6.29.2012

conversa 1919

(no café)

Ela - A que é que os homens chamam normalmente uma mulher boazona?
Eu - A uma mulher fisicamente atraente.
Ela - A que é que os homens chamam uma mulher boazinha?
Eu - Acho que é a... uma mulher com boas intenções, que não faz mal a ninguém e assim...
Ela - Estás a ver?
Eu - Estou a ver o quê?
Ela- Os homens aplicam o aumentativo para definir o corpo duma mulher e o diminutivo para definir a maneira de ser...
Eu - E o que é que isso tem?
Ela - No seu subconsciente, dão mais importância ao corpo do que à maneira de ser.
Eu - E o que é que isso tem?
Ela - Tem que és um chato e daqui a bocado mando-te com esta garrafa de água tónica à cabeça.
Eu - Isso quereria dizer que não és boazinha.
Ela - E boazona, sou?
Eu - Não interessa, tu nem dás importância a isso.

6.27.2012

conversa 1918

(num hipermercado)

Eu - Então, por aqui?
Ela - Sim, o meu marido pediu-me para comprar lubrificante e não consigo decidir-me por um...
Eu - Há uns da Durex engraçados, mas são um bocado caros. O quente e o frio são fixes. O de Piña Colada cheira um bocado a anos oitenta.
Ela - Lubrificante para o carro... foi o que o meu marido me pediu...
Eu - Ah! Eu ia agora tomar café. Queres vir?
Ela - Acho que estás a mudar de assunto, mas pronto, vamos lá.

6.26.2012

tão sozinha e tão contigo

As cidades despovoadas fazem-se sempre confusão. Fico a olhar para os prédios silenciosos e não percebo onde é que se meteram as pessoas. Não parece que estejam nas suas casas, nas ruas também não estão. São três da tarde e aponto para o que parece ser um café aberto ao fundo da rua. Talvez ali possa beber uma cerveja fresca e comer qualquer coisa, enfim, recuperar as forças. A Sofia quer sorrir, mas já não consegue. Dou-lhe uma pequena e indelével palmada no ombro, como se assim a pudesse ajudar a andar. Não posso.
Dez minutos depois penetro numa imensa sombra ameaçada pelo calor exterior. Sinto o pescoço a arder por causa do Sol e ouço apenas algumas moscas esvoaçantes. De vez em quando há uma que é electrocutada numa lâmpada roxa. Não há ninguém a atender e eu não tenho forças para chamar. Sinto-me cansado e o suor que lacrimeja por todo o meu corpo faz-me sentir desconfortável. Sento-me numa mesa com a sensação de que acabei de escalar o Everest. A Sofia ficou à porta, depois de deixar cair o saco que trazia aos ombros, como se estivesse à espera da morte.
Decidimos percorrer Trás-Os-Montes à boleia na noite em que nos conhecemos. Não tens coragem, disse ela. Pode ser já para a semana, respondi eu. E assim foi. Agora estamos os dois aqui, perdidos numa cidade  na qual começava a ter dúvidas que existisse vida, não fosse uma mulher com um rosto esculpido pelos anos surgir duma porta aberta que parece abrigar a escuridão. Peço uma caneca de cerveja e um pacote de cones com sabor a queijo, ela pede um sumo natural de laranja lançando-me simultaneamente um olhar de censura. Não sei por que motivo pedi os cones com sabor a queijo, digo. De repente apeteceu-me, explico-lhe. Ela ri-se. É a primeira vez que se ri em muitas horas. O saco dela continua abandonado na porta.
Ganha cor enquanto bebe o sumo. Ganha vida. Fico a pensar na noite em que a conheci e como a achei logo tão bonita quanto acho agora. Estava aflita para ir à casa de banho num bar e a das mulheres estava ocupada, por isso pediu-me para ficar à porta da dos homens e que não deixasse ninguém entrar. Os homens partem sempre as fechaduras das casas de banho, disse ela quando saiu. Depois convidou-me para um copo.
Gosto de álcool como gosto de música. Emociono-me com ambos, não sei porquê. Foi o que eu lhe disse quando pedi um uísque duplo e ela um cocktail qualquer. Falámos sobre lugares, viagens e sonhos, acabando na promessa sofrida que faríamos esta viagem à boleia. No fim abraçámo-nos algum tempo e senti-a chorar para dentro. Disse-me que os abraços a fazem sentir-se só, embora os adore e precise deles para viver. Os abraços dela são os meus uísques, pensei.
Não gosto nada de ter dúvidas sobre o Amor, mas neste momento tenho. Não sei se a Amo ou não. Sei que só a tenho a ela e que nesta cidade esse sentimento é ainda mais intenso.Não preciso explicar-lhe nada do que sinto. Por qualquer motivo sei que ela sabe de tudo. Faço silêncio e acabo a cerveja. Procuro a senhora para pedir outra mas ela já não está. Provavelmente foi engolida pela porta da escuridão. Como os últimos cones de queijo e lambo os dedos. São bons.
O que é que estás a sentir? Pergunta. E eu nem sei. As cidades despovoadas fazem-me sempre confusão.  Fico a olhar para os prédios silenciosos e não percebo onde é que se meteram as pessoas. É como se todos   me tivessem abandonado e partido para um lugar incerto. Ao mesmo tempo ser abandonado e tê-la ali ao meu lado sabe-me bem. Os dois sozinhos no mundo, mais uma mulher que aparece e desaparece engolida pela noite, apenas para nos servir cerveja, sumos e cones com sabor a queijo. Sinto-me só, concluo.
É assim que eu me sinto quando me abraças, diz ela. Tão sozinha e tão contigo.

