aproximaram-se. </p>
<p dir="ltr">- Olá querida - disse um. </p>
<p dir="ltr"></p>
<p dir="ltr">Era curioso que se chamasse lugar do morto àquele onde por
norma se senta quem se prostitui, mas esse pensamento também se desfez
em fumo imediatamente. Um dos homens era demasiado baixo e estava
nitidamente em bicos de pé enquanto os outros dois se curvavam para
dentro do veículo. Tinha sido ele a dizer o "olá querida" mas a sua
atenção caiu sobre os outros por esse motivo. Um tinha barba e outro
não, o que desampatou a contenda de imediato. </p>
<p dir="ltr">- Se essa barba arranhar, entra, por favor. </p>
<p dir="ltr"></p>
<p dir="ltr">O homem que se sentou ao lado dela devia ter cerca de um
metro e oitenta, cheirava demasiado a um perfume barato qualquer mas
pelo menos parecia ter os dentes todos e o seu olhar era bonito. Não
tinha a barriga sobressaída, o que era bom sinal, e os seu braços já
estavam cruzados como se se preparasse para uma longa viagem. Não tinha
cara de estúpido, mesmo que naquele momento ela não soubesse sequer
descrever como seria essa cara, o que era suficiente. </p><p dir="ltr">Foi nesse momento
que ela percebeu que não sabia o que fazer. Devia ir para um motel, para
casa ou poderiam ter sexo mesmo no carro num qualquer canto escuro da
cidade? Não quis perguntar para não ficar em desvantagem naquele
estranho negócio a dois, por isso optou pela estratégia de parecer
decidida e, talvez também porque existia uma pequena hipótese do seu
ainda marido ter voltado, disse:</p>
<p dir="ltr">-Vamos para minha casa, está desarrumada e espero que
gostes de sexo no sofá! - No fim da frase os lábios tremeram-lhe um
pouco. </p>
<p dir="ltr">- Eu não tenho que gostar, querida. Afinal de contas estou a ser pago. </p>
<p dir="ltr"></p>
<p dir="ltr">Em apenas cinco minutos, aquele homem já lhe tinha chamado "querida" duas vezes. Era definitivamente estranho, o negócio de prostituição. O Dacia arrancou como se tivesse dúvidas que o queria fazer
e desapareceu devagar na primeira curva. Pelo espelho retrovisor ainda viu os
outros dois homens a olhar na sua direção. </p><p dir="ltr"><br />
Um silêncio amargo ia com eles no automóvel, por isso ela ligou o som do
rádio que, mesmo sem sintonia perfeita, fazia o favor de justificar a falta de
palavras entre ambos. <br /> </p><p dir="ltr">Ela tinha razão, ele não era estúpido. Estava ali a trabalhar e fizera
questão de o sublinhar na primeira oportunidade, o que punha toda a
estética do sexo que se aproximava à sua responsabilidade. Ela ia
decidir o que ele ia fazer, depois pagava-lhe, provavelmente com um
extra para que ele pudesse regressar de táxi. </p><p dir="ltr"><br />
A casa estava realmente bastante desarrumada, tão desarrumada pelo menos quanto a vida dela. Ele
tirou os sapatos, que alinhou perfeitamente na entrada, e os seus olhos
procuraram de imediato o sofá num irrequieto voo por todas as portas
abertas do pequeno T2. Sentou-se decidido e contou os livros espalhados
pelo chão e pela pequena mesa da sala, que eram doze; os cinzeiros
cheios de beatas, que eram três; as garrafas de vinho e cerveja vazias,
que eram cinco. Quando acabou de contar ela já estava com as mãos no
sexo dele. </p>
<p dir="ltr">- Não é difícil! - disse ela decidida - só me penetras quando eu estiver húmida e não quero beijos. Podes fazer isso? </p>
<p dir="ltr"></p>
<p dir="ltr">- Posso! </p>
<p dir="ltr"></p>
<p dir="ltr">Os corpos despiram-se um ao outro, primeiro com a vista e
depois com as mãos. Quando estavam nus começaram por se estranhar e
familiarizaram-se depois lentamente, primeiro com as mãos, depois também
com a vista. Tornaram-se só um até que ela o imobilizou com a voz para
poder controlar sozinha o final. </p>
<p dir="ltr">-Já está! - disse. </p>
<p dir="ltr">Gemeu alguns segundos. </p>
<p dir="ltr">Ele não estava, mas isso pouco interessava. Vestiu-se
rapidamente e em dificuldade até o falo amolecer. Deu-lhe um cartão
com os dados bancários para que ela pudesse fazer uma transferência
bancária de imediato. </p>
<p dir="ltr">- Quanto é? </p>
<p dir="ltr">- Um mínimo de cem. A partir daí é o que quiser. </p>
<p dir="ltr"></p>
<p dir="ltr">Ela transferiu cento e vinte e levou-o até à porta.
Deu-lhe mais uma nota de vinte para o táxi e trancou-se mal ele
saiu. Não lhe disse Adeus nem obrigado. Ele também não disse nada. Desta vez nem lhe chamou "querida".<br /></p><p>Dentro de casa ficaram ela e o silêncio, um silêncio tão volumoso como o interior de um ovo. Aquele rápido e intenso momento de sexo permitia-lhe agora pela primeira vez olhar para esse caos da sua casa e percebê-lo, estabelecer uma analogia entre tudo o que é material e a sua solidão. Os cigarros, os livros e o álcool, mas também os pequenos objectos decorativos nas estantes da sala, os ímanes de viagens distantes no frigorífico e algumas pinturas na parede das quais já se tinha esquecido que estavam ali,</p><p>Aproximou-se da janela. Lá fora a cidade continuava um formigueiro ignorando-a totalmente, ao sangue quente que lhe corria nas artérias e aos pensamentos enublados que lhe corriam na mente. Na verdade, toda aquela quietude só servia para ela entender isso mesmo, que tinha passado a vida a correr atrás de coisa nenhuma.</p><p> O Amor, que tinha sido tudo, encolhera-se lentamente como um figo seco até ser nada e permanecera naquele apartamento a fingir ser vida. </p><p>Sorriu. Que noite para deixar de fumar, pensou. <br /></p>Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-82840786348150392982023-04-02T19:31:00.001+01:002023-04-02T19:35:01.773+01:00Esparguete com Ovos<div>Ela sentou-se ao meu lado enquanto eu jantava. Não trouxe um segundo prato para a mesa nem talheres, o que significava que não queria jantar. Apenas sentar-se ao meu lado. Abri as hostilidades que o sorriso dela anunciava e perguntei-lhe se estava bem. Que sim, respondeu.