3.18.2019

Aveiro

Há uns tempos, creio que na última vez que te visitei, perguntaste-me o que é que aconteceu entre nós. Eu não estava a contar com essa pergunta, sabes? Foi por isso que parei, para procurar uma resposta algures no nosso passado tão íntimo, e como não a encontrei passei as mãos pelos vários bolsos das calças e do casaco e fingi que estava à procura de outra coisa. Creio que das moedas que vou guardando. Tinha alguns euros perdidos na minha roupa.
Sei que és um vício, um Amor perdido que não consigo esquecer. Afastámo-nos, andei e ando com outras, mas nunca verdadeiramente te esqueci. Não me leves a mal. Acredita que és sempre tu no fundo do copo de cerveja quando ando por aí à deriva, a beber aos pingos o nosso passado e a reciclá-lo em lágrimas escondidas noutras ruas e avenidas que, apesar de longínquas, vão sempre dar a ti. Garanto-te que é assim.
Não me lembro muito bem do exato momento em que nos zangámos. Talvez até nem tenha existido um. Como em qualquer Amor forte, talvez eu tenha fingido sempre que não percebia que a nossa relação se estava a deteriorar. Saía de casa todas as manhãs, cumprimentava-te e agia como se estivesse tudo bem. Desculpa. Acho que foi isso.
Quero que saibas que quando tenho saudades tuas toco-te sempre, esteja eu onde estiver. Sinto-te no vento que dança com os meus cabelos curtos ou saboreio-te num copo de uísque qualquer.
As cidades são um pouco como as mulheres, pá. Há um tempo para o Amor, outro para a Saudade.

3.14.2019

Nunca sabemos do que são feitos os outros

Nunca sabemos do que são feitos os outros é a minha segunda crónica na AveiroMag, que me vai permitindo abrir o meu álbum de memórias de uma cidade distante. Obrigado a todos os que abdicam um bocadinho do seu dia para passarem por lá.

3.13.2019

a mulher do táxi

Uma vez apaixonei-me por uma mulher num táxi. Como não lhe vi a face, do que me lembro é das luzes tristes dos candeeiros públicos da cidade e da estrada a passar por mim da mesma forma que todos os outros Amores da minha vida já tinham passado.
Quando abri a porta de trás para lhe perguntar se me podia levar até ao bairro de Darvenitsa, ela não virou a cara. Disse "da", que em búlgaro quer dizer sim, e fixou o olhar no vidro da frente como se a vida não tivesse mais opções do que seguir por aí, sempre em frente.
Ia a chorar e tinha olhos negros. Mais negros do que a noite, digo. E grandes. Vi-os no espelho retrovisor central durante dois ou três segundos. Por qualquer motivo que não sei explicar, percebi que ela chorava por Amor. Talvez tenha sido o choro, que é sempre diferente dos outros choros.
Todos sabem que chorar por Amor é fazer um pedido à vida, que uma situação se reverta. Depois, como nunca nada se reverte, deixa-se de chorar e olha-se em frente, o único caminho possível. As lágrimas são uma desilusão porque nunca fazem nada do que lhes pedimos, mas pelo menos servem para percebemos a direcção que devemos tomar.
No rádio do táxi passava uma música inglesa da qual me lembro que o primeiro verso era "In the morning I am a recluse lost in memories, ideal situations and convulsions" e o refrão apenas uma repetição da frase "We don't need nobody else".
Quando ela parou o táxi no bairro onde eu vivia, o contador marcava quase dez levs. Dei-lhe a nota por cima do ombro direito dela e as nossas mãos tocaram-se por um segundo. Depois ela amassou a nota como se odiasse dinheiro e a minha mão caiu-lhe nesse ombro como se fosse um floco de neve. Desejei-lhe boa sorte em pensamento, mas tenho a certeza que ela ouviu como se eu tivesse gritado.
Foi nesse momento que me apaixonei por ela. É impossível não me apaixonar por uma mulher capaz de ouvir o que eu penso.
O táxi dissolveu-se na noite enquanto eu atravessava a estrada. Nunca mais a vi.