6.25.2012

alarme

A Eli publicou hoje no blogue dela um texto bagaçólico: Alarme.

conversa 1917

Ela - Quero apresentar-te um novo amigo meu um dia destes...
Eu - O.k. Quando quiseres.
Ela - É um amigo muito importante para mim, por isso é que quero que o conheças.
Eu - Mas é amigo ou namorado?
Ela - Descobri uma nova forma de Amar.
Eu - Mas é amigo ou namorado?
Ela - Descobri uma nova forma de Amar.
Eu - Está bem, descobriste uma nova forma de Amar. Mas é amigo ou namorado?
Ela - A minha nova forma de Amar é que os amigos também podem dar excelentes amantes.

coisas que fascinam (149)

Uma vez parámos no Alentejo, num café da estrada nacional, e ouvi um grupo de homens a chamar fascista ao meu pai. Não percebi o que aquilo queria dizer, mas quando voltámos para o carro o meu pai explicou que tinha a ver com o carro novo. Não era um veículo propriamente de luxo, mas tinha um aspecto diferente da maior parte dos carros dos anos setenta. O Morris Marina arrancou em direcção ao Algarve, eu sentei-me de joelhos no banco e fiquei a olhar para a aquele grupo de homens até eles se tornarem pontos negros e indecifráveis no horizonte.
Talvez essa tenha sido a primeira vez que tive uma noção real da existência de classes. Não que o meu pai ou a minha família fosse rica, porque não era mesmo, mas porque percebi que alguns se ofendiam pelo facto de poder ser. Quem parava por ali, normalmente eram pessoas que iam de férias para o Algarve, e isso era uma afronta para alguma pobreza que se vivia no Alentejo pós 25 de Abril.
Em Lagos havia uma gelataria muito movimentada, onde todas as noites os meus pais me compravam um sorvete de máquina (era uma das coisas que eu mais gostava nas férias, ter direito a um gelado por dia). Numa dessas noites a minha irmã, que tinha na altura apenas dois ou três anos, deixou cair o sorvete dela no chão e ficou apenas com o cone de bolacha na mão. Começou a chorar e o meu pai comprou-lhe imediatamente outro. Eu, que fiquei cá fora, vi um miúdo da minha idade a ajoelhar-se no chão e a lamber avidamente aquela bola amarela de baunilha que o passeio ia absorvendo. Procurei explicações junto dos meus pais para aquilo, mas não obtive muito mais respostas do que a assumpção de que há gente pobre e gente com dinheiro. Reagiram como se nem quisessem tocar no assunto e continuámos a andar. Eu é que nunca mais me esqueci daquilo.
Esta semana, mais de trinta anos depois, sentei-me no banco duma esquina de Barcelona para acabar de comer um gelado que se derretia demasiado depressa. A minha mãe sentou-se ao meu lado e fiquei a ver a minha filha, que já tinha acabado o gelado dela, a dirigir-se a um caixote do lixo para pôr o papel do seu Magnum Amêndoas. Um homem rebuscava o caixote do lixo e, praticamente em simultâneo, retirou de lá uma garrafa de água quase vazia que acabou de beber. Depois abriu o papel da minha filha e lambeu-o.
A minha filha veio procurar junto de mim explicações para aquilo, e por uma vez percebi porque é que os meus pais evitaram a minha questão semelhante há mais de trinta anos. Num só momento não se consegue explicar a uma criança como é que a humanidade se permite a ter isto nas suas cidades, nem há nenhuma explicação plausível para que tal se passe, a não ser uma organização política atroz e uma massa enorme de gente com muito pouca capacidade crítica. Ela olhou para mim e percebeu a minha impotência perante os factos, pegou no dinheiro que tinha e foi atrás dele para lho dar. Depois, só uns minutos depois, é que me disse que as pessoas não gostam suficientemente umas das outras. Foi a explicação possível para alguém que tem doze anos de idade. E é a verdade.
Só no avião de regresso, e já longe do envolvimento emocional do momento, é que consegui falar com ela mais abertamente sobre o que se tinha passado. A minha filha não sabe, mas fiquei orgulhoso dela por se ter sentido mal com o que viu, e por se sentir inquieta perante a pobreza e a injustiça. Ainda bem.