</div><div>Por uns segundos, entre duas garfadas, percebi que é uma sorte termos alguém que se senta ao nosso lado só para estar ali e o meu pensamento voou indelevelmente por alguns passados de solidão. Depois pousou novamente no meu prato.</div><div><br></div><div>- Quando te conheci nunca imaginei que fosses um homem tão simples.</div><div><br></div><div>A frase dela ficou a pairar alguns segundos ao som duma música que passava baixinho na rádio e cujo nome eu não sei. Depois desfez-se no ar e eu voltei a viajar no tempo para o dia em que a conheci. Estávamos num jardim na cidade de Sófia em Abril de 2016 e ela dizia-me que na Bulgária é costume deixar sempre algumas moedas de gorjeta, mesmo quando se bebe apenas uma cerveja. Pela dança dos seus cabelos, parecia-me óbvio que era o vento a segredar-lhe o que me devia dizer. E eu a explicar-lhe que em Portugal nunca deixava gorjeta quando bebia uma cerveja fosse onde fosse.</div><div><br></div><div>- Estás a comer esparguete com ovos escalfados e apenas sal. Isso é duma enorme simplicidade até no gosto. Acho giro. </div><div><br></div><div>Eu sei que quando cozinho só para mim faço um bife com batatas fritas ou massa com ovos. Ela é diferente. Os seus pratos, mesmo solitários, parecem pequenas e complexas obras de arte.</div><div>Explico-lhe agora, com o mesmo tom apaixonado de 2016, que como assim desde criança e pretendo continuar a fazê-lo, o que não me impede de cozinhar mais elaboradamente noutras alturas.</div><div>E é assim que concluo que o tempo voou e estamos juntos há sete anos. </div>Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-5812273596086432442023-01-31T11:35:00.001+00:002023-01-31T11:35:25.796+00:00A Dança das Folhas<p>Lembro-me de algumas folhas secas outonais que dançavam na rua deserta ao som de um vento harmonioso. Primeiro pensei que fossem alguns pardais a lutar por algumas migalhas de pão esquecidas no alcatrão, mas depois percebi que não.</p><p>O táxi tinha-me deixado ali com duas malas grandes e um saco de desporto igualmente generoso no tamanho, a dona do hostel onde eu alugara um quarto barato à pressa no terminal dois do aeroporto de Sófia ainda não tinha chegado para me abrir a porta e portanto restava-me esperar. Os meus olhos saltavam entre essa tola dança das folhas de árvore e toda a minha bagagem como uma bola de ténis batida lentamente por dois jogadores que nunca falham, quando se concentravam nas malas mergulhavam também na minha própria vida, que começava ali do zero outra vez.</p><p>Tinha quarenta e quatro anos e uma sucessão de empregos mal pagos, recorrentemente com salários em atraso, que mesmo assim todos somados não chegavam ao montante das minhas dívidas. A sensação era a de que o país onde eu vivera a maior parte desses anos me abandonara e como qualquer homem abandonado decidira afastar-me. Sem amuos. Apenas afastar-me.</p><p>Até àquele momento a minha vida na Bulgária resumia-se a uma conversa com o taxista sobre os jogadores búlgaros que tinham passado por Portugal e a esse primeiro momento de paz. Paz porque estava longe, só isso. Eu ainda não fazia ideia de que a minha próxima companheira de vida seria búlgara e que a ia conhecer num jardim não muito longe dali cerca de três meses depois.</p><p>O ano era 2016 e não estávamos no Outono mas sim no fim de Março. Foi também nesse ano de recomeço que me fui desligando deste blogue que começara dez anos antes, após o meu primeiro divórcio. Desde então muita coisa mudou e hoje vivo no Reino Unido, numa pequena cidade chamada Newcastle Under Lyme. A S. veio comigo, ou melhor, veio ter comigo meio ano depois da minha partida da Bulgária para este país e ainda cá está. Quer dizer, ainda cá estamos. </p><p>Vou com cinquenta e um anos de idade e apetece-me escrever de novo sobre os dias que passam. Vou fazê-lo aqui, recomeçando sem apagar o passado, alternando o meu olhar entre o que me rodeia e eu mesmo. Talvez as folhas ainda dancem de um lado as minhas malas cheias de nada ainda estejam por abrir. Vocês são bem vindos. Se quiserem, claro.<br /></p>Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-64810163262976408742020-05-17T11:56:00.000+01:002020-05-17T11:56:09.812+01:00O Síndrome do Peixinho Vermelho
<p style="margin-bottom: 0cm;">Estou com o síndrome do Peixinho
Vermelho, disse ela. Estávamos numa floresta dum país que não era
o nosso, até porque eu sou português e ela de lugar nenhum. Só me
lembro que as árvores eram muitas e cada uma se tinha vestido duma
cor diferente, como se estivessem num baile de finalistas.</p>
<p style="margin-bottom: 0cm;">E eu perguntei-lhe que raio de síndrome
é esse. Não perguntei porque realmente estivesse interessado em
saber, mas sim porque tinha acabado de me apaixonar por ela. Sempre
que me apaixono por alguém e não tenho coragem de o dizer, faço
perguntas. Sabia que se ela fosse respondendo, pelo menos ficava
perto de mim.</p>
<p style="margin-bottom: 0cm;">A alguns metros de nós seguia um lobo
que de vez em quando se aproximava apenas para pedir uma festa no
focinho. Era esse o pagamento para ele nos guardar. De vez em quando
rosnava para afugentar os sinais de vida que se moviam por ali como
se fossem um vento esguio. Eu não os via, mas sentia-os a abanar as
folhas e os ramos coloridos.</p>
<p style="margin-bottom: 0cm;">E então ela explicou-me o síndrome. É
ouvir a mesma música muitas vezes seguidas com auscultadores como se
a nossa vida dependesse disso e reparar que as pessoas falam umas com
as outras como se fossem eternas.</p>
<p style="margin-bottom: 0cm;">Eu sorri. As árvores dançaram num
assobio e o lobo rosnou. Não sei muito bem explicar porquê, mas foi
a primeira vez que fiquei realmente feliz por ele estar ali.