3.06.2019

pensamentos catatónicos (350)

Uma das últimas memórias que tenho de Portugal, antes de emigrar, é a de um homem pobre a olhar para uma máquina de venda automática perto de Viseu. Ele tinha fome e era pobre mas entre ele e a comida havia um vidro, ainda por cima transparente.
Eu, na verdade e para além de um pouco assustado, também estava esfomeado. Era a minha viagem em direcção à fronteira para voltar sabe-se lá quando e como. Ia emigrar para tentar resolver o problema da Fome com F grande, mas naquele preciso momento bastava-me comprar um dos croissants mistos da máquina para acabar com a fome com f pequeno. Foi o que fiz, enquanto ele ao meu lado contava algumas moedas na palma da mão como se procurasse um grão de areia entre muitos.
Não me pediu dinheiro, mas ofereci-lhe um euro que me sobrou.

- Obrigado! - disse. - talvez ainda me safe.

Ele não sabe que me lembro dele, nem sequer que me ajudou a apaziguar os meus medos interiores com a frase dele. Aquele "talvez ainda me safe" era precisamente do que eu estava a fugir. Do "talvez" e do "safar". Também dos vidros transparentes que me impediam de ter uma vida digna no país a que chamava meu.
Quando me sentei de novo no autocarro tive finalmente a coragem de olhar pela janela, já que até então e desde que saíra de Aveiro pouco mais fizera do que olhar para os meus próprios pés. Era de Portugal que me despedia, também através de um vidro ainda por cima transparente.
A transparência é uma coisa estranha sempre que nos separa daquilo que precisamos, mas naquele momento ajudou-me. Segui uma estrada esguia que serpenteava os montes envergonhados, ladeada por casas com persianas normalmente corridas, muros altos penteados por cacos de vidro ou arame farpado, automóveis exibicionistas e alguns transeuntes quase sempre sós.
Só na fronteira é que tornei a fechar os olhos. Recuei um pouco de tempo até um abraço quente de um Amor terminado e a sua voz doce a chamar-me do nada.

- Adeus! - pensei.

Sempre que procuramos a saudade vamos dar  a uma mulher.

3.01.2019

Origami!

O novo projecto AveiroMag convidou-me para escrever regularmente para o mesmo. Agradeço e será um prazer! De certa forma, enquanto emigrante, será também uma forma de manter alguma ligação com a cidade a que ainda chamo minha. Podem ler aqui: A Vida É Um Origami

Almoço

Estávamos a olhar para o céu apenas porque, pela primeira vez desde que nos conheceramos, os nossos olhares hesitavam em cruzar-se. O céu era apenas um refúgio momentâneo, com um azul mais ou menos gasto e alguns farrapos de nuvens solitárias.
Tanto quanto me lembro, ouvi-te a pensar em nós. Depois de um almoço desgastante com turistas franceses que pediram para se sentar na nossa mesa numa esplanada na Vitosha tão cheia como um ovo.
Passaram o tempo todo a falar demasiado alto e a mostrar quem eram. Um jornalista e adepto de futebol, uma estudante de cinema que não gostava de filme nenhum e um outro homem que só vestia fatos de uma marca específica qualquer.
Eles não falavam entres eles, mas sim para quem estava no seu amplo campo de audição. Foi o que eu te disse.
Há pessoas que não conseguem ser apenas pessoas. Têm que ser outra coisa qualquer porque a sua condição humana não lhes chega. Foi o que tu disseste.
Abstraímo-nos do mundo por um momento e olhámos os dois para cima, para onde não havia gente, e percebemos que quando os nossos olhares voltassem ao planeta Terra corriam o risco de se embrulharem como dois páraquedas descontrolados.
Foi assim que comecei a gostar de ti.