6.18.2012

Barcelona

Conhecer cidades é um dos meus passatempos preferidos. Tentar perceber, através dum mapa, em que coordenadas da selva urbana me encontro e depois percorrê-la a pé ou de autocarro o mais possível. De vez em quando entrar num bar, num mercado ou numa feira e beber um copo como quem o faz todos os dias. Como se fosse dali, digo. Às vezes, se por acaso calhar, dar dois dedos de conversa com um estranho e depois seguir o mesmo caminho que nunca me leva a lado nenhum.
Sempre preferi fazê-lo sozinho, conhecer cidades, até o experimentar com a Raquel. Neste aspecto ela é igualzinha a mim. A primeira vez que saí do país com ela percebi que raramente, ou nunca mesmo, parávamos para decidir se virávamos à esquerda ou à direita. É como se os dois fôssemos dali e já soubéssemos para onde ir. Antes disso nunca tinha ido a Dublin. Depois disso percebi que poder partilhar aquilo que se conhece de novo é mil vezes melhor do que andar sozinho.
"Epá! Olha para isto!" é, por exemplo, uma óptima coisa para se dizer a quem está a conhecer uma cidade connosco. É uma sensação única, um momento que fica gravado. Tenho, por exemplo, uma joaninha mecânica que a Raquel me ofereceu depois de, na cidade de Praga, eu lhe ter dito: "Epá! Olha para esta joaninha. Parece um brinquedo dos nossos avós". Ainda hoje lhe dei corda e fiquei a vê-la a tentar subir o tapete da sala. Não conseguiu, apesar dos meus incentivos.
As cidades não são apenas ruas, museus, jardins, comércio e edifícios de habitação. Muito mais importante do que isso são as pessoas todas através das quais elas respiram. As pessoas que circulam nas artérias são, assim, o sangue de qualquer cidade, e é por elas que sou capaz de me apaixonar ou não.
Em Portugal também temos cidades boas de conhecer desta maneira, com a vantagem (e desvantagem) de que nelas não parecemos estrangeiros. Às vezes meto-me no carro e só paro onde e quando me der na telha. Meto conversa com uma cidade e depois volto para casa. Foi assim que me apercebi que elas são como as mulheres. Não há nenhuma que não tenha qualquer coisa de que se goste muito, não há nenhuma onde as estradas não se cruzem e nos façam hesitar na direcção a tomar. Conhecê-las é sempre bom.
Uma das cidades a que já voltei várias vezes, porque nela e por ela me apaixonei várias vezes também, é Barcelona. De tal forma que não gosto de pensar que vou ficar muito tempo sem lá ir. Primeiro comecei por ir lá sozinho, entretanto já lá fui com a Raquel, amanhã vou lá com a minha mãe e a minha filha. É como se estivesse a apresentar uma namorada a todas as pessoas de quem gosto. Espero que ela nos receba bem.

Boa semana!

conversa 1916

Ela - Hoje tinha marcado um jantar com um tipo que conheci na internet e ele não apareceu.
Eu - E não explicou porquê?
Ela - Explicou. Mandou uma mensagem ao fim da tarde a dizer que tinha assuntos pessoais e inadiáveis para tratar.
Eu - Ah! Então não faz mal. Marcas para outro dia.
Ela - Nem pensar nisso. Nunca mais marco nada com ele.
Eu - Só por causa de ter falhado uma vez?!
Ela - Assuntos pessoais e inadiáveis à hora dum jogo de futebol entre Portugal e a Holanda, não sei porquê mas não acredito. Já percebi que é igual aos outros...