Aproximou-se e fiz-lhe uma festa.</p>
<p style="margin-bottom: 0cm;">E eu perguntei-lhe como é que as
pessoas que pensam que são eternas falam. Não que eu quisesse
realmente saber, claro. Falam das coisas que não interessam nada
para sermos felizes mas sim e apenas para uma entidade abstrata
qualquer chamada Economia, disse. São como aqueles peixinhos vermelhos que andam sempre em círculos num aquário redondo.<br /></p>
<p style="margin-bottom: 0cm;">O lobo rosnou. As árvores fizeram
silêncio. Eu também.</p>
<p style="margin-bottom: 0cm;">E ela olhou para mim e disse-me para
continuar a fazer perguntas. Enquanto eu as fizesse, ela responderia
e ficaria perto de mim. Precisava saltar fora do aquário.<br /></p>
<p style="margin-bottom: 0cm;">Pode não parecer, mas esta é uma
história de Amor.</p>Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-2954200223593209642020-02-19T18:50:00.002+00:002020-02-19T18:50:45.832+00:00pensamentos catatónicos (351)
<div style="margin-bottom: 0cm;">
Estou no comboio entre Manchester e
Londres. Entrei apenas em Stoke-On-Trent e vou sair em Wolverhampton,
onde tenciono apanhar uma ligação secundária para Cosford. É lá
que existe um museu da Royal Air Force e uma base aérea militar
importante que pretendo visitar.</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
<br />
</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
Levo no pensamento que esta viagem de
comboio pode ser um pouco como a vida. Entramos ignorando o passado e
saímos desconhecendo o futuro. São assim o nascimento e a morte. É
assim a vida e tento reconfortar-me precisamente com a ideia de que
quando sair vou para outro lugar.</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
<br />
</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
Em Stafford a vida faz uma paragem. As
portas abrem-se e ajudo uma mulher a carregar duas malas pesadas para
dentro do comboio. É a única passageira que entra, pelo menos pela
porta onde eu estava encostado e perdido nos meus pensamentos. Dou-me
então conta de que sou o único que decidiu não se sentar e seguir
a viagem em pé. Ela agradece-me com um sorriso forçado. É bonita e
é Inverno. Tem a pele feita de neve e o olhar azul e frio esculpido
em gelo.</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
<br />
</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
Enquanto eu coloco as malas, uma a uma,
nas prateleiras que os comboios da Cross Country têm para o efeito,
ela vira-se para a porta aberta. Lá fora três pessoas acenam um
adeus em gestos lentos. São duas mulheres mais velhas e um rapaz que
não deve ser ainda maior de idade. Bye, vão dizendo como se fossem
um coro desafinado.</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
<br />
</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
Conheço aquele adeus. Vi-o na minha
mãe quando emigrei. É um adeus tortuoso, uma tristeza grande
escondida por um sorriso maior. Depois o comboio apita e a porta
fecha-se. É a vida que continua apesar de nós, apesar do que
sentimos e do que queremos. Apetece-me abraçar a menina Inverno mas
não o faço. Ela torna a agradecer-me e vai-se sentar. Thank you,
diz.</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
<br />
</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
Pudesse eu ser Primavera por um momento
e abraçava-a. Ter a pele quente e os olhos dum campo florido
qualquer. Mas não tenho. Adivinho que ela amanhã vai estar tão
longe quanto eu estou agora e desejo-lhe sorte. Se é que isso
existe.</div>
Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-71914635001667769712020-02-17T01:11:00.000+00:002020-02-17T01:44:11.195+00:00 Nazdrave<div style="margin-bottom: 0cm;">
Sou um homem de meia idade. É assim
que se diz, não é? Meia idade. Como se a vida soubesse sempre
quando vai acabar e qual o princípio, o meio e o fim. Vejo-me, sem
se me ver, no espelho da pequena farmácia da casa de banho. O que
quero é o pormenor e não a face. Procuro na minha pele os sinais de
como aqui cheguei. Os meus dedos percorrem-na como se lessem braile e
na sua textura pudessem descobrir algo: uma memória ou uma história.
É a minha pele, pá. Deve ter alguma coisa escrita.</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
Tenho um copo de uísque pousado no
lavatório, o que indica que estava a beber quando decidi vir aqui
procurar os caminhos vazios do meu passado. Não percebo nada disto,
pá. Como é que vim aqui parar? Não era suposto a vida ser um dos
muitos sonhos que tivemos em jovens? Eu nunca sonhei viver aqui,
nesta casa longe da minha infância e com uma namorada que escreve
num alfabeto que não é o meu.</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
Sou um homem de meia idade. Não tenho
a certeza que a luz que decidiu entrar pela janela e deitar-se no meu
corpo saiba disso. Gostava que sim. Assim podia aceitar esse gesto
como uma carícia, como uma lógica apaziguadora da Natureza. Como um
gesto. É isso, gosto de gestos. A última vez que me apaixonei foi
por um gesto. Já me lembro.</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
Foi num jardim da cidade de Sófia. As
árvores estavam a dançar no silêncio do vento e eu tinha-a acabado
de conhecer. Estávamos num velho banco de madeira a dividir o tempo
e uma garrafa de vinho branco barato. O mundo estava todo ali
condensado. Um casal de namorados deitado na relva num beijo que
parecia ser eterno, um bêbado adormecido num muro baixo que parecia
ter sido construído exactamente para bêbados, um yuppie numa
conversa com um telemóvel nervoso e um pedinte que ziguezagueava no
espaço pedindo moedas.</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
Os nossos copos eram de plástico e o
vinho já estava quente. Então ela quis brindar. Nazdrave, disse.
Depois aproximou o copo dela do meu e eu o meu do dela. As nossas
mãos pararam perto uma da outra e por fim brindaram sem saberem
muito bem porquê. Vi-a a beber com a delicadeza de um deus, como se
uma barragem enorme pudesse por opção deixar passar apenas uma gota
para hidratar-lhe os lábios. Foi esse o gesto. Nazdrave, repeti.
Depois esbocei um Sorriso.</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
É ela que aparece agora na porta da
casa de banho. Traz dois copos de vinho e encosta-se à parede a
ver-me a ler a minha pele. Pergunta-me o que é que estou a fazer.
Não sei, respondo.
</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
Sou um homem de meia idade. Para além
dos cabelos brancos que se insurgem na minha cabeça contra o que
ainda permanece da minha juventude noto duas ou três rugas. Não
sei, repito. A vida não é muito mais do que um gesto. Ela
passa-me um copo para a mão. Brindamos. Nazdrave, dizemos.</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-21952807526291916632019-03-18T03:53:00.002+00:002019-03-18T03:54:47.651+00:00Aveiro<div style="margin-bottom: 0cm;">
Há uns tempos, creio que na última
vez que te visitei, perguntaste-me o que é que aconteceu entre nós.
Eu não estava a contar com essa pergunta, sabes? Foi por isso que
parei, para procurar uma resposta algures no nosso passado tão
íntimo, e como não a encontrei passei as mãos pelos vários bolsos
das calças e do casaco e fingi que estava à procura de outra coisa.
Creio que das moedas que vou guardando. Tinha alguns euros perdidos
na minha roupa.
</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
Sei que és um vício, um Amor perdido
que não consigo esquecer. Afastámo-nos, andei e ando com outras,
mas nunca verdadeiramente te esqueci. Não me leves a mal. Acredita
que és sempre tu no fundo do copo de cerveja quando ando por aí à
deriva, a beber aos pingos o nosso passado e a reciclá-lo em
lágrimas escondidas noutras ruas e avenidas que, apesar de
longínquas, vão sempre dar a ti. Garanto-te que é assim.</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
Não me lembro muito bem do exato
momento em que nos zangámos. Talvez até nem tenha existido um. Como
em qualquer Amor forte, talvez eu tenha fingido sempre que não
percebia que a nossa relação se estava a deteriorar. Saía de casa
todas as manhãs, cumprimentava-te e agia como se estivesse tudo bem.
Desculpa. Acho que foi isso.
