2.14.2024

Como pode a revolução não estar num ovo estrelado?

 A Ana está a cozinhar um ovo. Pega nele com delicadeza apertando-o nas extremidades, numa com a ponta do dedo indicador e na outra com a ponta do dedo polegar. Exerce alguma pressão sobre ambas e levanta a própria mão até ao nível do seu olhar. Observa agora o ovo como se este fosse uma pequena escultura, uma obra de arte. Mas não é, os ovos são todos praticamente iguais e não são fruto de nenhuma mente criativa.

Ela sabe, no entanto, por que motivo maneja aquele ovo como se fosse uma preciosidade única. É que há alguns anos comprou uma máquina de cozer ovos automaticamente e desde então nunca mais os cozinhou de outra forma. Optou pelo facilitismo da tecnologia, que apenas lhe pede que coloque seis ovos numa placa própria, adicione 10 decilitros de água e ligue um botão. Quando a máquina apita é porque os ovos estão prontos.

Hoje, precisamente há alguns minutos atrás, decidiu que ia cozinhar um ovo de novo à maneira antiga e por isso fita-o com o mesmo interesse que um estudante de arte teria pela sua primeira pintura académica. É claro que um ovo não é uma obra de arte, repete ela para si mesma, mas o que sair daquele procedimento será com certeza.

Talvez a revolução esteja apenas num ovo estrelado. Não uma revolução que revolucione o mundo, claro, mas que a revolucione a ela. Às vezes ela até é mais difícil de mudar do que o próprio mundo, pensa agora. E, afinal de contas, não somos cada um nós um mundo?

Do outro lado do ovo, mesmo por cima de um fogão onde o tempo tatuou algumas rugas de ferrugem, Ana vê-se no reflexo do vidro de uma das portas dos armários da cozinha a sorrir. Só ela sabe que os seus sorrisos se transformam tão facilmente em riso como em choro e só ela sabe porquê. É uma vida inteira de murros no estômago, de abraços quentes, de despedidas frias, de dores silenciadas a ferro e fogo, de esperanças vãs e certezas perdidas. E repete para ela mesma, afinal de contas, não somos cada um nós um mundo?

Vem-lhe à memória a doçura da mãe, cujo amor lhe permitia optar sempre optar por um ovo estrelado com batatas fritas quando a família se reunia num jantar de peixe cozido e couve escura. E ela, criança, comia as batatas e o ovo com as mãos enquanto os adultos abriam e fechavam a boca para emitir sons que ela não percebia. Como pode a revolução não estar num ovo estrelado?

Vem-lhe à memória o convite de um patrão num emprego mal pago para jantar num restaurante perto de um motel nos subúrbios. E ele, babado, comia pedaços de carne enquanto a chantageava com sexo para que pudesse manter o emprego e único meio de subsistência. Oh Ana, eu não quero a tua virgindade, apenas a tua boca. E ela levantou-se e saiu do restaurante, não sem antes lhe atirar o ovo do seu prato à cara. Como pode a revolução não estar num ovo estrelado?

Depois passou fome, mas vem-lhe à memória a filha e o seu desmame do biberão e do leite da mama. A primeira refeição sólida foi um ovo estrelado que a cria cuspia como se fosse uma torneira de rega a jorrar água num campo de trigo. E riam-se as duas como se estivessem bêbadas de felicidade. Como pode a revolução não estar num ovo estrelado?

Vem-lhe à memória um salário que não chegava até ao fim do mês. Depois de pagar as contas fazia refeições de ovo estrelado com tomate, de ovo estrelado com batatas fritas, de ovo estrelado com pão e de ovo estrelado com ovo estrelado. Uma por dia, não mais. E no fim sentia-se tão cheia quanto uma vida cheia de aventuras. Como pode a revolução não estar num ovo estrelado?

Vem-lhe à memória a violência do marido. As promessas de que ela era especial transformaram-se com o tempo em “és uma inútil” e “não fazes nada de jeito". E um dia ele chegou a casa e bateu-lhe porque era o segundo dia seguido em que o jantar era composto por ovos estrelados, sem perceber que a partir desse dia e até um divórcio litigioso todos os jantares seriam de ovos estrelados. Como pode a revolução não estar num ovo estrelado?

A Ana vê-se no seu reflexo desfocado. Reconhece cada ruga, cada lábio trémulo, cada brilho nos olhos, cada silêncio. Parte o ovo que segurava como se a sua vida dependesse da delicadeza com que o faz. Na frigideira forma-se imediatamente um círculo laranja rodeado de uma clara branca sem forma definida. É como se fosse um planeta numa galáxia.

Cada vez que estrelamos um ovo começamos tudo de novo. Como pode a revolução não estar num ovo estrelado?

1.18.2024

O planeta voltará ao sítio em poucos minutos

De todas as sensações de vazio que se pode ter, a melhor de todas é aquela que vem depois do sexo. Se isto não não for verdade, não interessa, porque é aquilo em que ele acredita agora, neste preciso momento que se segue àquele em que o seu corpo engatilhou toda a energia dos cosmos e disparou uma bala de esperma dentro dela. O que for realmente verdade não interessa.

Ela está ali, viva com corpo de morta e a luz fria do Inverno a aquecer-lhe a pele branca embrulhada pelo silêncio. Um dos braços, o esquerdo, passa-lhe por baixo da cabeça e depois ergue-se na vertical num perfeito equilíbrio de árvore. A mão cai como se os seus dedos fossem as folhas preguiçosas de uma palmeira. É bonita. Tão bonita.

Que raio de momento para pensar na palavra Amor. Depois do sexo nunca se ama ninguém. É sempre preciso esperar que o planeta volte ao sítio, como quando se acaba de dar corda a um boneco e ele se engasga nos seus primeiros movimentos mecânicos. Enfim, é preciso que aquele delicioso silêncio termine, que os aviões voltem a riscar o céu, que o trânsito nas ruas volte a buzinar e que o relógio de parede volte a contar os segundos. 

É assim o momento depois do sexo. O mundo não mexe e não se Ama ninguém.

E agora que os ponteiros começam lentamente a contar o tempo apressado, lembra-se dela num passeio qualquer que deram há uns anos. Numa cidade qualquer, numa estação do ano qualquer, numa rua qualquer em que um Mimo fazia bolas de sabão invisíveis e uma criança de vestido e sapatos verdes saltava para as rebentar. Um homem gordo e sem cabelo lia um jornal de folhas grandes enquanto na mesma esplanada quase todos olhavam para o telemóvel, um Sem Abrigo bêbado estendia a mão invisível aos transeuntes apressados e o vento preguiçoso serpenteava algumas folhas de árvore e pedaços de lixo no chão.

E ela disse que o Amava.

Ele lembra-se desse momento de vez em quando. Talvez o tenha guardado na memória da mesma forma que se guarda uma fotografia entre as páginas de um livro que só se lê e relê de vez em quando. Estamos então no meio duma história que não nos pertence e de repente pegamos na fotografia e vem-nos à memória um momento que é só nosso.

A mão em forma de palmeira mexeu-se. O corpo morto dela respira e, portanto, voltou à vida, que as balas de esperma nunca mataram ninguém definitivamente. E então ela pergunta-lhe se ele gostava de voltar a Berlim.

Berlim, sim, era essa a cidade. Hum hum, responde ele acenando afirmativamente a cabeça sem ela ver.

A seguir vão tomar decidir quem toma banho primeiro, enquanto os aviões no céu e os automóveis na rua recuperam o movimento. O planeta voltará ao sítio em poucos minutos.