6.14.2012

conversa 1915

Ela - Queres ver Portugal comigo?
Eu - Que parte de Portugal?
Ela - Estou a falar do jogo de futebol com a Dinamarca, burro.
Eu - Ah! Não me apetece...
Ela - És um desmancha-prazeres.
Eu - Porquê?
Ela - Porque sim. Nem um jogo de futebol queres ver comigo...
Eu - Disponibilizei-me para, eventualmente, ver uma parte de Portugal contigo. Tu, em contrapartida, convidas-me para ver um jogo de futebol na televisão. Desmancha-prazeres és tu.
Ela - És tu.
Eu - És tu.
Ela - És tu.
Eu - Pronto, sou eu.
Ela - Então sou eu...

6.13.2012

respostas a perguntas inexistentes (211)

dedos

Comecei-lhe pelos dedos. Tem piada, sempre que penso numa mulher qualquer, a primeira parte do corpo que me vem à cabeça é a face. Depois podem ser as pernas, os seios, as mãos ou o rabo, mas a primeira é sempre a face. A face é o bilhete de identidade de cada uma delas. Só na Rita é que são sempre os dedos.
Já não a via há anos, mas quando ouvi inesperadamente a voz dela do outro lado do telefone imaginei-lhe imediatamente os dedos, magros e delicados como quando passávamos todos os fins de tarde na esplanada da praia. Era aí, entre algumas cervejas e refrescos, que eles tocavam em tudo como se tudo fosse frágil, e folheavam o jornal como se as suas folhas fossem de gelatina. Líamos os diários praticamente todos e depois ficávamos à conversa até as palavras se cansarem dentro de nós, normalmente já pela noite dentro.
Tinha conhecido a Rita precisamente por causa dum jornal. Num comboio urbano entre Porto e Aveiro onde viajei ao lado dela. Ela dobrou o Diário de Notícias depois de o ler e pousou-o sobre a saia, eu pedi-lho emprestado. Tinha uma notícia sobre o aumento de divórcios em Portugal que eu queria ler e acabámos os dois a falar sobre o tema. Ficámos a saber que éramos os dois recém-divorciados. Ela tinha saído de Braga sem direcção para desanuviar a cabeça (palavras dela), e agora estávamos ali os dois, tão distantes quanto próximos, a esticar o tempo entre os transeuntes apressados na estação de comboio de Aveiro. Foi o primeiro fim de tarde que passámos na praia.
Lembro-me de a achar forte, tão forte que estranhei ela caber dentro daquele corpo tão pequeno. Por outro lado, à medida que me fui apaixonando por ela comecei a perceber que o meu corpo era demasiado grande para a minha fragilidade. Ela queria distância de tudo o que era homem (palavras dela), e eu nem sequer sabia bem o que queria (palavras dela também).
No último dia ninguém leu jornais. Acho que amuámos os dois, ou melhor, amuei eu e ela retribuiu. Tinha passado a tarde entre banhos no mar e pequenos sonos na toalha. Num desses sonos senti os dedos dela a caminharem pelas minhas costas, como os dedos das Páginas Amarelas.

- Tens que perceber uma coisa. Tu estás triste com a tua separação, eu estou zangada com a minha. - disse.

Acho que foi a primeira vez que me ri por esses tempos. Levantei-me para dar um último mergulho e nesse mesmo fim de tarde fui levá-la ao comboio. Foi há quase seis anos e entretanto nunca mais a vi. Hoje telefonou-me e comecei-lhe pelos dedos.

6.12.2012

pensamentos catatónicos (274)