</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
Quero que saibas que quando tenho
saudades tuas toco-te sempre, esteja eu onde estiver. Sinto-te no
vento que dança com os meus cabelos curtos ou saboreio-te num copo
de uísque qualquer.</div>
<div style="margin-bottom: 0cm;">
As cidades são um pouco como as
mulheres, pá. Há um tempo para o Amor, outro para a Saudade.</div>
Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-47399996994223407232019-03-14T11:26:00.001+00:002019-03-14T11:27:06.140+00:00Nunca sabemos do que são feitos os outros<a href="https://www.aveiromag.pt/2019/03/13/nunca-sabemos-do-que-sao-feitos-os-outros/">Nunca sabemos do que são feitos os outros</a> é a minha segunda crónica na AveiroMag, que me vai permitindo abrir o meu álbum de memórias de uma cidade distante. Obrigado a todos os que abdicam um bocadinho do seu dia para passarem por lá.Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-45480230487662605472019-03-13T01:13:00.000+00:002019-03-13T01:13:12.328+00:00a mulher do táxiUma vez apaixonei-me por uma mulher num táxi. Como não lhe vi a face, do que me lembro é das luzes tristes dos candeeiros públicos da cidade e da estrada a passar por mim da mesma forma que todos os outros Amores da minha vida já tinham passado.<br />
Quando abri a porta de trás para lhe perguntar se me podia levar até ao bairro de Darvenitsa, ela não virou a cara. Disse "da", que em búlgaro quer dizer sim, e fixou o olhar no vidro da frente como se a vida não tivesse mais opções do que seguir por aí, sempre em frente.<br />
Ia a chorar e tinha olhos negros. Mais negros do que a noite, digo. E grandes. Vi-os no espelho retrovisor central durante dois ou três segundos. Por qualquer motivo que não sei explicar, percebi que ela chorava por Amor. Talvez tenha sido o choro, que é sempre diferente dos outros choros.<br />
Todos sabem que chorar por Amor é fazer um pedido à vida, que uma situação se reverta. Depois, como nunca nada se reverte, deixa-se de chorar e olha-se em frente, o único caminho possível. As lágrimas são uma desilusão porque nunca fazem nada do que lhes pedimos, mas pelo menos servem para percebemos a direcção que devemos tomar.<br />
No rádio do táxi passava uma música inglesa da qual me lembro que o primeiro verso era "In the morning I am a recluse lost in memories, ideal situations and convulsions" e o refrão apenas uma repetição da frase "We don't need nobody else".<br />
Quando ela parou o táxi no bairro onde eu vivia, o contador marcava quase dez levs. Dei-lhe a nota por cima do ombro direito dela e as nossas mãos tocaram-se por um segundo. Depois ela amassou a nota como se odiasse dinheiro e a minha mão caiu-lhe nesse ombro como se fosse um floco de neve. Desejei-lhe boa sorte em pensamento, mas tenho a certeza que ela ouviu como se eu tivesse gritado.<br />
Foi nesse momento que me apaixonei por ela. É impossível não me apaixonar por uma mulher capaz de ouvir o que eu penso.<br />
O táxi dissolveu-se na noite enquanto eu atravessava a estrada. Nunca mais a vi.<br />
<br />Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-1621596399073844352019-03-06T12:55:00.001+00:002019-03-06T14:19:34.068+00:00 pensamentos catatónicos (350) Uma das últimas memórias que tenho de Portugal, antes de emigrar, é a de um homem pobre a olhar para uma máquina de venda automática perto de Viseu. Ele tinha fome e era pobre mas entre ele e a comida havia um vidro, ainda por cima transparente.<br />
Eu, na verdade e para além de um pouco assustado, também estava esfomeado. Era a minha viagem em direcção à fronteira para voltar sabe-se lá quando e como. Ia emigrar para tentar resolver o problema da Fome com F grande, mas naquele preciso momento bastava-me comprar um dos croissants mistos da máquina para acabar com a fome com f pequeno. Foi o que fiz, enquanto ele ao meu lado contava algumas moedas na palma da mão como se procurasse um grão de areia entre muitos.<br />
Não me pediu dinheiro, mas ofereci-lhe um euro que me sobrou.<br />
<br />
- Obrigado! - disse. - talvez ainda me safe.<br />
<br />
Ele não sabe que me lembro dele, nem sequer que me ajudou a apaziguar os meus medos interiores com a frase dele. Aquele "talvez ainda me safe" era precisamente do que eu estava a fugir. Do "talvez" e do "safar". Também dos vidros transparentes que me impediam de ter uma vida digna no país a que chamava meu.<br />
Quando me sentei de novo no autocarro tive finalmente a coragem de olhar pela janela, já que até então e desde que saíra de Aveiro pouco mais fizera do que olhar para os meus próprios pés. Era de Portugal que me despedia, também através de um vidro ainda por cima transparente.<br />
A transparência é uma coisa estranha sempre que nos separa daquilo que precisamos, mas naquele momento ajudou-me. Segui uma estrada esguia que serpenteava os montes envergonhados, ladeada por casas com persianas normalmente corridas, muros altos penteados por cacos de vidro ou arame farpado, automóveis exibicionistas e alguns transeuntes quase sempre sós.<br />
Só na fronteira é que tornei a fechar os olhos. Recuei um pouco de tempo até um abraço quente de um Amor terminado e a sua voz doce a chamar-me do nada.<br />
<br />
- Adeus! - pensei.<br />
<br />
Sempre que procuramos a saudade vamos dar a uma mulher.Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-45824667774930298312019-03-01T23:58:00.000+00:002019-03-01T23:58:07.413+00:00Origami!O novo projecto <a href="https://www.aveiromag.pt/">AveiroMag</a> convidou-me para escrever regularmente para o mesmo. Agradeço e será um prazer! De certa forma, enquanto emigrante, será também uma forma de manter alguma ligação com a cidade a que ainda chamo minha. Podem ler aqui: <a href="https://www.aveiromag.pt/2019/03/01/a-vida-e-um-origami/?fbclid=IwAR3v-Bsz2ZKeS3uxy1-vHLWkaGwjagkTUVFUEz-jPwdOOGXPhIaYgHrFVCI">A Vida É Um Origami</a>Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-79387888894460602202019-03-01T08:38:00.000+00:002019-03-01T10:50:23.130+00:00Almoço<p dir="ltr">Estávamos a olhar para o céu apenas porque, pela primeira vez desde que nos conheceramos, os nossos olhares hesitavam em cruzar-se. O céu era apenas um refúgio momentâneo, com um azul mais ou menos gasto e alguns farrapos de nuvens solitárias.<br>
Tanto quanto me lembro, ouvi-te a pensar em nós. Depois de um almoço desgastante com turistas franceses que pediram para se sentar na nossa mesa numa esplanada na Vitosha tão cheia como um ovo.<br>
Passaram o tempo todo a falar demasiado alto e a mostrar quem eram. Um jornalista e adepto de futebol, uma estudante de cinema que não gostava de filme nenhum e um outro homem que só vestia fatos de uma marca específica qualquer.<br>