2.26.2019

pensamentos catatónicos (349)

O rapaz caiu no meio da estrada. Estatelou-se no alcatrão ao mesmo tempo que gritou. Não percebi porquê. À partida não havia nada que o pudesse fazer cair, mas quando olhei já ele estava no chão, já a mãe corria na sua direcção deixando um saco de compras pelo caminho, já um carro travava a fundo para não o atropelar.
Foram dois segundos em que nada mais interessou para aquela gente. Só a vida.
Eu fechei os olhos para não ver, mas ainda vi mais. O carro não conseguiu parar a tempo e passou por cima do jovem do corpo do rapaz, que passou a ser cadáver. A mãe ajoelhou-se e abraçou a morte em silêncio. O condutor deixou-se estar com as mãos no volante e o olhar no infinito, em estado de choque.
Depois abri os olhos e nada disso tinha acontecido. O rapaz levantava-se devagar e sacudia a roupa com as próprias mãos, a mãe apanhava as compras do chão e o automóvel já passara por mim e desaparecera na primeira curva.
Fiquei parado por um momento. Os dois passaram por mim e pude reparar na força com que as mãos de mãe e filho se agarravam. Era a força de quem precisa de agarrar a vida a si mesmo a acabou de perceber que em alguns momentos não há força que chegue para o fazer.
Continuei a caminhar. Quando te vir de novo vou-te dar a mão com a mesma força, pensei. Só para que entre nós nada morra hoje.

2.20.2019

conversa 2197

Ela - Gostas das novas cortinas da sala?
Eu - Quais cortinas novas da sala?
Ela - As da janela, obviamente. Troquei-as a semana passada. As anteriores eram pretas e deixavam entrar pouca luz...
Eu - Ah! Gosto, gosto...
Ela - A sério que ainda não tinhas reparado?
Eu - Para ser sincero, não.
Ela -É bom saber que posso fazer o quiser em casa que tu nunca vais ficar chateado.

2.18.2019

coisas que fascinam (216)

O carrinho do supermercado está cheio de caixas de bolachas, algumas de limão e outras de laranja. Também tem algumas cotonetes de plástico e latas de tomate. Acabou de parar perto de mim, conduzido por uma mulher que analisa uma lista de compras num pequeno bloco de papel. Os nossos olhares encontram-se e prendem-se um ao outro por alguns segundos. O observado sou eu, que ela usa um véu islâmico e não posso ver mais do que isso mesmo, os olhos dela.
Ou posso. Na entrada reparei naquelas bolachas em promoção. Meia libra cada uma depois de cinquenta por cento de desconto. Também peguei numa caixa, no meu caso de limão, que está agora num cesto na minha mão esquerda junta com duas garrafas de vinho rosé português, um pacote de queijo fatiado e algumas bananas. Ela fixa as minhas compras e eu as dela.
Quero comprar fiambre, mas o carrinho dela não me permite chegar às embalagens que eu costumo consumir. Já lhe pedi em inglês para se afastar um pouco, mas ela não se moveu nem um milímetro.

- Could you, please, step aside so I can have a pack of ham?

Está ali parada a olhar para mim e a sorrir com a minha ginástica para chegar ao fiambre.Canso-me da situação e peço novamente, desta vez em português.

- Por favor, afaste-se. Preciso chegar ao fiambre.

Ela afasta-se, sorrindo ainda mais.

Lá fora estão seis graus, uma temperatura bastante amena para esta altura do ano mas, ainda assim, a precisar de agasalho. Ponho o meu saco de compras no chão para poder apertar o casaco e vejo-a novamente. Vai no banco de trás de um táxi e diz-me adeus com uma das mãos.
Quem é aquela mulher e como é que, pelo olhar, eu concluí que ela estava a sorrir?

2.15.2019

respostas a perguntas inexistentes (380)

Sempre tive este prazer com o café. Antes de o beber abraço a caneca fumegante com as duas mãos e aqueço-as. Pensando bem, talvez seja por isso que me habituei a gostar de países frios, pelo prazer de me aquecer.
Ela está a espreitar pela janela da cozinha na mesma posição de sempre. Tem os olhos grandes e abertos, que praticamente não piscam. Seja lá o que for que está ver não cabe em olhos semicerrados. Tenho até a sensação que olha sempre para o mesmo ponto lá fora, provavelmente a árvore do jardim.
Dou o primeiro gole e aqueço mais as mãos.