Desde que acordei até à hora do almoço tive um dia mais ou menos cinzento. Andei sozinho pela cidade à  procura de nada, a olhar para algumas montras tristes. Acabei por tomar um café sem sabor numa pastelaria da baixa e voltar para casa sem vontade de fazer o almoço. Foi uma manhã sem gosto, pode-se dizer. Não sei porquê.
Gosto de gostar, passe a redundância. Às vezes é como se a vida, infelizmente, não me desse a possibilidade de gostar de coisas suficientes para ser feliz. Pelo menos é isso que sinto e acho que é essa é a grande arma do facebook: poder gostar de um ror de coisas com um simples click. Abro a página inicial e em dez minutos já gostei mais vezes do que no resto da semana. É uma sensação efémera de prazer, mas ainda assim funciona.
Na verdade, aquilo de que o facebook se apercebeu a tempo é de que todos sofremos um défice no verbo gostar. Por um lado, sentimo-nos permanentemente insatisfeitos com as poucas coisas de que realmente gostamos, por outro, não nos chega a quantidade de vezes de que somos gostados. O facebook tornou o verbo gostar uma questão administrativa. Até podemos estar a mentir, mas fica lá carimbado que gostamos de qualquer coisa.
Não estou a dizer mal do facebook. Hoje, por exemplo, já gostei de uma mão cheia de coisas de que já nem lembro quais foram, tudo para compensar a falta de coisas que tive para gostar de manhã. Soube-me bem gostar delas, assim como me soube bem saber que há mais pessoas que ficaram a saber que eu gostei. Gostei disso, pronto. Às vezes é o que se tem. Mais nada.
O meu telemóvel tocou há bocadinho. Vi um número que não conhecia e demorei a atender. Era uma mulher muito simpática a representar uma rede de supermercados, a propósito duma reclamação que lá deixei a semana passada. Explicou-me o que se tinha passado e acabou por me dizer que espera que eu lá volte. Que gosta muito de me ter como cliente, concluiu.
Lá está o cabrão do verbo gostar, pensei. Serve para tudo e mais alguma coisa. Fiz imediatamente uma chamada, a quem de direito, para lhe dizer que a Amo. Senti-me melhor. Amar é um luxo, gostar pode ser um lixo. E eu gosto de Amar.

6.10.2012

coisas que fascinam (148)

Resmungar baixinho com uma mulher é próprio dum homem que até pode saber o quer quer, mas não sabe certamente o que não quer. Resmunga-se o suficiente para afirmar uma opinião, mas baixinho para que não haja demasiado comprometimento com ela. É como atirar uma pedra e esconder a mão. Há muitos homens assim. Eu, por exemplo.

Ontem comprei umas alheiras de Mirandela, rúcula e duas garrafas de vinho branco para ver o jogo de futebol entre Portugal e a Alemanha. Já não costumo ver jogos de futebol, nem eu nem a Raquel, mas desta vez lá prometemos um a outro tentar. Dez minutos depois do início já bocejávamos os dois, e ela fez um pequeno zapping até parar numa série qualquer de que gosta muito. Eu resmunguei baixinho, mas ela disse que já tinha visto o fim, por isso só precisava de ver o princípio. Acabei por ser eu a pedir para ver tudo.

Hoje entrei numa loja de decoração no Porto onde, se não fosse acompanhado pela Raquel, nunca na minha vida entraria. Ela apressou o passo e disse que queria ir lá dentro ver umas coisas, eu resmunguei baixinho e lá a segui. Apetecia-me tudo menos estar ali. No fim ela não tinha comprado nada, eu sim.
Fiquei todo contente com um porta-guardanapos e uma placa retro para pendurar na minha cozinha.

Tenho a perfeita noção que vou resmungar baixinho com a Raquel mais não sei quantas vezes na vida com coisas que vou gostar de fazer. A resmungar baixinho, aliás, já conheci o norte de Itália, já fiz um desporto chamado canyoning, já passeei por diversas aldeias históricas de Portugal, já fiz campismo selvagem e já andei nalgumas das maiores montanhas russas do planeta. Gostei de tudo, mas resmunguei baixinho em todas elas.

Acho que é biológica, esta tendência para evitar a imprevisibilidade. Se estou no sofá a ler o jornal ou se tenho planeado fazer um percurso do ponto A ao ponto B, começo por resmungar assim que a Raquel me propõe qualquer alteração. No entanto, como já sei que ela tem sempre razão no que propõe, resmungo baixinho.