Eles não falavam entres eles, mas sim para quem estava no seu amplo campo de audição. Foi o que eu te disse.<br>
Há pessoas que não conseguem ser apenas pessoas. Têm que ser outra coisa qualquer porque a sua condição humana não lhes chega. Foi o que tu disseste.<br>
Abstraímo-nos do mundo por um momento e olhámos os dois para cima, para onde não havia gente, e percebemos que quando os nossos olhares voltassem ao planeta Terra corriam o risco de se embrulharem como dois páraquedas descontrolados.<br>
Foi assim que comecei a gostar de ti.</p>
Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-39164070979196099302019-02-26T20:25:00.000+00:002019-02-26T20:25:01.333+00:00pensamentos catatónicos (349)O rapaz caiu no meio da estrada. Estatelou-se no alcatrão ao mesmo tempo
que gritou. Não percebi porquê. À partida não havia nada que o pudesse
fazer cair, mas quando olhei já ele estava no chão, já a mãe corria na
sua direcção deixando um saco de compras pelo caminho, já um carro
travava a fundo para não o atropelar.<br /> Foram dois segundos em que nada mais interessou para aquela gente. Só a vida.<br /> Eu fechei os olhos para não ver, mas ainda vi mais. <span class="text_exposed_show">O
carro não conseguiu parar a tempo e passou por cima do jovem do corpo
do rapaz, que passou a ser cadáver. A mãe ajoelhou-se e abraçou a morte
em silêncio. O condutor deixou-se estar com as mãos no volante e o olhar
no infinito, em estado de choque.<br /> Depois abri os olhos e nada disso
tinha acontecido. O rapaz levantava-se devagar e sacudia a roupa com as
próprias mãos, a mãe apanhava as compras do chão e o automóvel já
passara por mim e desaparecera na primeira curva.<br /> Fiquei parado por
um momento. Os dois passaram por mim e pude reparar na força com que as
mãos de mãe e filho se agarravam. Era a força de quem precisa de agarrar
a vida a si mesmo a acabou de perceber que em alguns momentos não há
força que chegue para o fazer.<br /> Continuei a caminhar. Quando te vir de novo vou-te dar a mão com a mesma força, pensei. Só para que entre nós nada morra hoje.</span>Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-26502423591424664452019-02-20T15:54:00.000+00:002019-02-20T15:54:11.892+00:00conversa 2197Ela - Gostas das novas cortinas da sala?<br />
Eu - Quais cortinas novas da sala?<br />
Ela - As da janela, obviamente. Troquei-as a semana passada. As anteriores eram pretas e deixavam entrar pouca luz...<br />
Eu - Ah! Gosto, gosto...<br />
Ela - A sério que ainda não tinhas reparado?<br />
Eu - Para ser sincero, não.<br />
Ela -É bom saber que posso fazer o quiser em casa que tu nunca vais ficar chateado.Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-11483596125358389122019-02-18T14:07:00.000+00:002019-02-18T14:17:06.203+00:00coisas que fascinam (216)O carrinho do supermercado está cheio de caixas de bolachas, algumas de limão e outras de laranja. Também tem algumas cotonetes de plástico e latas de tomate. Acabou de parar perto de mim, conduzido por uma mulher que analisa uma lista de compras num pequeno bloco de papel. Os nossos olhares encontram-se e prendem-se um ao outro por alguns segundos. O observado sou eu, que ela usa um véu islâmico e não posso ver mais do que isso mesmo, os olhos dela.<br />
Ou posso. Na entrada reparei naquelas bolachas em promoção. Meia libra cada uma depois de cinquenta por cento de desconto. Também peguei numa caixa, no meu caso de limão, que está agora num cesto na minha mão esquerda junta com duas garrafas de vinho rosé português, um pacote de queijo fatiado e algumas bananas. Ela fixa as minhas compras e eu as dela.<br />
Quero comprar fiambre, mas o carrinho dela não me permite chegar às embalagens que eu costumo consumir. Já lhe pedi em inglês para se afastar um pouco, mas ela não se moveu nem um milímetro.<br />
<br />
- <span class="tlid-translation translation" tabindex="-1"><span class="" title="">Could you, please, step aside so I can have a pack of ham?</span></span><br />
<br />
Está ali parada a olhar para mim e a sorrir com a minha ginástica para chegar ao fiambre.Canso-me da situação e peço novamente, desta vez em português.<br />
<br />
- Por favor, afaste-se. Preciso chegar ao fiambre.<br />
<br />
Ela afasta-se, sorrindo ainda mais.<br />
<br />
Lá fora estão seis graus, uma temperatura bastante amena para esta altura do ano mas, ainda assim, a precisar de agasalho. Ponho o meu saco de compras no chão para poder apertar o casaco e vejo-a novamente. Vai no banco de trás de um táxi e diz-me adeus com uma das mãos.<br />
Quem é aquela mulher e como é que, pelo olhar, eu concluí que ela estava a sorrir?Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-5612636713808987182019-02-15T08:14:00.001+00:002019-02-15T08:14:21.242+00:00respostas a perguntas inexistentes (380)Sempre tive este prazer com o café. Antes de o beber abraço a caneca fumegante com as duas mãos e aqueço-as. Pensando bem, talvez seja por isso que me habituei a gostar de países frios, pelo prazer de me aquecer.<br />
Ela está a espreitar pela janela da cozinha na mesma posição de sempre. Tem os olhos grandes e abertos, que praticamente não piscam. Seja lá o que for que está ver não cabe em olhos semicerrados. Tenho até a sensação que olha sempre para o mesmo ponto lá fora, provavelmente a árvore do jardim.<br />
Dou o primeiro gole e aqueço mais as mãos.<br />
<br />
- É o nosso jardim. Está sempre igual. - digo-lhe.<br />
<br />
Ela não desvia o olhar nem o pensamento.<br />
<br />
- Não, não está. A árvore já foi verde, já foi vermelha e agora não tem folhas. Tudo mudou.<br />
<br />
É então que me apercebo que ela não está a olhar para o espaço, mas sim para o tempo. É claro que não podia caber em olhos semicerrados. O tempo só entra em olhos bem abertos ou bem fechados.<br />
<br />
- Queres que te faça um café? - Pergunto.<br />
<br />
Alguns pássaros pousam na relva. Vêm comer o resto da comida que quase todos os dias damos a alguns gatos vadios que nos costumam visitar pela manhã. Ela não desvia o olhar.<br />
<br />
- Não, já sabes que não gosto do teu café instantâneo mas, por favor, nunca pares de me perguntar. - Sorri.<br />
<br />
Dou outro gole. Fecho os olhos para procurar nesse tempo a improbabilidade que nos permitiu partilhar esta manhã. Não a encontro, mas sei que está lá e é tão esguia como a nossa história. Talvez tudo deva ser apenas exactamente assim: um mero acaso.<br />
<br />
Ela sai e afasta-se. Eu termino o café. As minhas mãos estão quentes. É por isso que gosto de países frios.Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-47023522305382124722019-02-14T03:15:00.002+00:002019-02-14T13:07:44.824+00:00A memória é uma nuvem<div>