- É o nosso jardim. Está sempre igual. - digo-lhe.

Ela não desvia o olhar nem o pensamento.

- Não, não está. A árvore já foi verde, já foi vermelha e agora não tem folhas. Tudo mudou.

É então que me apercebo que ela não está a olhar para o espaço, mas sim para o tempo. É claro que não podia caber em olhos semicerrados. O tempo só entra em olhos bem abertos ou bem fechados.

- Queres que te faça um café? - Pergunto.

Alguns pássaros pousam na relva. Vêm comer o resto da comida que quase todos os dias damos a alguns gatos vadios que nos costumam visitar pela manhã. Ela não desvia  o olhar.

- Não, já sabes que não gosto do teu café instantâneo mas, por favor, nunca pares de me perguntar. - Sorri.

Dou outro gole. Fecho os olhos para procurar nesse tempo a improbabilidade que nos permitiu partilhar esta manhã. Não a encontro, mas sei que está lá e é tão esguia como a nossa história. Talvez tudo deva ser apenas exactamente assim: um mero acaso.

Ela sai e afasta-se. Eu termino o café. As minhas mãos estão quentes. É por isso que gosto de países frios.

2.14.2019

A memória é uma nuvem

A memória é uma nuvem. Sei o que digo por causa dos últimos três anos da minha vida, que se condensaram numa forma indefinida no céu. É como se às vezes olhasse para o meu passado da mesma forma que olho para o céu num dia qualquer. Sei que está tudo ali, mas sou incapaz de distinguir seja o que for.
Nessa nuvem sei que estão os dois países onde vivi. Sei que estão dois ou três empregos, algumas histórias improváveis, dias difíceis de solidão e de saudade, novos amigos e um Amor. Só um, como devem ser os Amores. No entanto, faltam-me normalmente os momentos. Quero lembrar-me de um beijo, de uma mão dada, de uma lágrima ou de um sorriso e não consigo. Cada dia da minha vida é apenas uma partícula de água suspensa entre tantas outras que, assim de longe, parecem todas iguais.
E foi assim que aprendi uma coisa nova. Não é importante lembrarmo-nos constantemente e ao detalhe de cada acaso importante da nossa vida. Quando precisamos, esses momentos vêm ter connosco. Desprendem-se do céu e chovem sobre nós. É bom.
Ao meu lado,  num velho pub inglês, um homem sem dentes ri-se sozinho enquanto bebe lentamente mais uma pint duma cerveja cuja marca desconheço. É um riso que me é familiar, essencialmente porque contém um choro escondido. Já me ri assim, a engolir a tristeza e a cuspir sabe-se lá o quê. Uma das vezes que o fiz estava num bar em Sófia e não me queria apaixonar. Fui bebendo, como se a bebida pudesse fazer alguma coisa por mim. Depois assumi a derrota e levantei-me, deixei algum dinheiro em cima da mesa e saí para a rua disposto ao que fosse. Eventualmente até a gostar de alguém outra vez.
Na noite anterior a S tinha-me tocado com os dedos dos pés dela nos meus, no meu corpo quase tão cansado como a minha solidão. E então veio a voz dela tapar-me como se fosse um lençol usado. Disse-me que estava tudo bem, mesmo que eu não quisesse voltar. Se o quisesse, melhor.
As ruas da capital búlgara mastigavam lentamente a luz do fim da tarde. As pessoas pareciam caminhar com pressa mas sem destino e os velhos eléctricos do tempo do comunismo transportavam-nas sem razão aparente. Então entrei num deles, cheio de passageiros embrulhados em silêncio e de mais um homem a rir-se para não chorar.
Voltei nesse instante.