6.08.2012

entre a amizade e a paixão

Não sei se vos já aconteceu o mesmo. Às vezes crio laços de amizade tão fortes com uma mulher que, a determinada altura, já não sei se me estou a apaixonar por ela ou não. Não acontece sempre, claro, mas acontece às vezes e costuma ser tortuoso. Estranho, pelo menos, é. Saio regularmente com uma mulher durante algum tempo, apenas porque me sabe bem tomar um café com ela e dar dois dedos de conversa, mas depois começo a sentir-me tentado a envolver-me com ela para além dessa amizade.
Isto aconteceu-me, vá lá, umas dez vezes na vida. Uma dessas vezes foi em tempo recorde. Ia no comboio para Coimbra com a Jamila e, muito perto de nós, um tipo com uns auscultadores na cabeça ia a perguntar a todos os passageiros se gostavam da música, enquanto abanava a cabeça ao ritmo dum som que ninguém conseguia ouvir. Nitidamente, pensava que todos escutavam o mesmo que ele. Nitidamente também, tinha um parafuso a menos. Todos naquele compartimento iam a gozar com ele, aproveitando o facto de não poder ouvir ninguém. A Jamila nunca o fez e distribuiu olhares reprovadores por todos os que o fizeram. Foi o primeiro momento em que me senti a apaixonar-me por ela. Tinha-a conhecido três meses antes.
Por esses dias estava desempregado e tinha arranjado um trabalho com uma duração certa de seis meses. Tinha que filmar e montar um filme por mês, sempre numa cidade diferente. A Jamila fazia a voz off e por isso seguia-me para quase todo o lado. Faltavam, portanto, três meses para aquilo acabar. Comecei a contar os meses, as semanas, os dias, os minutos e os segundos que faltavam para me despedir dela definitivamente, com uma sensação crescente de perda. O tempo voava e escapava-se-me por entre os dedos como grãos de areia fina. Na última semana não aguentei mais e disse-lhe que não entendia bem o que se passava comigo, que só pensava em estar perto dela e que aquele fim iminente estava a dar cabo de mim. Ela deu-me um beijo na face e convidou-me para um fim de semana na terra dela mal o trabalho acabasse definitivamente. "Agora vamos trabalhar", concluiu depois. A mim foi como se me tivessem saído duas toneladas de cima.
Lembro-me que as nuvens pareciam as claras que a minha mãe batia em castelo quando eu era criança. Apeteceu-me erguer o dedo indicador da mão direita e ir lá roubar um pedaço para as provar. A Jamila estava ao meu lado, também deitada no chão, e riu-se com o meu gesto. Tínhamos passado três dias juntos sem fazer nenhum. Apenas a celebrar o fim de seis meses de trabalho intenso entre algumas garrafas de vinho e experiências gastronómicas variadas. Depois do jantar do dia anterior tinha-me perguntado se eu ainda sentia o mesmo por ela. Que não, respondi. Estava, de facto, a confundir o respeito e amizade que sentia por ela com uma espécie de paixão sem sentido. "É o que nos acontece quando passamos dias a fio com a mesma pessoa, sem mais ninguém", disse. Depois brindámos.
Acho que às vezes nos apaixonamos apenas por medo da solidão, por quem nos faz sentir bem quando está perto. É como aquela sensação de termos uma cama para nos deitarmos, depois de dois ou três dias mal dormidos num chão duro. Pelo menos foi o que ela me disse e eu compreendi. Hoje ainda somos amigos.

6.07.2012

conversa 1914

Ela - Se há coisa que eu detesto nos homens é chulé.
Eu - Chulé?
Ela - Sim, sou muito sensível aos cheiros. Se um homem se descalça ao pé de mim e me vem o cheiro a chulé, perco longo a vontade toda...
Eu - Por coincidência, ainda ontem estive a comer um queijo qualquer com cheiro a chulé. Pelo menos foi o que todos os presentes disseram. Eu adorei.
Ela - Ah! Eu sei que queijo é esse. Também adoro.
Eu - Pensava que eras muito sensível aos cheiros...
Ela - E sou, mas adoro esse cheiro nos queijos e detesto-o nos homens.

6.06.2012

conversa 1913

Ela - Estou que nem posso.
Eu - Então?
Ela - A minha sogra está sempre a aparecer lá em casa para dar sugestões sobre como devo educar o meu filho...
Eu - Ah! E o teu marido?
Ela - O meu marido diz que sim à mãe em tudo. Em vez de ajudar na solução do problema, ainda o agrava mais.
Eu - Porque é que não dizes muito educadamente à tua sogra que precisas de estar mais tempo sozinha?
Ela - Vou-te explicar uma coisa: quando uma mulher se queixa de alguma coisa a um amigo, não precisa que ele dê palpites. Só precisa que ele ouça e manifeste solidariedade.
Eu - Queres que eu te diga que te compreendo, é isso?
Ela - Sim, só isso.
Eu - Compreendo, mas se calhar é o que o teu marido faz, então. Compreende, mas não se põe a dar palpites...
Ela - Eu disse um amigo, não disse o marido.