A memória é uma nuvem. Sei o que digo por causa dos últimos três anos da minha vida, que se condensaram numa forma indefinida no céu. É como se às vezes olhasse para o meu passado da mesma forma que olho para o céu num dia qualquer. Sei que está tudo ali, mas sou incapaz de distinguir seja o que for.<br />
Nessa nuvem sei que estão os dois países onde vivi. Sei que estão dois ou três empregos, algumas histórias improváveis, dias difíceis de solidão e de saudade, novos amigos e um Amor. Só um, como devem ser os Amores. No entanto, faltam-me normalmente os momentos. Quero lembrar-me de um beijo, de uma mão dada, de uma lágrima ou de um sorriso e não consigo. Cada dia da minha vida é apenas uma partícula de água suspensa entre tantas outras que, assim de longe, parecem todas iguais.<br />
E foi assim que aprendi uma coisa nova. Não é importante lembrarmo-nos constantemente e ao detalhe de cada acaso importante da nossa vida. Quando precisamos, esses momentos vêm ter connosco. Desprendem-se do céu e chovem sobre nós. É bom.<br />
Ao meu lado, num velho pub inglês, um homem sem dentes ri-se sozinho enquanto bebe lentamente mais uma <i>pint</i> duma cerveja cuja marca desconheço. É um riso que me é familiar, essencialmente porque contém um choro escondido. Já me ri assim, a engolir a tristeza e a cuspir sabe-se lá o quê. Uma das vezes que o fiz estava num bar em Sófia e não me queria apaixonar. Fui bebendo, como se a bebida pudesse fazer alguma coisa por mim. Depois assumi a derrota e levantei-me, deixei algum dinheiro em cima da mesa e saí para a rua disposto ao que fosse. Eventualmente até a gostar de alguém outra vez.<br />
Na noite anterior a S tinha-me tocado com os dedos dos pés dela nos meus, no meu corpo quase tão cansado como a minha solidão. E então veio a voz dela tapar-me como se fosse um lençol usado. Disse-me que estava tudo bem, mesmo que eu não quisesse voltar. Se o quisesse, melhor.<br />
As ruas da capital búlgara mastigavam lentamente a luz do fim da tarde. As pessoas pareciam caminhar com pressa mas sem destino e os velhos eléctricos do tempo do comunismo transportavam-nas sem razão aparente. Então entrei num deles, cheio de passageiros embrulhados em silêncio e de mais um homem a rir-se para não chorar.<br />
Voltei nesse instante. </div>
Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-6378041995289801422018-03-07T16:34:00.000+00:002018-03-07T16:34:00.826+00:00de onde é que eu sou?Ela perguntou-me de onde sou enquanto fazia o troco da <i>pint</i> de <i>Guiness</i> que acabara de me servir. Não que eu me importe de responder a essa pergunta, até porque sei que normalmente serve apenas para dizer qualquer coisa quando não se tem nada mais para dizer, mas fiquei em silêncio durante algum tempo por não saber exactamente o que responder. Foi a primeira vez que hesitei perante a pergunta do costume. Pensei que talvez não já não saiba exactamente de onde sou.<div>
Desviei o assunto e disse-lhe que não sou um grande adepto da grande maioria das cervejas britânicas que tenho experimentado. Normalmente parecem-me demasiado parecidas com água, talvez pelo facto de quase não terem gás e o teor de álcool médio ser bastante baixo. Com excepção da <i>Guiness</i>, claro, que é mais consistente e por isso bebo sempre com prazer.<div>
Para além de nós e de um grupo de quatro homens silenciosos esquecido numa mesa com copos vazios, não havia mais ninguém. Olhei à minha volta e pareceu-me que o silêncio do <i>pub</i> estava ali há pelo menos cem anos. Talvez tenha entrado uma vez há muito tempo para se esconder do ruído das ruas de <i>Newcastle Under Lyme</i> e nunca mais tenha tido a coragem de sair. Entretanto o tempo passou lá fora, mas não lá dentro.</div>
</div>
<div>
Só podia ser essa a explicação para o que estava a acontecer: o respeito pelo silêncio secular. A mesma mulher que me perguntara de onde sou, sem obter uma resposta concreta, preparava-se agora para dizer algo mais mas as palavras não lhe saíam da boca. Era como se fossem a massa de um bolo que teima em não crescer no forno.</div>
<div>
Pousou algumas moedas junto à minha cerveja, uma por uma, e depois tornou a olhar-me nos olhos. Agradeci-lhe e devolvi o olhar. Era bonita, talvez com mais uma dezena de anos do que eu, mas o que mais lhe notei foram os gestos. Não pertenciam ao seu corpo, isto é, eram joviais mas vinham de um corpo que estava provavelmente a fazer quase sessenta anos de existência. Eram leves, certos e delicados, traídos apenas de vez em quando por um curto tremer dos lábios.</div>
<div>
Quando percebi que talvez estivesse a ser demasiado invasivo, tornei a permitir que os meus olhos esvoaçassem por aquele local sepulcral. Uma das fotografias na parede representava o rosto de alguém que, devido à evaporação duma boa parte dos sais de prata do papel fotográfico e do seu tom amarelecido, mais parecia um fantasma. As madeiras das paredes revelavam um esforço contínuo para suportar o peso do edifício e a luz do Sol varria lentamente o espaço.</div>
<div>
Quando olhei para a porta da entrada, a mesma mulher que me servira a cerveja que ainda ia a meio entrava com um ar rejuvenescido. Eu, que nem tinha percebido que ela saíra, limitei-me a pensar que agora sim, os seus gestos e movimentos lhe pertenciam totalmente.</div>
<div>
Tirou uma <i>half pint</i> para ela, não de Guiness mas duma outra cerveja qualquer, e brindou com o meu copo em repouso no balcão. </div>
<div>
<br /></div>
<div>
- <i>Cheers!</i> - disse.</div>
<div>
<br /></div>
<div>
Sorri-lhe.</div>
<div>
Aquela mulher está ali há quase tanto tempo quanto o da vida dela. As viagens que fez foram sempre através dos seus clientes, esses de quem ela acaba por se esquecer de onde vieram ou para onde foram e depois os outros, aqueles que se repetem todos os dias num qualquer escaninho do bar. O facto de eu não lhe ter dito de onde sou despertou algo nela por um momento. Talvez a importância de quem, como eu, ali passa de vez em quando para beber um copo e troca duas ou três palavras com ela.</div>
<div>
O que ela despertou em mim, certamente, foi recuperar a importância por um momento perdida de saber de onde sou.</div>
<div>
Não foi ela que me disse. Foi o silêncio.</div>
<div>
<br /></div>
<div>
<br /></div>
<div>
<br /></div>
Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-1164955022200257922018-02-10T11:20:00.001+00:002018-02-10T11:42:52.663+00:00só para eu poder entrar<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">Fiquei parado alguns segundos na porta de entrada do </span>edifício<span style="font-family: inherit;">. A mulher que acabara de passar por mim, de alguma forma fora-me
familiar. Foi como se a conhecesse há muito tempo de vista, apesar dos seus
olhos claros e o tom de pele primaveril deixarem perceber que era inglesa e, por
isso, o mais provável era nunca nos termos visto antes.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">Ela olhou-me durante dois segundos, mas depois escondeu os
olhos no chão enquanto segurava a porta para eu poder entrar. Obrigado,
disse-lhe. Acontece-me frequentemente ter a sensação que conheço pessoas de vista
mas que, depois quando penso melhor, o mais provável é nunca me ter cruzado com
elas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">Nunca encontrei uma explicação para tal nem, em abono da
verdade, me preocupei com isso, mas uma vez uma amiga disse-me que acredita que
isso acontece por transferências de energia entre as pessoas. Não percebi bem o
que ela queria dizer, mas lembro-me que concordei só porque não me apeteceu
discutir um assunto que me fugia do controle.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">A verdade é que estava pela primeira vez na minha vida
naquela zona de Manchester e, como tal, essa sensação de conhecer alguém de
vista não podia ser muito mais do que uma criação do meu cérebro, mais provavelmente
do meu subconsciente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">Só estava ali para comprar uma miniatura automóvel em
segunda mão que vira num anúncio de internet. Como tinha a vontade de conhecer
uma cidade que, mesmo assim, ainda hoje me é estranha, dispus-me durante as
trocas de emails com o vendedor a ir pessoalmente a casa dele comprá-la.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">O edifício era velho por fora e novo por dentro, como se fosse
um homem de muita idade com uma enorme vontade de viver mais uns anos. As rugas
podem chegar, mas por dentro nunca ninguém sabe o nosso verdadeiro estado. Pelo
menos foi esse o meu pensamento, que também surgiu porque alguém me disse que
eu era como uma criança, assim que soube que eu ia fazer uma deslocação de 70
quilómetros para comprar um brinquedo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">Quando finalmente entrei no elevador, carreguei três ou quatro
vezes seguidas no quinto andar, como se assim pudesse subir mais depressa. Mas não
pude. Nunca se pode. Os elevadores andam sempre à mesma velocidade e não
obedecem à nossa vontade. É uma boa lição, esta que os elevadores nos dão. Se nos
queremos manter joviais por dentro, há que não ter pressa de viver. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">Um homem com uma barriga </span>desproporcional<span style="font-family: inherit;"> e uma <i>t-shirt</i> suja,
provavelmente da minha idade, abriu a porta do apartamento C. Perguntou-me se
eu estava pelo <i>hot wheel</i> ou pelo <i>Transformer</i>. <i>Hot Wheel</i>, respondi. Dei-lhe cinco
libras e ele passou-me para a mão uma miniatura que examinei </span>minuciosamente<span style="font-family: inherit;"> só
para fingir que percebia alguma coisa do assunto. </span><i style="font-family: inherit;">Okay</i><span style="font-family: inherit;">, disse-lhe, e virei
costas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">Outra lição que os elevadores nos costumam dar é a da lei
das probabilidades poder estar contra nós. Assim que me preparava para abrir a
porta alguém o chamou nos rés do chão e perdi a boleia. Não tive outro remédio
senão esperar que ele subisse de novo. Desta vez só carreguei uma vez para o
chamar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">O vendedor ainda estava à porta a olhar para mim. Não nos
conhecemos de algum lugar? Perguntou. Não, sou português. Foi o que lhe
respondi enquanto tentei perceber se ele me era familiar a mim. Não era.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">Passeei uma tarde inteira pela cidade, sem pressa de chegar
a lado nenhum nem vontade de ter chegado. Falei de futebol com um desconhecido
num <i>pub</i> de esquina enquanto bebi duas <i>pints</i> de <i>Guiness</i>. Depois passei o resto
da tarde a trocar impressões com os edifícios que me iam observando de soslaio
enquanto caminhava no meu segredo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: inherit;">Dou-me conta de que não sou ninguém enquanto me perco nos
outros. Os outros, aqueles com quem me cruzo agora como se já alguma vez me
tivesse cruzado no passado para poder acreditar que, talvez num futuro
distante, me torne a cruzar da mesma forma e, por pura sorte, uma mulher bonita
segure numa porta durante dois segundos só para eu poder entrar.<o:p></o:p></span></div>
<br />Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-73656746426984058902017-12-29T05:15:00.000+00:002017-12-29T05:15:04.526+00:00coisas que fascinam (215)<div>
Hoje estive profundamente apaixonado por três minutos. Uma mulher que seguia à minha frente uns bons metros, numa das despovoadas ruas de Stoke, segurou a porta do bar onde ambos entrámos e esperou por mim. Agradeci-lhe o gesto e trocámos algumas palavras simpáticas. Depois separámo-nos, provavelmente para sempre. Eu fui para o balcão sozinho e ela foi para uma mesa onde tinha alguns amigos à espera. Não tornámos a falar.</div>
<div>
Os três minutos não interessam. Interessa que me apaixonei mais uma vez para sempre. Se esse Amor eterno durou apenas três minutos, não é importante. Já me aconteceu o mesmo com outros Amores. Um durou dezoito anos, outro sete, outro talvez uns dois. Sei lá. Importa-me que me apaixono sempre para sempre, mesmo quando sei que se trata de um Amor impossível de apenas alguns minutos.</div>
<div>
De certa forma, foi assim que aprendi a sobreviver à vida, apaixonando-me a cada momento como se fosse a última vez e, vá lá, também a primeira.<br />
Ao balcão pedi um Tullamore Dew duplo sem gelo. Bebi-o exactamente como tenho bebido a vida, em goles tão doces e pequenos quanto possível. Talvez uma porta possa decidir se a pessoa com quem nos cruzamos é, ou não, compatível connosco. Sei, por exemplo, que nunca me apaixonaria por uma mulher que me fechasse a porta na cara, apenas porque preciso de pessoas que se lembrem que as outras pessoas existem.<br />
Nesta vida de emigrante e solidão que vou levando, todas essas pessoas que me consideram em pequenos gestos se tornaram tão importantes quanto um Amor de curta duração.<br />
É só um exercício. Durante o ano que vem mantenham a porta aberta a quem vem atrás de vocês. talvez possam viver um intenso e secreto Amor de três minutos.<br />
<br />
Bom 2018</div>
Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-88484408762302622362017-12-01T04:36:00.000+00:002017-12-01T04:36:12.674+00:00respostas a perguntas inexistentes (379)<div>
<b>Eu e o Vento</b><br />
<br />