6.05.2012

conversa 1912

(no café)

Ela - Porque é que lês o jornal de trás para a frente?
Eu - Não sei bem, mas de facto admito que o faço sempre.
Ela - É por seres estranho.
Eu - Sou estranho só porque leio o jornal a partir da última página?
Ela - Não. És estranho porque nem sequer encontras um motivo para o fazer.
Eu - Não tem que haver um motivo para tudo na vida.
Ela - Tem que haver uma explicação para tudo.
Eu - Então explica-me porque é que me estás a chatear desde que nos sentámos a tomar café, por favor, e nem me deixas ler o jornal.
Ela - Porque tenho prazer nisso, pronto. Vês?! Há sempre uma explicação para tudo.

6.02.2012

coisas que fascinam (147)

da beleza das mulheres
Existem as mulheres bonitas e existe a mulher bonita. À partida poder-se-ia pensar que a diferença está apenas no uso do plural e do singular, mas não está. Nem de perto nem de longe. É que a diferença entre a primeira e a segunda é tão grande que entre elas pode caber um Amor inteiro.
As mulheres bonitas são aquelas mulheres em que reconhecemos a beleza tal como ela é, a mulher bonita é aquela que nos ensina o que é a beleza. Todos os dias posso andar pela rua e reconhecer a beleza de muitas mulheres pelas quais não me apaixono. Agradeço-lhes em silêncio a existência porque me soube bem passar por elas. Depois continuo a andar procurando mentalmente referências. Uma era parecida com a Scarlett Johansson, outra era parecida com a Mayra Andrade, outra tinha o sorriso da Mona Lisa e assim por diante. Estas são as mulheres bonitas. Sabem-me bem, é isso.
A mulher bonita é aquela que só pode ser uma porque nela não reconheço nada. Nem a Scarlett Johansson, nem a Mayra Andrade, nem nenhuma outra. Olho para o nariz dela e passo a achar que o nariz dela é o mais bonito e único do mundo. O mesmo acontece com o resto do corpo. Os cabelos, as pernas, os lábios, o pescoço, as mamas, os olhos, o dedo mindinho do pé esquerdo ou os joelhos. Nessa altura não há nada a fazer. Estou apaixonado.

6.01.2012

pensamentos catatónicos (273)

azeitonas

Eu podia escrever um livro apenas sobre as mulheres que, estando à minha frente na fila do supermercado, saíram para ir buscar mais qualquer coisa de que se esqueceram. Normalmente são simpáticas, essas mulheres, até pedem desculpa quando deixam as coisas as compras a marcar lugar. Mas atrasam tudo e todos.
Hoje aconteceu-me mais uma vez. Eu só tinha um molho de agriões, um frasco de azeitonas recheadas e uma alface no cesto dum supermercado que só tinha duas caixas abertas. Escolhi uma delas à sorte e tive azar. Ou sorte, depende do ponto de vista.
A cliente que estava à minha frente, quando o rapaz da caixa já tinha lido praticamente todos os códigos de barras dos seus produtos, lembrou-se que também queria comprar alhos. Lá foi ela aos saltinhos, prometendo ser rápida, buscar os alhos. Demorou mais do que seria expectável. Quando voltou trazia um chocolate, um conjunto de três copos para vinho e uma embalagem de bolachas. Não trazia alhos.
O rapaz ia fechar a conta quando ela me perguntou se as azeitonas que eu tinha eram boas. Que sim, respondi. Diga-me só onde estão para eu não demorar muito a ir buscá-las, pediu-me fazendo também sinal ao rapaz para aguardar um pouco. Dei-lhe o meu frasco, mais por achar que as pessoas que estavam atrás de mim iam explodir do que por me sentir atrasado.
Depois de fazer as compras ela chamou-me. Tinha pedido um café num balcão ali perto da caixa mesmo sem saber se eu queria de facto bebê-lo. Mas bebi-o, enquanto mantive uma conversa animada sobre a razão de não ter posto açúcar, como é que costumo comer aquelas azeitonas, e fiquei também a saber que ela conduz sem ter carta de condução.
Ofereceu-se para me levar a casa. Não é preciso, respondi. A minha namorada vive aqui perto, conclui. E ela lá foi, com um estranho sorriso que nunca lhe saiu da cara durante este tempo todo. Não cheguei a perceber se fui propositadamente gozado ou não.