A noite embrulhou-me em silêncio. Saí do trabalho e continuei a caminhar sem destino, como um barco à deriva num mar sem vida. Era assim que estava a cidade, quase morta. Mas tive sorte, encontrei um pequeno sinal de vida no vento que, tanto quanto percebi, também estava sozinho.</div>
<div>
Ainda bem. É sempre bom ter alguém com quem falar e nada como ele, que nunca põe em dúvida o que dizemos, para dar dois dedos de conversa. </div>
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Sempre acreditei que somos incapazes de mentir aos outros, mas mentimos muito facilmente a nós mesmos. Só o vento é que tem essa noção e, talvez por isso, seja um dos meus melhores amigos.</div>
<div>
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Esta noite, por exemplo, falámos de Amor. E ele concorda comigo no essencial. A palavra é de desconfiar. Fala-se de Amor como se fosse uma coisa qualquer. E não é. Eu já vou em quase cinco décadas de vida e, tanto quanto me lembro, disse essa palavra a três mulheres. Bêbado, claro, que é o conta. Em estado sóbrio terei dito mais vezes, mas todos sabemos que a sinceridade é filha da bebedeira.</div>
</div>
<div>
Quando se diz a palavra Amor a muitas pessoas, então nunca se Amou ninguém. Foi ele que mo explicou, o vento, que também me pareceu estar um tanto ou quanto embriagado. E eu acreditei.</div>
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Dividimos a dor e o prazer de não sermos nada nem coisa nenhuma. Isso e uma garrafa de vinho barato, claro. Afinal de contas andamos os dois sempre a contar os trocos como se fossem cada um dos momentos do tempo que passa.</div>
<div>
Nada disto interessa muito, claro. Foi apenas mais um conversa entre dois amigos de longa data que partilham o facto de nunca terem pedido a nenhuma mulher que os continuasse a Amar para além do Amor. E é por isso que de vez em quando nos cruzamos os dois num ponto qualquer do planeta, nos sentamos no primeiro local aprazível e discutimos o mundo como se fosse possível entendê-lo.</div>
<div>
Sou eu e o vento.</div>
Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-82180002362454421292017-10-21T03:41:00.001+01:002017-10-21T03:41:54.771+01:00respostas a perguntas inexistentes (378)<b>A Minha Mãe E Um Saco De Tempo</b><br />
<br />
Perdi a conta às más notícias que dei à minha mãe durante a minha vida. Dei algumas boas também, mas por qualquer motivo sinto que dei mais más do que boas. Uma delas foi que tinha perdido o emprego e estava sem dinheiro. Dessa vez, como em todas as outras, a primeira resposta da minha mãe foi sorrir e dizer que tudo tem solução.<br />
<br />
A minha mãe não sabe, mas nesses momentos ensinou-me sempre que um sorriso pode salvar uma vida. É que uma vida inteira pode ter milhões e milhões de segundos, mas tem que se salvar em cada um que passa.<br />
<br />
Foi também assim que aprendi a parar no tempo, esse monstro invisível que me estava a matar. Foi o tempo de estudar, o tempo de casar, o tempo de constituir família, o tempo de ter um emprego tão bom quanto o dos outros, o tempo de ter um carro e o tempo de ter uma casa. Foram vários tempos com tempo para tudo menos para viver.<br />
<br />
E então parei e meti esse tempo todo num saco.<br />
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Andei por aí. Do que me lembro é de ter lido um livro no topo duma montanha, de ter ouvido uma música numa praia e de me ter apaixonado num jardim. Às vezes com dinheiro, outras vezes sem, mas sempre com o tempo todo só para mim. Ainda hoje vivo assim, com os outros a viverem mais depressa do que eu, e lembro-me sempre da minha mãe a sorrir e a dizer que tudo tem solução.<br />
<br />
Talvez não haja outro truque nesta vida do que viver sem pressas, mas a pressa de viver não nos deixa percebê-lo. Digo-o eu agora, que quando espreito o saco do meu tempo passado reparo naquilo que não reparei quando o vivi.<br />
<br />
Foi a minha mãe que mo ensinou.Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-33819288.post-56132736927322908802017-09-30T04:48:00.002+01:002017-09-30T04:50:45.543+01:00respostas a perguntas inexistentes (377)<div>
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Dedos<br />
<br />
Estava a falar com a M. ao telefone. Já estivemos apaixonados um pelo outro, mas nunca ao mesmo tempo. Por isso mesmo, aquilo que existe entre nós é uma amizade profunda e, quando olhamos para o nosso passado, é também um desencontro.</div>
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Falámos sobre esse desencontro uma vez no sofá da minha casa, depois de vários copos de vinho e um enorme chocolate com passas que fomos comendo devagar. Não sei porquê, mas lembro-me muito bem desse chocolate. Quase que lhe posso sentir o sabor, apesar dos anos que já se passaram. Ela começou a comê-lo por uma das extremidades e eu pela outra, quadradinho a quadradinho. Quando chegámos aos dois últimos pedaços os nossos dedos tocaram-se e, por impulso, acariciaram-se. Lembro-me tão bem do intenso sabor desse toque indelével.</div>
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E então hoje liguei-lhe. Ela ficou surpreendida, claro. Há muitos anos que não ouvia a minha voz. Nem eu a dela. Fiquei aliviado por não me perguntar porque é que eu lhe estava a ligar. Sempre que me perguntam isso, a vontade que tenho é desligar o telefone imediatamente. Gosto de amigos a quem posso ligar só porque sim, sem precisar de um motivo técnico qualquer.</div>
<div>
Ainda assim, se ela me tivesse perguntado, eu tinha a resposta na ponta da língua. Hoje caminhava em Stoke junto ao Trent & Mersey, um dos dois canais que atravessam a cidade, numa zona onde o cais é tão estreito que é muito difícil duas pessoas passarem uma pela outra sem se tocarem. Foi isso que aconteceu. Por acidente, os meus dedos tocaram nos dedos duma mulher que caminhava no sentido oposto. Pedi-lhe desculpa e ela respondeu "no problem", mas ainda antes de ela ter acabado de dizer a palavra "problem", já esse doce e adormecido toque nos dedos da M. tinha despertado em mim como um urso que termina a hibernação.<br /><div>
Lembrei-me dos dedos dela e do sabor desse chocolate que dividimos há mais de uma década. Essa carícia ficou-me gravada na memória como uma pequena tatuagem no corpo de um gigante, talvez porque tenha sido a forma de eu perceber por uma pequena fracção do tempo, como seria se nos tivéssemos apaixonado em simultâneo.<br /><div>
Sorri à mulher e continuei a caminhar. Ao chegar a casa telefonei à M, para lhe perguntar isso mesmo: se por acaso ela se lembrava desse nosso entrelaçar dos dedos, mas a conversa perdeu-se no nosso passado da mesma forma que eu me perco a caminhar sem destino nesta cidade.<br />
Não perguntei.</div></div>
</div>Ivar Chttp://www.blogger.com/profile/13226875670439738941noreply@blogger.com4